Suely Corvacho
Karl Marx costumava declarar que compreendera mais a sociedade francesa lendo A Comédia Humana do que os muitos tratados de economia, história e filosofia. Friedrich Engels era da mesma opinião, pois afirmara ter aprendido com Balzac “mais do que aprendi com todos os historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período”. Sem dúvida, grandes escritores exploram com tamanha profundidade os dilemas humanos e sociais que se tornam fonte de aprendizado, independente de sua postura ideológica. É o caso de Guimarães Rosa que, defensor do irracionalismo, nos ensina muito sobre os limites da lógica formal em “Estória nº3”.
À primeira vista, “Estória nº 3”, conto de Tutaméia, última publicação em vida de Guimarães Rosa, parece evocar um tema de grande penetração literária: o duplo[1]. O enredo explora o encontro entre dois homens opostos. Joãoquerque, homem medroso, é surpreendido na casa de sua amante pelo bandido Ipanemão, assassino e estuprador de mulheres. Mira, que enxerga longe, acoberta a fuga do companheiro, que parte em disparada, pela noite adentro. Durante a corrida, ele tropeça, cai e, certo do iminente fracasso, desiste da fuga e da própria vida. Nesse momento de entrega à morte, tem um insight, que altera completamente o andamento da história. Compreende o porquê de o bandido o perseguir, com isso rompe com o papel de vítima e se transforma em assassino do rival. A partir daí, passa a ser temido como o fora Ipanemão.
O conto chama a atenção porque trabalha com uma noção de duplo que não é propriamente desdobramento do mesmo (o sujeito que se depara com sua imagem, com sua sombra, com o sósia, etc). Aqui o duplo é formado por elementos opostos, o que oferece certa dificuldade para reconhecê-lo de imediato. Além disso, a história que à primeira vista parece se esgotar na experiência de reencontro de um eu dividido em duas partes complementares guarda aspectos que podem ser iluminados se introduzirmos as leis da lógica formal e o conceito de identificação projetiva.
O conto, dividido em três partes, inicia-se com o narrador descrevendo uma cena corriqueira na vida dos amantes: Joãoquerque e Mira trocam confidências, quando são interrompidos bruscamente pela chegada do bandido – Ipanemão.
A descrição das personagens deixa claro o caráter complementar das personagens: Ipanemão “cruel como brasa mandada, matador de homens, violador de mulheres, incontido e impune como o rol de flagelos” (Rosa, 1985, p. 59); Joãoquerque “avergado homenzarrinho, que ora se gelava em azul angústia, retornando os beiços, mas branco de laranja descascada, pálido de a ela [Mira] lembrar os mortos” (Rosa, 1985, p.59-60). A complementaridade, nesse caso, é clara: a coragem (ou a covardia) que falta a um excede no outro; um é a imagem invertida do outro.
Se tivéssemos de colocar a situação em termos da lógica formal, diríamos que pela lei da identidade (A é igual a A) Ipanemão, o valente, é A e Joãoquerque, o medroso, a quem falta a valentia é não-A. Logo, considerando a lei da contradição: Ipanemão não é não-A Joãoquerque; assim como Joãoquerque não é Ipanemão. Contudo essa situação se modifica completamente no meio do conto, pois Joãoquerque percebe que ele é não-A e A simultaneamente.
Para entender a mudança, convém recuperar a posição de Guimarães Rosa frente à lógica formal. Em entrevista no Congresso de Escritores Latino-Americanos, em janeiro de 1965, quando Günter Lorenz pergunta como, estando contra a lógica e defendendo o irracional, seu próprio processo de trabalho é uma coisa totalmente intelectual e lógica, o autor responde:
“(…) A lógica é a prudência convertida em ciência; por isso não serve para nada. Deixa de lado componentes importantes, pois, quer se queira quer não, o homem não é composto apenas de cérebro. Eu diria mesmo que, para a maioria das pessoas, e não me excetuo, o cérebro tem pouca importância no decorrer da vida.”
Se para Guimarães a lógica não serve para nada, para Freud ela parece inadequada para explicar os fenômenos psíquicos. O psicanalista procura outras fontes, que permitam integrar elementos contraditórios. Nesta direção, em “A significação antitética das palavras primitivas” (1910), chama a atenção para vocábulos compostos, que combinam conceitos contraditórios para exprimir a significação de uma de suas partes. Defende que o aparente enigma é de fácil resolução, uma vez que “nossos conceitos devem sua existência a comparações”. Para fundamentar sua posição, apresenta trechos do estudo filológico de Karl Abel:
“Se sempre houvesse luz não seria possível distinguir a luz da escuridão ( …) De vez que todo conceito é dessa maneira o gêmeo de seu contrário, como poderia ele ser de início pensado e como poderia ele ser comunicado a outras pessoas que tentavam concebê-lo, senão pela medida do seu contrário? (…) O homem não foi, de fato, capaz de adquirir seus conceitos mais antigos e mais simples a não ser como os contrários dos contrários, e só gradativamente aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a pensar em um deles sem a comparação consciente com os outros”. (Freud, 1996 a, p. 163)
As palavras de Karl Abel permitem estabelecer analogia entre a formação de conceitos e o comportamento de Joãoquerque e Ipanemão. Assim como os conceitos apresentam duas faces contrárias entre si, uma das quais esquecidas atualmente quando se evoca a outra, também as personagens são compostas por dois elementos contraditórios – coragem e covardia -, no entanto apenas uma parte fica visível, a outra permanece fora da consciência.
No conto, para trazer à tona o que está fora da consciência, é necessária a presença de um espelho, em cujo reflexo será possível visualizar as imagens invertidas. Nessa perspectiva, encontra-se a função de Mira (cujo nome evoca simultaneamente contemplar-se e fazer pontaria para um alvo), a primeira a ser evocada antes do “insight” do protagonista: “Veio-lhe a Mira à mente” (Rosa, 1985, p. 61).
Num primeiro momento, no olhar da amante, como em um espelho, Joãoquerque vê a imagem do perseguidor invertida, isto é, não a do homem corajoso, mas a do covarde; daí compreende o motivo do sofrimento do outro, pois é corajoso na superfície, mas covarde “nos subterrâneos”. No segundo momento, percebe que ele também tem sua imagem invertida e intui que sua covardia é superficial, mas sua coragem, profunda. Logo, o protagonista tem dupla revelação: o seu funcionamento psíquico e o de Ipanemão.
No conto, a revelação é assim descrita: “Via: quem vivia era Ipanemão, perseguindo-o a ele mesmo, Joãoquerque, valentemente.” (Rosa, 1985. p. 61). O verbo perseguir, que pode ser transitivo direto quando se refere a perseguir algo ou alguém, ou pronominal quando o objeto da perseguição é a própria pessoa, transforma-se no conto em um verbo transitivo direto e pronominal simultaneamente. Com essa criação sintática, fica claro que o sujeito (Ipanemão) persegue o objeto (Joãoquerque), mas esse objeto é “ele mesmo”. Em outras palavras, A persegue não-A, mas não-A é A. Sem dúvida, a construção estoura com todas as leis da lógica formal: identidade, contradição e o terceiro excluído.
Para entender como o protagonista se torna projeção do próprio bandido, seu duplo, é preciso recorrer aos estudos dos seguidores de Freud, especialmente Melaine Klein e Bion, que passam a adotar o termo “identificação projetiva” para designar o processo de o sujeito expelir traços indesejáveis de sua personalidade projetando-os no objeto. Em Evolução do conceito de identificação projetiva, Marialzira Perestrello e outros defendem que, na fantasia, essas partículas expelidas do ego se orientam para uma existência independente e incontrolada, fora da personalidade.
Esse parece ter sido o entendimento do protagonista ao perceber que Ipanemão perseguia-o, porque ele (Joãoquerque) concentra o traço da personalidade que o outro expelira: o temor, a covardia. Em suas palavras, “Remedava de ele próprio se ser então o Ipanemão, profundo” (Rosa, 1985, p. 61). Além disso, ao se desdobrar, o bandido iludia-se agindo sobre o exterior, o que, na verdade, era seu drama interior. Com essa clareza, Joãoquerque abandona o papel de perseguido: “se representou, sem ser do jeito de vítima.”
Em decorrência desse jogo especular seria plausível esperar que os papéis se invertessem a partir deste momento, com o perseguidor na condição de perseguido e vice-versa. A primeira leitura parece confirmar essa hipótese, entretanto as posteriores revelam que Joãoquerque, ao pegar um machado e seguir em direção ao opositor, não executa um ato de vingança, mas de ajuda.
Ciente de que coragem e covardia são duas expressões antitéticas de uma mesma relação, certo de que o mecanismo que atinge o bandido, ele próprio se estende à humanidade em geral, e convicto de que o sofrimento do outro decorre da impossibilidade de integrar uma parte de seu self, Joãoquerque vai ao encontro do rival para ajudá-lo a reintegrar a parte projetada.
O narrador anuncia: “Diz-se que era o dia do valente não ser”. Em termos de lógica formal, era o dia de A ser não-A. Ipanemão, de cócoras em frente da casa de Mira, não vê a chegada do protagonista. Esse se aproxima “desvirado convertido” e pede: “-Olhe!” E continua o narrador: “e, erguendo com as duas mãos o machado, braz!, rachou-lhe em duas boas partes os miolos da cabeça. Ipanemão, enfim, em paz” (Rosa, 1985, p.62).
Uma forma tão particular de assassinato não deixa dúvidas quanto ao seu caráter simbólico. A cena, que evoca a mitologia grega, permite estabelecer a seguinte analogia: assim como Zeus, com uma machadada na cabeça, dá a luz a Palas Atena, deusa da sabedoria; também Ipanemão tem sua cabeça rachada em duas boas partes por um machado, para enfim ter paz. A morte é o momento em que o bandido se liberta do papel de algoz, experimenta a condição de vítima, para, em seguida, abandonar os dois papéis e morrer em paz.
Desta forma, percebe-se que tanto Joãoquerque quanto Ipanemão conseguem se desenredar da crença que os oprimia e alcançar a sabedoria. Na verdade, nem Ipanemão era o covarde que imaginava, tampouco Joãoquerque o covarde que representava. Ambos estavam presos nas leis da lógica formal que os impedia de ser valente e covarde misturadamente, para usar uma expressão rosiana.
Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund. “A significação antitética das palavras primitivas” In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996 a. – Vol. IX.
PACHECO, Ana Paula. Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006.
PERESTRELLO, Marialzira et alii. Evolução do conceito de Identificação Projetiva: e contribuições teóricas e clínicas. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, 1979.
RANK, Otto. Don Juan: une étude sur le double. Trad. S. Lautman. Paris: Denoël et Steele, [s/d]
ROSA, Guimarães. Tutaméia: terceiras estórias. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Trad. José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 1998.
ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Trad. Vera Ribeiro, Lucy Magalhães. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998.
[1] . Atribui-se a Jean-Paul Richter a definição do termo em 1796: “pessoas que se veem a si mesmas”[1]. Na tentativa de compreender melhor o fenômeno da divisão da psique, Otto Rank, psicanalista, faz exaustivo levantamento de obras literárias que exploram o desdobramento da personalidade: “L’histoire du reflet perdu” de Hoffmann, “Peter Schlemihl” de Chamisso, “O retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde, “Horla” de Maupassant, “William Wilson” de Edgar Allan Poe, “O duplo” de Dostoiévski, entre outros.
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