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Marx e a aposta estratégica no proletariado

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

“A descoberta do ‘crédito gratuito’ e do ‘Banco do povo’, baseado nele, são as últimas ‘façanhas’ econômicas de Proudhon. (…)Não há dúvida que o crédito, como ocorreu na Inglaterra no prin­cípio do século XVIII, e como voltou a acontecer nesse mesmo país no princípio do XIX, contribuiu para que as riquezas pas­sassem das mãos de uma classe para as de outra (…) Mas é uma fan­tasia genuinamente pequeno burguesa considerar que o capi­tal que produz juros seja a forma principal do capital, e tratar de converter uma aplicação particular do crédito – una suposta abolição do juro – na base da transformação da sociedade.” [1].

Após a morte de Proudhon em 1865, Marx foi convidado a escrever algo como um epitáfio para o público alemão e, em uma célebre carta, resumiu as suas diferenças históricas. As linhas que comentam a proposta proudhoniana de abolição dos juros e do banco do povo (ideias ainda presentes na polêmica da esquerda) são interessantes. Vale a pena observar que Marx não se opõe a essas propostas, e considera até que elas podem ser úteis à luta do proletariado, mas insiste em destacar que elas, se contrapostas a uma estratégia de luta pelo poder como via de transformação da sociedade, seriam uma fantasia. Estas palavras pesam até hoje como uma advertencia contra as ilusões gradualistas.

As conclusões de Marx sobre a transição pós-capitalista, inspiradas nas análises históricas das revoluções francesas de 1789, 1830, 1848 e, sobretudo, da Comuna de Paris de 1871, indicam que a luta pelo controle do poder político e, portanto, do Estado, precederia a luta pela socialização do capital. Este projeto estratégico contrariava tanto as perspectivas gradualistas dos proudonianos, quanto as substitucionistas dos blanquistas. Marx não se identificava nem com o reformismo, nem com o insurrecionalismo, as duas correntes dominantes no socialismo francês de meados do século XIX. Por outro lado tampouco tinha acordo com o programa maximalista antipolítico do anarquista russo Bakhunin. E não estava disposto a ceder diante das concepções reformistas de socialismo de Estado de Lassale, a liderança mais importante do movimento operário alemão dos anos sessenta e setenta do XIX.

No seu tempo, meados do XIX, essa previsão foi uma definição programática central: a necessidade de uma revolução política contra o governo, e de uma revolução social contra o capital, protagonizada pelas massas assalariadas como um sujeito consciente. Por várias razões.

Primeiro porque descartava a possibilidade de uma passagem gradualista ao socialismo, ou seja, uma transição histórico-social sem revolução política. Se a transição histórica do feudalismo ao capitalismo tinha exigido revoluções políticas nacionais, era mais do que provável que uma transição histórica ao socialismo, imensamente mais difícil, porque dirigida contra todas as classes proprietárias, colocaria a necessidade de uma revolução internacional. Afinal, os desafios de qualquer mudança econômica social devem ser proporcionais aos seus obstáculos. A contrarrevolução burguesa sendo mais poderosa, e os objetivos da revolução socialista sendo mais grandiosos, seria ingênuo não prever uma época de combates terríveis. O que não significava erradicar a hipótese de que uma revolução política e social triunfante em um Estado mais poderoso poderia favorecer rupturas revolucionárias com menor resistência da classe dominante em Estados vizinhos mais frágeis.

Segundo porque desconsiderava, também, a iniciativa revolucionária de uma organização de conspiradores sem as massas organizadas. Ou seja, a perspectiva de uma insurreição política em que um partido armado substituiria o papel dos organismos de frente única dos trabalhadores. Marx não acreditava na possibilidade de mudar a sociedade sem que os assalariados estivessem mobilizados em trono de um programa contra a propriedade privada. O substitucionismo dos revolucionários blanquistas não era a sua aposta estratégica.

Terceiro porque tampouco acreditava no projeto de uma revolução política nacional contra o Estado. A revolução socialista em qualquer nação deveria ser a alavanca da revolução europeia, ou não seria possível vencer. Esta aposta estratégica internacionalista exigia o deslocamento do Estado do capital, mas, simultaneamente, a construção de um Estado de novo tipo, o que o separava irremediavelmente de Bakhunin. O Estado revolucionário, principal instrumento ao serviço da luta mundial contra o capitalismo, deveria ser, também, uma arma para a regulação econômica contra o mercado. Sem um programa anticapitalista qualquer projeto igualitarista estaria condenado a fracassar.

Quarto e, por último, porque o marxismo nunca confundiu estatização da propriedade com socialização do capital. O estatismo da concepção de Lassale foi condenado em um ensaio redigido por Marx depois do Congresso de unificação da sua tendência com a lassaleana em Gotha.

Estas diferenças sumariamente expostas, o mais interessante é destacar que existia um acordo estratégico entre as quatro grandes correntes político-ideológicas que rivalizaram com o marxismo a influência sobre o movimento operário nascente. Um acordo sobre o papel chave do proletariado na luta contra o capitalismo.

O caminho percorrido pela luta de classes do século XX foi uma confirmação dos prognósticos programáticos elaborados por Marx e Engels. Não houve uma só experiência de gradualismo que tenha ameaçado a dominação capitalista. Todos os processos revolucionários conduzidos por exércitos-partidos substitucionistas resultaram, desde o início, em regimes burocraticamente deformados, que acabaram, miseravelmente, sendo os instrumentos da restauração capitalista.

Mas a história do século XX foi também, em certa medida, surpreendente. Não porque haja ocorrido algum avanço na direção da socialização do capital por iniciativa de qualquer governo burguês. Não ocorreu a nenhum governo burguês normal, evidentemente, ir além de estatizações que eram úteis à gestão do Estado ao serviço do bom andamento dos negócios privados. Estatizações com indemnizações, por suposto, no maior respeito à propriedade privada. O reformismo não avançou em lugar algum em direção ao socialismo. Todos os governos burgueses “anômalos”, ou seja, de colaboração de classes, em que partidos de base operária e programa socialista participaram, de Millerand na França no início do século XX, até o de Lula no Brasil no início do XXI, demonstraram-se, também, impotentes diante das pressões capitalistas. O barateamento do crédito do governo Dilma, uma proposta de inspiração proudoniana, não significou qualquer turbulência, muito ao contrário: foi saudada pela mais importante representação dos interesses dos industriais brasileiros, a Fiesp.

O que foi inusitado foi que a maioria das revoluções proletárias foi derrotada, e maioria das revoluções socialistas que triunfaram não foi proletária. A esmagadora maioria das situações revolucionárias em que o proletariado mediu forças com a burguesia aconteceu em países urbanizados e, pelo menos, semi-industrializados: Alemanha 1918/21/23; Espanha 1936/37; França 1936; Grécia 1945/48; Bolívia 1952; Portual 1975.

As esperanças que todas as correntes socialistas ou revolucionárias (nem todos os socialistas eram revolucionários, e nem todos os revolucionários eram socialistas) do século XIX depositaram no proletariado, como sujeito social, contrastam, portanto, com o cepticismo da esquerda mundial na segunda metade do século XX. O robusto otimismo nas possibilidades do “obreirismo” deixou de existir.

Uma das razões sérias para esta mudança de atitude remete ao tema do substitucionismo social, que operou em uma escala nunca vista no que poderíamos denominar a terceira vaga da revolução mundial no pós-guerra, com o deslocamento do eixo da luta de classes para a Ásia, América Latina e África.

Afinal, a vitória da revolução chinesa, a maior revolução camponesa do século e, quiçá da História, uma revolução socialista em que o proletariado urbano não ocupou, essencialmente, nenhum papel, prostrado pela esmagadora derrota de 1927, mais do que um processo sui generis, estabeleceu uma referência, durante um quarto de século, para a passagem da fase democrático-nacional das revoluções anti-imperialistas à fase anticapitalista.

O substitucionismo social verificou-se assim em uma proporção espantosa, superando (e surpreendendo) tudo o que o marxismo clássico poderia ter imaginado em termos de radicalização das massas camponesas. Lênin se referiu inúmeras vezes às “duas almas” do camponês arruinado, uma esfomeada de terra e propriedade, e a outra com nostalgia de igualdade, sonhadora de um passado comunitário, em que a aldeia possuía e cultivava a terra em comum. A história recente da América Latina, e não só, tem nos oferecido, também, os exemplos de novos “Münzers” e dos modernos “anabatistas”.

Na célebre correspondência de Marx com os narodniks russos nas décadas de 1870/80, organização revolucionária que buscava na revolução agrária a força motriz da revolução russa, o tema do substitucionismo social já tinha sido levantado, sem que Marx eliminasse a possibilidade a priori. Ainda assim, o processo da revolução mundial no pós-guerra foi além de tudo que se poderia prever.


[1] MARX, Karl. Miseria de la Filosofia. Trad. esp. Moscou, Editorial Progreso, 1979.  p. 165-6.