Betto della Santa
“Ao final do Séc. 19 as potências coloniais europeias se reuniram, em Berlim, para repartir a África. Foi longa e dura a peleja pelo botim colonial, as selvas, os rios, as montanhas, os solos, os subsolos, até que as novas fronteiras fossem desenhadas e, no dia de hoje, em 1885, foi assinada, ‘Em Nome de Deus Tôdo-Poderoso’, a Ata Geral. Os amos europeus tiveram o bom-gosto de não mencionar o ouro, os diamantes, o marfim, o petróleo, a borracha, o estanho, o cacau, o café e o óleo de palmeira. Proibiram que a escravidão fosse chamada pelo próprio nome. Chamaram de ‘sociedades filantrópicas’ às empresas que proporcionavam carne humana ao mercado mundial. Avisaram que atuavam movidos pelo desejo de ‘favorecer o desenvolvimento do Comércio e da Civilização’ e, caso restasse alguma dúvida, explicava-se que atuavam preocupados ‘em aumentar o bem-estar moral e material das populações indígenas’. Assim a Europa inventou o novo mapa da África. Nenhum africano compareceu – nem como enfeite – a essa reunião de cúpula.” (Eduardo Galeano, Os Filhos dos Dias, 26/Fev.)
I.
Uma noite escura e fria, em amplo e desolador cenário outdoor, com um fuzuê de grilhões de ferro. Negros acorrentados, tão escuros quanto a própria noite, caminham macambúzios, pé-ante-pé – em fila indiana –, ao passo do próprio infortúnio. A escolta de homens brancos, guardas a cavalo, leva lampião de fogo que ilumina o breu. O som que reverbera e as imagens em movimento remetem justamente àquilo que a cultura pop clássica do cinema estadunidense – ver-se-á, gênero evocado com força taumatúrgica de verdadeiro “mito fundador” – tradicionalmente estabeleceu como não-dito, inter-dito ou mal-dito: a escravidão negra tal qual pedra-de-toque da formação mesma do Estado nacional em tela. Django Livre, o mais recente longa-metragem de Quentin Tarantino, veio fazer quasi-exatamente aquilo que Bastardos Inglórios fez pelo judaísmo centro-europeu vis-à-vis o nazismo alemão. Se a querela entre Shoshana e o alto escalão do Terceiro Reich conta com recurso da arte (e da política) do novíssimo cinema a vendetta de Django perante os senhores brancos da Casa-Grande se vale da magia (e da técnica) dos antediluvianos mitos recontados ao pé da fogueira. Django, “o gatilho mais rápido do Sul”, é negro. E é seu desejo pessoal de ultrapassar a história por fora e por cima da política, ou melhor, a sua necessidade social de narrativa para além e aquém de qualquer referente extracinematográfico, o quê o sistema trágico-coercitivo do moviemaker mais ironicamente pós-moderno que se tem notícia acima do Rio Grande adveio representar.
Após Bastardos Inglórios não pode haver sombra de dúvida sobre o estatuto, atribuído a Tarantino, de mais célebre personalidade cinematográfica pós-histórica de tôda Hollywood. A citação da citação, o pastiche parafrástico e a celebração do clichê – ou a derradeira perversão de “mais-de-gozar” em espécie de desrrealização (derrisória e autocondescendentemente) cínica –, que perfizeram a semântica, o léxico e a gramática mesmas desta sua poética pós-modernista, atingem, em sua mais nova película, uma conjugação estético-verbal mais-que-perfeita. Como nos ensina a história do cinema, a linguagem daquilo que viemos a conhecer por sétima arte se compõe da figuração formal, inscrita no próprio fato técnico – seja na antiga revelação química ou na atual projeção digital –, de uma dialética viva entre o real e a representação, a verdade e a ilusão ou, como diria Ismail Xavier, a opacidade e a transparência. Se a tradição crítica do cinema moderno compôs o momento de maior autoconsciência reflexiva em seus autores, público e crítica – sobre sua forma e sentido – poder-se-ia dizer que Tarantino, emulando a persona do seu próprio Django, “rompe às amarras” do que considera o “cativeiro” de tudo aquilo que tal tradição representa. Obviamente, Django não abdica das mais diversas citações – dos cenários epopéicos do Mundo-de-Marlboro ao assim-chamado Spaghetti-Western vis-à-vis os ditos Blaxpoitation-Movies – mas, como em Bastardos Inglórios, eleva-os à concretude de projeto conscientemente antimodernista e, ao fim ao cabo, inexoravelmente contrarrevolucionário. Tal assertiva, ao arrepio do brio de milhões de entusiastas – mais ou menos febris (entre os quais se contam alguns camaradas-em-armas) –, pode soar tal qual violência gratuita de assinatura tarantinesca. Mas não é assim. Nem poderia ser. Senão, com os devidos cuidado e atenção, vejamos.
A unidade dramatúrgica atingida no filme anterior ora exacerba tanto um “sentir o drama” da ação, em registro de identidade-aproximação com o desenrolar da “trama” – magnificando à ideia-força tanto de uma esteticização da violência tanto diversa de Kill Bill quanto um desfecho retumbante, tão autoevidentemente ficcional quanto o de Bastardos Inglórios –, como se a recoloca a serviço da “desconstrução” desapiedada de tôdo e qualquer cânone antissistêmico da cinematografia internacional a partir de um (in)tenso diálogo com o cinema mais poderoso do mundo. Retomando à cena inicial, o mesmíssimo Christoph Waltz – não à-tôa merecedor do prêmio Oscar de melhor supporting-actor deste ano –, famigerado oficial caça-judeus de Bastardos, interpreta o alemão que interpela o sinistro séquito dos capitães-do-mato de início aludidos. Dr. King Schultz é precisamente o mesmo, agora re-espelhado para o lado dos bons-mocinhos (até onde, é claro, o bom-mocismo tarantinesco logra atuar, inverter ou diluir). A verve interpretacional de Waltz dá um verdadeiro nó no olho do espectador que o reconhece detrás da barba então inexistente no Coronel Landa. Se o enunciado não-verbal do vilão clássico anterior nos reportava à superafetação melodramática, ao diálogo rocambolesco e ao deleite mesmo pela “representação da representação” – da máscara teatral, em-si e para-si (origem etimológica, do greg. antig., da palavra “personagem”, “persona”, pessoa) – este o faz, em chave símile, para além da metáfora. Seu “novo-velho” alemão (que bem poderia ser um remoto ascendente da linhagem protonazista europeia, em plena barbárie originária americana) é tão culto e refinado quanto seu “antecessor-sucessor”. Por conta deste seu vocabulário erudito é, muito prontamente, repreendido pelos matutos e capiaus nativos, ao que se desculpa muito educadamente, dizendo ser o inglês o “seu segundo idioma”. Tôda civilidade ocidental européia, tão bizarramente contrastante com a selvageria bruta dos locais quanto ao fato mesmo da escravidão negra, é configurada como um fora-de-lugar a partir de realidades ficcionais como o invulgar “parlamentar” – processo de negociação diplomática cujas origens mais remotas reconstituem ao processo de expansão marítima do capitalismo mercantil que dá lugar ao tráfico negreiro –, da apresentação de documentos com valor contratual e, ao fim e ao cabo, ao próprio ex-médico ortodentista, ora caçador-de-recompensas(!). Após assassinar a um dos jagunços brancos e deixar à própria sorte o outro (não sem antes remunerá-lo, com devido quantum de dinheiro-vivo, equivalente à mercadoria-Django), explica, pacientemente, aos ex-cativos, o(s) novo(s) cenário(s) da respectiva “liberdade”. E revela a Django a natureza análoga do mercadejar de carne humana que seria a “alma” de tôdo negócio. Os primeiros atos – que, se não chegam a constituir prólogos, são quase isso – dos dois filmes são rigorosamente análogos. O supercachimbo do coronel de Bastardos é substituído pelo igualmente cênico “dente-ícone”, no topo da carruagem do caçador-de-recompensas. (Quê – com igual sucesso – arranca gargalhadas da platéia, ao vê-lo sacolejar, e “quebra”, espetacular, o “drama”…)
II.
A faca afiada de Aldo, o apache (Brad Pitt), é substituída pelo gatilho ligeiro de Django (Jamie Foxx). O registro dialogal apresenta natureza e limites unos e diversos. E o outrora mis-en-scene da Europa em contenda dos anos 1940 é reconvertido em uma igualmente belicosa América em formação nos anos 1850. O sistema de parceria entre um alter-ego alemão e o herói africano-americano é firmado após a primeira empresa conjunta, que estabelece a tessitura e as cores do conjunto da obra, como em Cavaleiro Solitário, As Aventuras de Zorro e tantos outros materiais do gênero. Os movimentos de câmera, as tomadas cinematográficas e as respectivas angulações são a homenagem mais ostensiva de Tarantino ao que há de mais “americano” no assim-chamado “cinema americano”. Se Brokeback Mountain havia posto em questão a virilidade de tal cinema de modo perto do irreversível – o que valeu uma edição tópica do gênero western, de sugestão homoerótica, na festa do respectivo Oscar; e cuja recepção raivosa foi um dos motivos-geradores do suicídio do brilhante Ledger – foi preciso ao cineasta reativar simbolicamente cada um de seus signos indiciários antes de se prestar a transformismo digno de uma “extreme-makeover”. Para isso, a figura de um alemão caçador-de-recompensas que simula a alforria de Django, supostamente livre, cumpre papel decisivo. É ele quem faz compreender a Django que, a partir do seu encontro, o último passará a “representar um papel” para o qual, inclusive, poderá “escolher um figurino”. Django, em impecável interpretação realista de Foxx, dirá a seu interlocutor europeu: “O escravo-de-casa é o negro mais desprezível dentre os negros. Só não é mais odiável do que o feitor-de-escravos negro.” Mal-sabe Django, mas aqui seu personagem, em ato mental dublê de um Hegel, abre a voz e o tempo canta. É nada mais e nada menos do que o discurso político de Malcom-X – em especial a distinção entre field-negroes e house-negroes – que aparece aqui transfigurado (e devidamente justaposto) à dialética senhor-escravo do mestre alemão, que assombra como um espectro a rondar o Sul estadunidense pré-guerra civil. Ao que daí então responde King Schultz: “pois então, interprete o papel; quão mais sujo, melhor.” Esta lição não se lhe passará desapercebida.
A cena subsequente já traz Django a cavalo, o quê, evidentemente, é muito mal-visto por todos os/as concidadãos/ãs brancos daquela América escravocrata. Uma tal relampejante “empowering-exegesis” só se perfará na cena do saloon típico. Após assassinar à queima-roupa o Sheriff (xerife-executor) da cidade, manda o dono da taverna chamar o Marshal (oficial-legislador) do condado, em sequência de ato/real, “passivo-agressivo”, em que mata à autoridade local e se subsume ato-contínuo à lei-em-armas do Estado com a tranquilidade de quem vê acender cigarro-de-palha e diz: “Obrigado, não fumo”. Pós-remuneração (subalterna) de Django, o velho alemão pergunta a este o que pretende fazer com seu montante. Ao que Django responde que intende comprar a liberdade de sua esposa, Brunhilda, tudo muda de figura. O personagem alemão reconta a Django, então, a estória de Brunhilda e seu amado, Siegfried (ao que Django toma assento perto da fogueira, tal o espectador se acomoda na poltrona do cinema ou diante da tevê). Em versão popular do mito nórdico do Séc.13 a valquíria Brunhilda é resgatada do círculo de fogo – no alto de uma montanha (“sem montanhas não há lenda alemã”, diria o bom e velho Doutor King, como que se justificando face a toda arquitetônica tarantinesca…) – pelo heroísmo sentimental de seu Siegfried. Nesta cena, a função metalinguística omnipresente em Bastardos – com incontáveis referências ao cinema tal fato técnico, da Operação-Kino ao atentado final – é substituída por um dispositivo que a compreende e supera. O alemão, de pé diante de uma rocha, imprime seu gestus como que prestes a gravar à força de cinzel a história na pedra. Como quem não quer nada (e quer tudo) o alter-ego de Tarantino nos rememora a ontogênese social da linguagem na pré-história humana. A pintura rupestre, tanto quanto a projeção de luzes e sombras, como ancestral narrativo do cinema. (Se QT leu ou não os célebres ensaios de Walter Benjamin não vem ao caso.) O que se vê a seguir é uma elipse narrativa que mostra o companheirismo-de-viagem (e o código de conduta) de Django e seu parceiro. A desenvoltura de Django ao cavalo, sua excelência em tiro-ao-alvo e sua rapidez no gatilho são absolutamente inatas. Como nos muitos filmes, seriados e HQs norte-americanos as habilidades de Django não nos são minimamente explicadas. Django monta a cavalo e atira sua pistola com maestria… porque sim. E, questioná-lo, seria qual objetar à canção em um musical. Não faria, ali, o menor sentido.
A “representação da representação” é a senha mesma do motim de tôdo o filme. Vejamos, aqui, apenas alguns exemplos. Antes de subir à casa de um senhor-de-escravos primeiramente turrão e maldoso, prontamente adocicado pelos dólares-a-ver, o personagem de Waltz sugere ao proprietário de terras como Django deve ser tratado, já que não se trata de um escravo. Este reconta a sua ama-de-casa como tratá-lo, e, ao fazê-lo, a põe confusa. Se não deve ser tratado como negro ou branco, como, então, tratá-lo? Tôdo o diálogo se dá em meio a muitos sorrisos amarelos, apodos carinhosos e polidez fingida de cativos, diga-se de passagem. O tal jogo de cena atinge seu ápice tragicômico quando Quentin Tarantino dá sua versão à criação da seita eugenista da Ku Klux Klan e, sem maior perturbação, põe um fim ao recém-criado grupo social da sociedade civil estadunidense com uma explosão de dinamites em emboscada digna dos melhores momentos da ação western em assaltos de trem, duelos ao cair do dia ou sequestros de autoridades. Não sem antes se rir, larga e fartamente, daquilo que na tela não passa de um absoluto nonsense: não se vê a caricatura de um vil bando de incitadores ao ódio racial mas, antes, associativismo com democracia direta, consenso intersubjetivo e, no limite, tão-só um líder irascível… Ao cozer o filme com este fio argumentativo condutor, feito do mesmíssimo material emprestado à feitura de Bastardos Inglórios, mais uma vez Tarantino sugere que não há história para além da própria estória em tela ou, por fim, a própria “história do cinema”. Se a recepção do filme anterior pelo público judeu fora relativamente problemática o mesmo não se pode dizer, sequer eufemisticamente, de Django. Spike Lee, o cineasta – e ativista – negro, veio a público desautorizar Tarantino diante do tema, dizê-lo desconhecedor da causa e, no limite, acusá-lo de racismo. Tal anúncio não causou-lhe maiores problemas ao diretor (e até mesmo acalentou certa publicidade gratuita no interior do star-system). Se a crítica procede ou não, existe já algo de criptografado no inconsciente político das marcas do (in)visível tarantinesco. Ao apresentar a escravidão como “cena”, Tarantino insinua certa complacência dos negros e negras que aceitam às “regras do jogo”. A justaposição dual de resistência-conformismo, afeita à fórmula-cânone de love-story, dentro deste inusitado western ítalo-africano-americano, vem, de alguma forma, denunciar os arrivismo/colaboracionismo/propositivismo qual, no mínimo, indulgentes.
III.
Se a malha tarantinesca é entretecida justamente por re-representações deve-se dizer aqui que a direção de atores (e a interpretação de personagens) é digna de aplauso. As infinitas camadas de significação promovidas pelos nomes-de-guerra em Bastardos é substituída pelos apelidos-de-escravos em Django. Se o filme re-apresenta uma versão fictícia dos KKKs, relata, com algo de deleite narrativo, à ultra-passada “ciência” frenológica – que daria lugar à craniologia de Lombroso, p.e. – Tarantino não se exime de apresentar uma mórbida versão humana da rinha de galos: o Mandigo-fighting. Não há outra evidência empírica que corrobore a factibilidade da luta-Mandigo, na qual escravos negros pelear-se-iam até à morte, senão um filme obscuro (como muitas referências de subgêneros cinematográficos, ecoadas por QT). Ao que tudo indica o nome Mandingo referir-se-ia a uma etnia/nacionalidade de matriz tribal centro-africana, e nada mais. O efeito de sentido, contudo, turva à visão de mundo. Se houve KKK e frenologia, por que não dar crédito às supostas rinhas de escravos negros? Se a cena da taverna é o momento por excelência do simulacro baudrillardiano em Bastardos o mesmo ocorre no ato final de Django, quando a dupla de cavaleiros chega finalmente à fazenda na qual se encontra Brunhilda. E se Jamie Foxx e Christoph Waltz suportam o começo do filme, Leonardo DiCaprio e Samuel Jackson sustentam sua parte final. Trata-se do lócus dilacerado desde o qual uma sociedade de castas declinante, prestes a se transformar numa sociedade de classes ascendente, vai até os limites possíveis e imagináveis sondando os interstícios inescrutáveis que a forma-mercadoria – da ética à estética – consubstancia, do patriarcado/posse pessoal até a propriedade privada/capital.
Calvin Candie (DiCaprio) – um patético senhor, de modos afrancesados (que sequer fala francês) – se nos é apresentado em plena sessão de “luta-Mandigo”. O seu negro enfrenta o negro de um improvável senhor de escravos italiano que, junto ao personagem alemão e a presença nada incidental de Pour Elise, do clássico Beethoven, recorda a ambiência europeia-ocidental transcriada em Bastardos em plena América do Norte de Django. A cultura e a barbárie europeias que deram lugar tanto a Kant quanto a Auschwitz parecem ser fabricadas pelo mesmíssimo tecido que deu lugar ao modo de vida autenticamente norte-americano. Após relativizar culturalmente, em chave pós-moderna, o holocausto nazista, o ambicioso objetivo de Tarantino não poderia ser outro senão operar sua história contrafactual à barbárie escravista. Ao fazê-lo, Tarantino não se interessa em absoluto pela história da resistência antifascista ou, minimamente, pela sociabilidade africano-americana. Caso o fizesse, aliás, teria material de sobra para a pesquisa estética em que a vida excede a arte. (O cancioneiro popular revolucionário, as peças-didáticas e o agitprop ou mesmo a literatura de testemunho no primeiro caso e, no segundo, uma ampla e vasta coleção de spirituals negros, worksongs de escravos e uma infinidade de mitos da história social do jazz, do blues e até do soul.) Tarantino prefere fazer troça dos usos e costumes negros, como quando uma escrava zombeteia à roupa de cores e texturas inusuais do recém-homem livre, emoldurá-los na categoria abstrata e inamovível de “criados-mudos” – apáticos, servis e assujeitados – e, enfim, torná-los incapazes de qualquer unidade entorno a reivindicações imediatas de luta e resistência. (A polêmica entre Anatol Rosenfeld e Augusto Boal em relação à concepção de herói de algum modo e em alguma medida é aqui inadvertidamente refigurada por Tarantino. Brecht afirmara, certa feita, algo como coitado do povo que precisa de heróis.) Django, individuo liberal fora-de-lugar, é tudo enquanto o sujeito coletivo, povo negro, é nada…
No vórtex de encenações, falsidades ideológicas e ondas de ressignificação Django agora é representado como um especialista em lutas de negros e o seu suposto patrão alemão como um iniciante empresário do respectivo showbizz. O disfarce serve ao propósito de mascarar o objetivo real de comprar a alforria de Brunhilde a qual, muito provavelmente, está prestes a se transformar em uma escrava de favores sexuais. A intrepretação de Foxx sofre um crescendo musical à medida mesma em que decresce a atuação de Waltz. Uma espécie de romance de formação, ao longo do filme, teria proporcionado a “educação sentimental” de Django no/para o mundo dos brancos em que o aprendiz teria superado o feiticeiro. Por vezes parece que Django porá tudo a perder com seu endurecimento mas é este quem salvará a “autenticidade” do papel do patrão alemão quando de seu fraquejar. Quando cães esquartejam um escravo foragido, por exemplo, o embate entre o mundo da impessoalidade do dinheiro e o escrúpulo moral remonta ao melhor da dramaturgia épico-dialética centro-européia e traz, em si, ressonâncias/reverberações de certo tipo de Santa Joana dos Matadouros pós-moderna. (Ou leitura mal-estar fin-de-siecle da fina ironia dum Machado de Assis mundializado.) O frio interesse, a cruel exigência “in cash only”, as gélidas águas do cálculo egoísta. Estes são os destinos do entusiasmo cavalheiresco, o sentimentalismo pequeno-burguês e/ou o orgulho pedante. A dignidade pessoal se converte em um mero valor de troca. As numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, substituem-se pela única e implacável liberdade: de intercâmbio. Numa só palavra, em lugar do domínio velado por ilusões –terrenas ou celestiais–, a burguesia capitalista colocará de pé a exploração –“aberta, direta, cínica e brutal”– do homem pelo homem. É este o sentido da fala de DiCaprio ao escravo foragido quando este lhe pergunta, retoricamente: “você irá restituir meus quinhentos dólares?”. A educação sentimental de Django pode ser lida como a crítica estética da imagem-fetiche que o Estado-nação em formação se exime de levar a cabo e habita o ideário e, em especial, o imaginário do individuo liberal in nuce.
IV.
Vistos com algo de distanciamento crítico, os filmes de Tarantino perfazem uma espécie de universo paralelo – super-ficcional – onde/quando a vingança, por motivos pessoais ou crimes históricos, ocupa um lugar central e o impossível pode (e deve) vir a ser. Uma semiologia fílmica ocupar-se-ia de decupar plano-a-plano o que constituiria a matéria macarrônica de Django: paleta de cores vívida, trilha sonora intrusiva – e semi-operística (com Ennio Morricone) –, certa desatenção pela continuidade e, como não poderia deixar de ser, ultra-violência c(i/e)nicamente justificada. A sobrerrepresentação fecha o círculo dos ancestrais Budd Boetticher e Sergio Leone e, agora, com Quentin Taratino, repatria-se o gênero Europa-America. Mas a marca de enunciação mais importante é outra. Se o western norte-americano retratou aos Confederados como um nobre falhanço, o bang-bang italiano sempre representou os pioneiros brancos como vilões corruptos. É através destas lentes – e não da história social e política pré-guerra civil estadunidense – que o autor irá retratar o velho Sul. A polêmica com Spike Lee, no mais das vezes mal-apresentada como um desses duelos egóico-passionais, remonta a este problema justamente, e não à cor da pele do realizador. Qual é o objetivo de representar a história da escravidão negra na América do Norte sob o espelhamento da convenção Spaghetti-Western? Ou, em miúdos, trata-se de um filme de quem tem algo a dizer ou negócios a fazer? Criticar o showbizz da indústria de Hollywood nestes termos pode soar algo naïf. Mas não se trata do mesmo star-system sob o qual atua Lee? Sob qualquer ponto de vista realista – de ambos os lados do Expressionismus-Debatte, já seja o de um György Lukács ou de um Bertolt Brecht – o filme perfila-se como bárbara representação da realidade bárbara em franco combate à autocrítica modernista. E, não bastasse isso, busca os principais inter-ditos do cinema comercial para reafirmar a função do espetáculo tradicional, i.e., apassivar os espectadores numa fantasia compensatória. A política do sensível na cena mostra, em extreme close-up, a realidade da tortura, do estupro e da castração. A cada passo se faz mais odiosa a Casa-Grande de plantation. A distinção malcomiana entre field-negroes e house-negroes – o primeiro, “odeia o senhor branco e seu meio”, e o segundo, “ama-o mais do que ama a si mesmo” – é elevada à materialidade sensível do filme tarantinesco em um “duelo final” entre dois negros: o negro da casa e o do campo.
A sociabilidade competitiva instaurada pela ordem em pleno marco epocal do capital-imperialismo atual e atuante é a lente decisiva – e histórico-contemporânea – sob a qual se vê refletida/refratada a sua pré-história ainda-não-ultrapassada. A fantasia compensatória de Quentin Tarantino na verdade atua como a transubstanciação estética da política real – interna e externa – que uma elite estadunidense cada vez menos afeita à forma-democracia gostaria de colocar em prática de modo tão cru e desabrido como sugere a câmera tarantinesca. (E o faz, sob a batuta geral de Barack Obama, o primeiro presidente não-branco dos Estados Unidos da América.) A comparação estabelecida pela crítica cultural e política left-wing do império do capital entre Lincoln e Django, elegendo o último como campeão da política de identidade, do multiculturalismo e da teoria-queer é, no mínimo, sintomal. O sujar-se às mãos do homem negro – sim, porque a mulher negra assume o estatuto de objeto, ao longo de todo o filme – é, enfim, a única alternativa para aceder à cidadania plena neste mundo-livre. O racialismo de Django é a resposta derradeira de até onde pode ir uma visão social de mundo representada pela crítica cultural e política da esquerda liberal norte-americana. Como escravos-de-casa que amam ao senhor mais do que a si mesmos artistas e intelectuais, pertencentes ao núcleo duro da classe média norte-americana, recriam à sua ambiência social e estética.
A história social dos vencidos – a mulher, em Kill Bill; o judeu, em Bastardos Inglórios e o negro, em Django Livre – não é redimida pela filmografia recente do autor. O elogio ao simulacro de sua redenção histórica é uma anticrítica à sua efetiva espetacularização. Os grupos sociais subalternos seguem à margem da história quando se-os fazem protagonistas da estória. Se há algum antepassado a ser redimido pela nova geração é aquela tradição autocrítica formada por realizadores cuja razão-de-ser não se desfazia das marcas do real e, ao mesmo tempo, abominava qualquer “moral da história”. O efeito-de-ilusionismo, tão festejado pela imprensa local e mundial, serve ao bastante velho e nada bom propósito da catarse aristotélica. É a cena final do casal negro, cavalgando ao final do dia. Com o apuro técnico e formal da maior indústria filmográfica mundial o que nos apresenta Django é uma velha forma de suscetibilidade pós-moderna, um renovado arcabouço de imagens-fetiche e um modo de sentir e pensar tardocapitalista que, se não redime a memória de nossos antepassados escravizados, pretende reconciliar as formas de consciência atuais com a miséria anti-utópica de um presente eternizado. Em resposta a um fã que retrucara que Spike Lee não deveria levar filmes tão a sério, posto que são “apenas” entretenimento, o cineasta negro respondeu: “Errado. O Nascimento de uma Nação – de D.W.Griffith, EUA, 1915 – levou ao linchamento de negros. A indústria cultural é poderosa. Acorde para o mundo, cara.” Como bem se sabe de-há muito, a política revolucionária sempre caminhou lado-a-lado com a arte modernista, por todo o Séc.20. A arte antimodernista – e sua política contrarrevolucionária –, revigorada neste ínicio de Séc.21, deve ser combatida golpe-a-golpe, verso-a-verso. Hoje, como antes: contra a esteticização da política, a politização da arte.
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