Felipe Demier
Trotsky e a afirmação de uma historicidade própria dos países atrasados
Reeditando o evolucionismo vulgar que predominou na II Internacional – e que, nas duas primeiras décadas do século XX, vertebrou a leitura dos mencheviques sobre o caráter e os sujeitos de uma possível revolução russa –,[1] a Internacional Comunista (IC) passou a negar categoricamente o caráter “socialista” da revolução nos países atrasados. Segundo seus teóricos, em razão do incipiente desenvolvimento do capitalismo nesses países – o que se expressaria pela vigência de estruturas sociais pré-capitalistas –, tornava-se necessário nos mesmos a realização de uma revolução (etapa) “democrático-burguesa” que abrisse caminho ao florescimento das forças produtivas capitalistas, o que só então colocaria a possibilidade da realização, em algum dia longínquo, de uma revolução socialista.
Essa compreensão da IC acerca do caráter das revoluções nos países atrasados “coloniais” e “semicoloniais”, longe de reduzir-se a mera elucubração teórica, tinha implicações diretas nas lutas travadas pelos trabalhadores dos países submetidos ao imperialismo. A partir de uma visão demasiado esquemática e “etapista”, os dirigentes da IC orientavam os partidos comunistas (PC’s) dos países periféricos a estabelecerem alianças com a burguesia “nacionalista” e/ou a pequena-burguesia com vistas à formação de frentes políticas capazes de lutar contra o “imperialismo” e o “feudalismo”/“latifúndio”.[2] Desde a segunda metade da década de 1920, com exceção do breve interregno 1928-1934, essa foi a estratégia política adotada pelos agrupamentos comunistas de linha estalinista nos países “coloniais” e “semicoloniais” ao longo do século XX, com destaque para o Oriente e para a América Latina.[3]
León Trotsky (1879-1940) foi, sem dúvida, o principal adversário desse programa da IC que levou a inumeráveis desastres do proletariado mundial. Sua defesa de que somente os trabalhadores, apoderando-se do leme do Estado e implantando a sua “ditadura”, poderiam resolver as chamadas tarefas “democráticas” pendentes nos países atrasados resultava de uma compreensão histórica diametralmente oposta a dos teóricos estalinistas. Trabalhando com uma perspectiva que compreendia o capitalismo como uma totalidade contraditória, e não como uma mera soma de nações (partes) isoladas, Trotsky afirmava que as regiões coloniais e semicoloniais não poderiam desenvolver a sua história em separado, e, portanto, não seria possível superar o atraso passando-se a um “estágio” superior ainda dentro dos marcos do capitalismo. O sistema capitalista, em especial a partir de sua fase imperialista, não deixaria mais espaço para esses desenvolvimentos “autônomos”, impossibilitando que a história das regiões retardatárias repetisse a história das regiões pioneiras. Do mesmo modo, o desenvolvimento histórico das nações centrais dependeu e dependia inteiramente das relações estabelecidas com as formações econômico-sociais periféricas. Em relação aos países atrasados, Trotsky retirava como conclusão a necessária simultaneidade de várias revoluções: a revolução antiimperialista seria a ante-sala da revolução socialista, porque só a ruptura com as burguesias nacionais associadas ao imperialismo poderia levar a luta pelas independências nacionais até ao fim.
Por conta da desigualdade de ritmo do desenvolvimento do capitalismo no plano internacional (lei do desenvolvimento desigual, de Lênin), as nações atrasadas, segundo Trotsky, acabavam por possuir uma historicidade própria no que diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo no seu interior, marcada pela assimilação dos elementos mais modernos das nações avançadas e sua adaptação a condições materiais e culturais arcaicas. Esta superposição dialética entre inovações tecnológicas, políticas e culturais produzidas pelos países avançados e relações sociais muitas vezes pré-capitalistas presentes nos ambientes atrasados se constituiria na essência combinada do desenvolvimento capitalista realizado pelos países retardatários, especialmente pelos coloniais e semicoloniais. Desse modo, os países atrasados ingressavam na era industrial mantendo pendentes as soluções das principais tarefas “democrático-burguesas”, tais como as questões agrária e nacional. Entretanto, as burguesias periféricas, surgidas tardiamente na arena histórica, atreladas ao capital estrangeiro e aos grandes proprietários rurais, e extremamente temerosas do proletariado, seriam, segundo Trotsky, incapazes de realizar qualquer tipo de revolução “democrática”, o que colocava na ordem do dia para os trabalhadores dos países atrasados a conquista do poder político. Na concepção de Trotsky, portanto, seria o modo combinado como o capitalismo se desenvolvia que designaria o caráter da revolução e os sujeitos sociais revolucionários nos países atrasados. A adição, por parte de Trotsky, do elemento “combinado” na lei do desenvolvimento desigual de Lênin fez com que a perspectiva do primeiro concernente ao desenvolvimento das nações atrasadas ficasse conhecida como lei do desenvolvimento desigual e combinado.
Desde 1906, quando, preso nos cárceres czaristas por seu papel na Revolução de 1905,[4] escreveu sua brochura intitulada Balanços e perspectivas,[5] Trotsky já apontara a impossibilidade de realização de qualquer etapa revolucionária “democrática” na história futura da Rússia nos mesmos moldes como ocorrera na Europa revolucionária de fins do século XVIII e parte do XIX. Contrariando o evolucionismo do raciocínio histórico menchevique, Trotsky, levando em conta a gênese, a composição e a relação entre as classes sociais do país, afirmou o caráter “socialista” da revolução a ser realizada na Rússia. Somente a “ditadura do proletariado”, “arrastando atrás de si os camponeses”, poderia realizar as tarefas “democráticas” deixadas de lado pela impotente, “débil” e contra-revolucionária burguesia russa. Em outras palavras: na Rússia, medidas “democráticas”, de natureza capitalista – em especial a reforma agrária –, que, nos países avançados foram realizadas sob a direção burguesia (e que foram vitais para o florescimento do capitalismo), só conseguiriam ser efetivadas na prática se os trabalhadores se apossassem do leme do Estado.[6] Dada a natureza atrasada do país, que o deixava com uma série de tarefas históricas pendentes, impossíveis de serem superadas ainda no plano do capitalismo, a classe trabalhadora no poder teria que combinar tarefas “democráticas” e “socialistas” no caminho da construção de uma nova sociedade que, por sua vez, só poderia ser alcançada com a vitória do proletariado no espectro internacional. O capitalismo russo, portanto, não poderia conhecer nenhuma etapa “democrática” em seu desenvolvimento. A bandeira da “ditadura do proletariado” colocava-se, na perspectiva trotskista, na ordem do dia para os trabalhadores russos.[7]
Da experiência revolucionária de 1905 até a vitória dos bolcheviques em outubro de 1917, Trotsky, no exílio, publicou vários artigos e panfletos em periódicos da esquerda européia, em especial os dirigidos por emigrados russos, nos quais defendeu suas concepções acerca da revolução russa.[8] A incapacidade do governo provisório russo instaurado a partir da Revolução de Fevereiro de realizar medidas democráticas significativas fez com que se confirmassem os prognósticos de Trotsky acerca da fragilidade e impotência da burguesia russa no poder. A congruência entre as visões de Trotsky e de Lênin referentes à estratégia a ser adotada pelo proletariado diante do governo Kerensky (tomada do poder, “todo poder aos soviets”) teve como corolário a adesão do primeiro ao partido bolchevique. Uma vez conquistado o poder por este último, Trotsky assumiu funções-chave na condução do Estado soviético (Relações Exteriores, Exército Vermelho, política econômica etc.) e relegou a segundo plano o debate sobre o caráter da revolução nos países de desenvolvimento capitalista retardatário.[9]
Seria somente cerca de dez anos depois da Revolução de Outubro, por ocasião da revolução chinesa de 1925-1927, que Trotsky retomaria sua produção sobre essa temática. Imerso diretamente em polêmicas com a direção da IC referentes à política revolucionária para a China, Trotsky buscou sistematizar sua “teoria” da revolução para os países atrasados. Em novembro de 1929, exilado em Alma-Ata após sua expulsão do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), Trotsky concluiu sua obra A revolução permanente, publicada em 1930.[10] Quase que inteiramente baseada no caso chinês, a obra respondia aos pesados ataques que o autor recebera dos estalinistas do Komintern por conta das críticas que fez à política desastrosa desse para o Oriente revolucionário.[11] Defendendo-se dos “epígonos”[12] que comandavam a IC e de seu ex-companheiro da “Oposição de Esquerda”, Karl Radek,[13] Trotsky tomou a experiência da Revolução de Outubro para demonstrar tanto como havia acertado em seus prognósticos feitos desde Balanços e perspectivas (que, como frisa Trotsky em A revolução permanente, não eram, como diziam os estalinistas e Radek, opostos aos realizados por Lênin, e sim muito próximos destes) como para defender a impossibilidade de uma revolução “democrático-burguesa” na China atrasada e semicolonial. Dado o modo desigual e combinado como o capitalismo se desenvolvera nesse antiqüíssimo país oriental, somente a ditadura do proletariado, passando, de modo ininterrupto, ou seja, permanente, das medidas “democráticas” às medidas “socialistas”, poderia livrá-lo de suas estruturas arcaicas e de sua submissão ao imperialismo. Trotsky imaginava que o proletariado chinês seria o sujeito social desse processo, aliado às massas camponesas majoritárias. Mas, as complexas circunstâncias da história – derrota proletária em Cantão, destruição da IC pelo estalinismo e as pressões da contra-revolução – levaram o substitucionismo social a um surpreendente desenlace, muito além do que o próprio autor da “teoria da revolução permanente” tinha imaginado: uma revolução agrária anticapitalista. O proletariado não substituiu a burguesia, como na Rússia, mas os camponeses substituíram o proletariado. A dinâmica permanente da revolução, no entanto, se confirmou: foi necessário destruir a propriedade privada para que a China conquistasse, em 1949, sua independência de fato.
Segundo Alvaro Bianchi, foi em A revolução permanente que Trotsky produziu a terceira e última versão de sua “teoria da revolução permanente”. Para Bianchi, a primeira teria sido formulada nos escritos de Trotsky realizados no imediato pós-revolução de 1905 (em especial, em Balanços e perspectivas), nos quais o jovem militante definiu o caráter e os sujeitos sociais da revolução a ser empreendida na Rússia czarista. Uma segunda versão da teoria poderia ser percebida quando Trotsky, aderindo à perspectiva leninista de organização, compreendeu a necessidade de um sujeito político, o partido bolchevique, dirigir o proletariado rumo à revolução (essa compreensão por parte de Trotsky teve como conseqüência prática a sua adesão e a de seu grupo Mezharaionka [Organização Interdistrital] ao partido de Lênin). A terceira versão, expressa em A revolução permanente, seria marcada por um forte viés internacionalista, que vinculava a compreensão do caráter da revolução nos países coloniais e semicoloniais ao pressuposto analítico de tomá-los como elementos constituintes de um sistema internacional, o capitalismo mundial em sua fase imperialista.[14]
Entretanto, seria na História da revolução russa,[15] escrita e publicada durante o exílio turco do bolchevique banido (1929-1933), que o conceito de desenvolvimento desigual e combinado apareceria de uma forma mais acabada. Numa brilhante descrição e análise histórica do processo revolucionário russo desde 1905 até a tomada do poder pelos bolcheviques em outubro de 1917, Trotsky buscou em vários momentos da obra demonstrar como suas teses acerca do desenvolvimento capitalista e conseqüentes possibilidades revolucionárias da atrasada Rússia tinham sido confirmadas pelos eventos históricos.
No primeiro capítulo, intitulado “Peculiaridades do desenvolvimento da Rússia”, Trotsky apresentou uma síntese extremamente rica da evolução histórica russa, destacando todas as contradições presentes em um país que bastante tardiamente iniciou sua modernização industrial capitalista. Se a idéia de que as nações atrasadas desenvolviam seu capitalismo combinando dialeticamente elementos “modernos” e “arcaicos” esteve presente nas análises de Trotsky sobre a Rússia desde Balanços e perspectivas, foi, contudo, em “Peculiaridades…”, que a lei do desenvolvimento desigual e combinado apareceu pela primeira vez nomeada (ainda que, conforme veremos à frente, não completamente):
Um país atrasado assimila as conquistas materiais e ideológicas dos países adiantados. Não significa isto, porém, que siga servilmente estes países, reproduzindo todas as etapas de seu passado. A teoria da repetição dos ciclos históricos – a de Vico e, mais tarde, de seus discípulos – baseia-se na observação dos ciclos percorridos pelas estruturas pré-capitalistas e, parcialmente, sobre as primeiras experiências do desenvolvimento capitalista. O caráter provincial e transitório de todo processus admite, efetivamente, certas repetições das fases culturais em meio ambiente sempre novos. O capitalismo, no entanto, marca um progresso sobre tais condições. Preparou e, em certo sentido, realizou a universalidade e a permanência do desenvolvimento da humanidade. Fica, assim, excluída a possibilidade de uma repetição das formas de desenvolvimento em diversas nações. Na contingência de ser rebocado pelos países adiantados, um país atrasado não se conforma com a ordem de sucessão: o privilégio de uma situação historicamente atrasada – e este privilégio existe – autoriza um povo ou, mais exatamente, o força a assimilar todo o realizado, antes do prazo previsto, passando por cima de uma série de etapas intermediárias. Renunciam os selvagens ao arco e a flecha e tomam imediatamente o fuzil, sem que necessitem percorrer as distâncias que, no passado, separaram estas diferentes armas. Os europeus que colonizaram a América não recomeçaram ali a História desde seu início. Se a Alemanha e os Estados Unidos ultrapassaram economicamente a Inglaterra, isso se deveu exatamente ao atraso na evolução capitalista daqueles dois países […] O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz, necessariamente, a uma combinação original das diversas fases do processus histórico. A órbita descrita toma, em seu conjunto, um caráter irregular, complexo, combinado.
A possibilidade de superar os degraus intermediários não é, está claro, absoluta; realmente, está limitada pelas capacidades econômicas e culturais de um país. Um país atrasado frequentemente rebaixa as realizações que toma de empréstimo ao exterior para adaptá-las à sua própria cultura primitiva. O próprio processo de assimilação apresenta, neste caso, um caráter contraditório. […]
As leis da História nada têm em comum com os sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processus histórico, evidencia-se com mais vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a via retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximação das diversas etapas, combinações das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as modernas. Sem esta lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a história da Rússia, como em geral a de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha.[16]
Fazendo uso dessas considerações teórico-históricas, Trotsky, ao longo de “Peculiaridades…”, expôs como as relações entre desenvolvimento econômico, Estado e classes sociais ao longo da história russa distinguiam-se das ocorridas nos países originários do capitalismo. Nesse sentido, Trotsky dava continuidade à abordagem da evolução russa que realizara nos primeiros capítulos de Balanços e perspectivas; agora, contudo, tinha em mãos, em função dos vinte e seis anos transcorridos entre as duas obras, toda a experiência da vitoriosa Revolução Russa de outubro de 1917. Esta própria revolução, por sua vez, era vista como o corolário político de um desenvolvimento histórico incapaz de ser apreendido a partir de um viés evolucionista. Distintamente da trajetória revolucionária das primeiras nações burguesas industriais, a questão do poder colocou-se para a classe trabalhadora sem que antes houvesse ocorrido no país uma “revolução burguesa” propriamente dita:
A revolução de [fevereiro de] 1917 tinha ainda como fim imediato derrubar a monarquia burocrática. Diferenciava-se, entretanto, das antigas revoluções burguesas, pelo fato de o elemento decisivo que se manifestava agora ser uma nova classe constituída sobre a base de uma indústria concentrada, possuidora de uma nova organização e novos métodos de luta. A lei do desenvolvimento combinado se revela agora em sua expressão mais alta: começando por derrubar o edifício medieval apodrecido, a Revolução eleva ao poder, em poucos meses, o proletariado, encabeçado pelo Partido Comunista [Bolchevique].[17]
Confirmando as antigas previsões de Trotsky, foi destinado ao proletariado russo, quando este se assenhoreou do poder em outubro de 1917, realizar as tarefas “democráticas” da história russa. Nesse sentido, e apenas nesse, foi que Trotsky, desde muito tempo, já reconhecera que a revolução a ser realizada na Rússia poderia ser chamada de “burguesa”, dado que suas “finalidades primeiras” encerravam um conteúdo “democrático”, em especial a reforma agrária. Contudo, e é aí que reside todo o fundamento de sua “teoria da revolução permanente”, Trotsky, como vimos, sempre vislumbrou que somente o proletariado, tendo em suas mãos o controle do Estado, poderia dar conta das questões “democráticas” deixadas de lado pela burguesia russa, ao mesmo tempo em que seria forçado, pela dinâmica da luta de classes, a empreender, de modo combinado com as tarefas “democráticas”, medidas de caráter “socialista”, como a expropriação dos meios de produção pertencentes à burguesia. Não por acaso, o próprio Lênin reconheceu que foi somente a partir de outubro, e não a partir de fevereiro de 1917, que a Rússia realizou sua revolução “democrático-burguesa”, isto é, a partir do momento em que no país começou a se edificar um Estado operário por intermédio da combinação de medidas como a reforma agrária e a nacionalização dos bancos e das grandes indústrias. Quando ficou claro que o período de vida do regime da “dualidade de poderes” instituído com a “Revolução de Fevereiro” não passou de um brevíssimo prólogo da tomada do poder pelo proletariado, a história veio a confirmar toda a perspectiva de Trotsky acerca dos rumos revolucionários de um país atrasado; a Rússia, nas palavras do teórico bolchevique, “ultrapassou de um salto a democracia puramente formal”.[18]
A lei do desenvolvimento desigual combinado mostrar-se-ia presente também em escritos de Trotsky sobre localidades como Itália, Índia, Espanha, África do Sul[19] e América Latina.[20] Em todos esses casos, Trotsky manteve-se intransigentemente um defensor da visão de que as nações atrasadas eram dotadas de uma historicidade própria na qual não haveria espaço para revoluções “democrático-burguesas” ou algo similar, restando somente ao proletariado a opção de lançar-se na luta direta pela “ditadura do proletariado” e a construção do socialismo.
Novack e a sistematização da lei do desenvolvimento desigual e combinado
Foi sempre a partir de observações sobre determinadas situações histórico-sociais (países atrasados) que Trotsky formulou e desenvolveu sua lei do desenvolvimento desigual e combinado. Contudo, o revolucionário russo não chegou a produzir uma obra mais propriamente teórica dedicada especificamente a sua “descoberta”. Caberia ao trotskista norte-americano George Novack (1905-1992) a realização dessa tarefa intelectual nada simplória.
Adepto do trotskismo desde 1933 (quando ingressou na Liga Comunista Trotskista da América – Trotskyist Communist League of America), e tendo convivido com Trotsky durante a estada deste no México (1937-1940),[21] Novack foi um dos mais talentosos teóricos marxistas do movimento operário internacionalista, em especial no período pós-Segunda Guerra Mundial. Orientado por uma perspectiva marxista altamente dialética, George Novack estudou, a partir da aziaga década de 1930, diversas temáticas relacionadas à natureza e aos rumos da luta de classes no mundo, o que o levou à produção de inúmeros artigos e livros como A função do New Deal (The function of New Deal, 1936), Introdução à lógica marxista (Introduction to the logic of marxism, 1942)[22] e Compreendendo a História (Understanding History, 1956-68), uma interessante coletânea de vários escritos de Novack dos anos 50 e 60.[23]
Dentre uma vasta produção bibliográfica, possivelmente o mais conhecido trabalho de Novack tenha sido o ensaio intitulado O desenvolvimento desigual e combinado na História (Uneven and combined development in history), que ganharia várias edições nos mais diversos idiomas.[24] Nele, George Novack envidou seus esforços para sistematizar, a partir de um viés mais propriamente teórico, a perspectiva interpretativa de Trotsky acerca do desenvolvimento histórico e social dos países que tardiamente iniciaram seus processos de modernização industrial capitalista.
Com uma linguagem bastante clara, Novack expôs o que ele denominou ser o “duplo caráter” da lei do desenvolvimento desigual e combinado, isto é, a fusão, no interior desta – e que na verdade a constitui enquanto tal –, de duas leis científicas intimamente relacionadas (a lei do desenvolvimento desigual e a lei, decorrente da anterior, do desenvolvimento combinado). Desse modo, o marxista norte-americano, recheando o texto de exemplos históricos, demonstrou como o processo de desenvolvimento de determinadas formações sociais acaba por conter em si (por combinar) elementos correspondentes a distintas etapas do desenvolvimento de outras formações sociais. Tal fato (a combinação), como frisou Novack, só se faz possível porquanto o ritmo histórico mostra-se diferenciado (desigual) no que diz respeito tanto à evolução das várias formações sociais (se comparadas entre si) assim como à evolução das diversas instâncias (economia, tecnologia, cultura, política etc.) no interior de cada uma dessas próprias formações. Em outras palavras: é justamente a existência de ritmos diferenciados de desenvolvimento em cada continente, país etc. que permite que cada um desses, sobretudo os mais atrasados, adote e assimile formas e elementos provenientes dos outros. Tal como Trotsky, Novack enxergou a ocorrência (e destacou a importância) da “queima de etapas” no curso histórico das nações retardatárias; esses verdadeiros “saltos” operados pelo processo do desenvolvimento desigual e combinado acabavam, segundo Novack, por tornar ainda mais híbridas e contraditórias as realidades econômico-sociais destas formações diferidas. Dispensadas de repetir todas as fases evolutivas das nações mais avançadas, as nações atrasadas muitas vezes importavam daquelas a última novidade em tecnologia, economia ou política e a implantavam em condições sociais arcaicas. A combinação do novo e do velho, do moderno e do arcaico, em uma mesma formação social foi tomada por George Novack como um aspecto caracterizador da historicidade dos países atrasados, tal como fizera Trotsky.
Novack, entretanto, foi além de Trotsky e apontou a validade da lei do desenvolvimento desigual e combinado para o entendimento da evolução histórica de países dos mais diferentes tipos e em temporalidades muito anteriores ao próprio capitalismo industrial. Ampliando o escopo da lei, Novack nos oferece no seu ensaio, por exemplo, uma sugestiva análise acerca do processo de colonização da América do Norte que promoveu o contato entre instituições feudais, interesses mercantis, tribos indígenas e trabalho escravo. Recuando ainda mais no tempo, buscando estender ainda mais o alcance da lei, Novack a aplicou também a períodos que antecederam a própria civilização, tais como a selvageria, a barbárie etc. Entretanto, talvez a empresa mais polêmica de Novack tenha sido a relação feita por ele, nas páginas iniciais do livro, entre a lei de Trotsky e determinados sistemas biológicos; em passagens em que menciona a desigualdade do ritmo evolutivo entre diferentes espécies animais e até mesmo no interior do organismo humano, Novack, tanto pelo elogiável afã de apreender a totalidade da vida, quanto por alguns problemas decorrentes desse próprio afã, nos faz lembrar em sua argumentação o velho Engels da Dialética da Natureza.[25] Já nas páginas finais da obra, Novack utiliza brilhantemente a lei do desenvolvimento desigual e combinado para desvendar a natureza de um fenômeno histórico bastante complexo como o domínio da burocracia estalinista sobre a União Soviética, uma combinação do modo mais avançado de organização produtiva da humanidade, a planificação econômica baseada na propriedade estatal dos meios de produção, com uma forma de dominação política, o estalinismo, que assemelha-se aos mais remotos despotismos da história.
Vale registrar ainda que, possivelmente, foi o próprio Novack quem primeiramente “batizou” a lei de Trotsky tal como esta se tornaria conhecida (lei do desenvolvimento desigual e combinado), já que o revolucionário russo se referiu à sua “descoberta” na maioria das vezes apenas como lei do desenvolvimento combinado.[26] Contudo, mais do que nomeá-la de forma mais completa, Novack, realçando, apresentando e discutindo os aspectos centrais da lei, realizou uma excelente síntese – no sentido hegeliano do termo – da perspectiva histórica de León Trotsky.
A lei do desenvolvimento desigual e combinado, formulada por Trotsky e sistematizada por Novack, se fez presente, implícita ou explicitamente, na produção científica de muitos intelectuais acadêmicos latino-americanos que, a partir da década de 1960, contrapuseram-se à perspectiva “dualista” e “etapista” pela qual os “nacionalistas” e estalinistas tomavam a realidade sócio-histórica do continente.[27] Contudo, mais importante do que sua influência nos debates universitários de esquerda, é o papel que a lei trotskista cumpriu e cumpri no sentido de possibilitar aos marxistas o entendimento da dinâmica do desenvolvimento histórico dos países atrasados e, consequentemente, o caráter impreterivelmente socialista que a revolução deve assumir nestes. Nesse sentido, a lei do desenvolvimento desigual e combinado é, ao lado da “teoria da revolução permanente”, uma arma indispensável para os revolucionários em suas atuais lutas contra todas as velhas e novas formas de “etapismo” e de colaboração de classes. Não haverá independência nacional, nem revolução agrária, nem extensão das liberdades democráticas de organização e expressão para as amplas massas trabalhadoras e seus aliados sociais, nem solução duradoura para nenhuma das inúmeras reivindicações que mobilizaram o proletariado brasileiro nos últimos trinta anos sem ruptura com a burguesia. A lei do desenvolvimento desigual e combinado alimenta também, por outro lado, uma perspectiva que se opõe pelo vértice às formulações ultraesquerdistas que ignoram o lugar que ainda deve ocupar no programa da revolução brasileira as reivindicações nacionais, democráticas e populares. A revolução socialista nos países periféricos não será feita com o mesmo programa voltado para a destruição do capitalismo no centro do sistema. O programa da revolução permanente para os países coloniais e semicoloniais une, em uma síntese, o programa antiimperialista, anti-latifundiário e democrático ao programa anticapitalista.
No mais, podemos dizer que a lei do desenvolvimento desigual e combinado talvez seja o único instrumental teórico que nos permite compreender a atual natureza social espantosamente contraditória dos países atrasados como o Brasil, onde, por exemplo, o fetiche das classes médias em torno das televisões digitais e dos moderníssimos telefones celulares se combina com o medo sentido por grande parte da população de vir a morrer em função de uma epidemia viral que nos remonta ao século XIX, e que é provocada por, nada mais nada menos, que picadas de um reles mosquito.
[1] Evolucionismo este que também orientou a política dos bolcheviques diante do governo Kerensky até a chegada de Lênin com suas “teses” em abril de 1917.
[2] A aliança proposta pela IC entre a burguesia, a pequena-burguesia urbana, a pequena-burguesia rural (o campesinato) e o proletariado (aliança(aliaaç queos, essa foi sempre ar a sonha ” que teria por finalidade realizar a sonhada revolução “democrático-burguesa”, às vezes chamada apenas de revolução “democrática”) recebeu a denominação de “bloco das quatro classes”.
[3] Com algumas diferenças “táticas” em relação aos partidos vinculados à União Soviética, as correntes políticas que adotaram a linha chinesa a partir da década de 1960 também possuíam essa perspectiva “etapista” acerca do caráter da revolução nos países atrasados.
[4] Em 1905, Trotsky foi o principal dirigente do soviet de Petrogrado, o mais importante organismo criado pelas massas naquele processo revolucionário que abalou a monarquia czarista.
[5] TROTSKY, L. Resultados Y perspectivas. Buenos Aires: El Yunque Editora, 1975.
[6] Tanto em Balanços e perspectivas quanto em outros escritos do mesmo período (muitos publicados à época numa obra do revolucionário intitulada Nossa revolução), Trotsky recebeu a influência de Alexander Helphand, mais conhecido como Parvus, destacado pensador marxista que, em suas análises sobre a sociedade russa, já apontava o proletariado como o único sujeito revolucionário. Nesse sentido, muitos afirmaram que, de certo modo, Parvus é co-autor, ao lado de Trotsky, da “teoria da revolução permanente”. Não obstante sua argúcia teórica, Parvus acabou por apoiar o imperialismo alemão quando da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
[7] Mais de duas décadas depois, referindo-se ao surgimento de sua “teoria da revolução permanente” em 1905, Trotsky afirmou: “Ela [a ‘teoria da revolução permanente’] demonstrava que, em nossa época, o cumprimento das tarefas democráticas, proposto pelos países atrasados, conduzia diretamente à ditadura do proletariado, que coloca as tarefas socialistas na ordem do dia. Nisso consistia a idéia fundamental da teoria. Enquanto a opinião tradicional considerava que o caminho para a ditadura do proletariado passa por um longo período de democracia, a teoria da revolução permanente proclamava que, para os países atrasados, o caminho para a democracia passa pela ditadura do proletariado. Por conseguinte, a democracia era considerada não como um fim em si, que deveria durar dezenas de anos, mas como o prólogo imediato da revolução socialista, à qual se ligava por vínculo indissolúvel. Dessa maneira, tornava-se permanente o desenvolvimento revolucionário que ia da revolução democrática à transformação socialista da sociedade.” (TROTSKY, L. A revolução permanente. São Paulo: Kairós, 1985, p.24.).
[8] Entre os jornais que Trotsky colaborou em seu longo exílio na Europa, podemos destacar o Nache Slovo (Nossa Palavra), Novji Mir (O Novo Mundo) e Kievskaia Misl (Pensamento Kieviano).
[9] Uma descrição e análise histórica acerca da trajetória política e intelectual de Trotsky desde os primeiros anos do século XX até sua expulsão do PCUS e da União Soviética em finais da década de 1920 pode ser encontrada em DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta armado. (1879-1921). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; ____. Trotski. O profeta desarmado (1921-1929). 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984; e em TROTSKY, L. Minha vida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
[10] TROTSKY, L. A revolução permanente. Op.cit. Esta obra será reeditada em breve pela editora Sundemann.
[11] A vaga revolucionária aberta na China nesse período teve como resultante um enorme desastre para o proletariado, o campesinato e o conjunto da militância comunista do país. Seguindo orientação da III Internacional, o Partido Comunista Chinês (PCCh), procurando aproximar-se da burguesia “nacionalista” em busca de uma luta contra o imperialismo e os senhores feudais objetivando a vitória de uma “revolução democrática”, aliou-se ao Kuomitang, partido “nacionalista-burguês” liderado pelo general Chiang Kai-Shek, chegando mesmo a se dissolver no interior deste e a se submeter à sua disciplina militar. Após ter, por ordens de Stálin, entregue suas armas ao Kuomitang em meio a um ascenso grevista operário em Xangai, os militantes comunistas e milhares de trabalhadores foram literalmente massacrados pelo exército de Chiang Kai-Shek. Não satisfeitos com a derrota sofrida em função da política “oportunista” de aliança com Chiang Kai-Shek, os dirigentes da IC orientaram o PCCh a aliar-se com a “ala esquerda” do partido burguês chinês, liderado por Wang-Ching-Wei, que havia provisoriamente rompido com Chiang Kai-Shek. Todavia, não tardou para que o Kuomitang de “esquerda” começasse a expulsar de suas fileiras os comunistas e reprimisse as manifestações operárias. Por fim, com o PCCh praticamente dilacerado, a IC, numa guinada “ultraesquerdista”, orientou os comunistas chineses a criarem, praticamente do noite pro dia, “conselhos” operários, o que resultou num levante frustrado e em novo massacre, dessa vez em Cantão. Não obstante todas as alterações “táticas” da IC para a PCCh, o que permaneceu intocável nesse período foi a idéia de que a China, por ser tratar de um país com muitas características ainda pré-capitalistas, deveria necessariamente realizar uma etapa “democrática”, o que adiava para um futuro remoto a proposta de uma “ditadura do proletariado” (revolução socialista) e impunha a necessidade de uma frente com a burguesia chinesa por parte dos trabalhadores.
[12] O termo “epígonos” foi utilizado por Trotsky para denominar os burocratas estalinistas que se apoderaram do PCUS e da IC após a morte de Lênin.
[13] Expulso do PCUS em conjunto com a “Oposição de Esquerda” liderada por Trotsky em fins de 1927, o bolchevique de origem polonesa Karl Radek escreveu um manuscrito no qual atacou violentamente a “teoria da revolução permanente” como forma de preparar sua capitulação à fração estalinista, o que acabou ocorrendo. Todavia, em 1937 foi condenado a dez anos de trabalhos forçados e em 1942 foi assassinado por ordens de Stálin no local onde cumpria pena.
[14] BIANCHI, Alvaro. “O primado da política: revolução permanente e transição” in Outubro, nº. 5. São Paulo, 2001, p. 101-115. Denominando a “teoria da revolução permanente” como “revolução do atraso”, Baruch Knei-Paz realizou também uma boa síntese das idéias de Trotsky acerca da revolução nos países atrasados; contudo, colocou em xeque a “utilidade” destas idéias para uma “ação instrumental” (KNEI-PAZ, Baruch. “Trótski: revolução permanente e revolução do atraso” in HOBSBAWM, Eric J. (org.) História do marxismo V (o marxismo na época da Terceira Internacional: A Revolução de Outubro: O autromarxismo). 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 159-196.
[15] TROTSKY, L. A História da Revolução Russa. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, 3 volumes. Esta obra recebeu, no ano passado, uma nova e cuidadosa edição da editora Sundermann: TROTSKY, L. A História da Revolução Russa. São Paulo: Sundemann, 2007, 2 volumes.
[16] TROTSKY, León. A História da Revolução Russa. Op. cit, v. I, p. 24-25. Grifos do autor.
[17] Idem, p. 32.
[18] Idem, p. 33.
[19] Alguns escritos políticos de Trotsky sobre estes países podem ser encontrados em TROTSKY, L. La teoria de la revolución permanente. Compilación. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky [CEIP León Trotsky], 2000. Quanto à Espanha particularmente, ver também TROTSKY, L. La revolución española. S.l: El Puente Editorial, s.d.
[20] Quanto à produção intelectual de Trotsky sobre o continente latino-americano, ver TROTSKY, L. Escritos latinoamericanos. 2ª edição. Buenos Aires: CEIP León Trotsky, 2000.
[21] A partir de 1940, Novack se tornaria membro do Comitê Nacional do Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party – SWP), seção norte-americana da IV Internacional, posto que ocupou até 1973.
[22] Essa obra também foi editada recentemente pela Sundermann: NOVACK, George. Introdução à lógica marxista. São Paulo: Sundermann, 2006.
[23] Essa coletânea, originalmente publicada em língua inglesa (NOVACK, George. Understanding history. New York: Pathfinder Press, 1972) foi editada mais de uma vez em língua espanhola. À guisa de exemplo, mencionamos: NOVACK, George. Para compreender a história. Bogotá: Pluma, 1977 (apêndice de Nahuel Moreno).
[24] Como exemplos, citamos: NOVACK, George. Uneven and combined development in history. New York: Merit, 1966; ____. La ley del desarrollo desigual y combinado. Buenos Aires: Ediciones Pluma, 1974, e ____. A lei do desenvolvimento desigual e combinado da sociedade. São Paulo: Rabisco, 1988. Esse ensaio de Novack está também contido nas diversas edições de Understanding history. Recentemente, a obra foi publicada pela Sudermann: NOVACK, George. A lei do desenvolvimento desigual e combinado na história. São Paulo: Sundermann, 2008.
[25] Aliás, o próprio Novack é autor de um artigo intitulado Engels na dialética da natureza (Engels on dialectics of nature, 1940).
[26] Novack, entretanto, afirma logo nas primeiras páginas do ensaio que foi Trotsky quem nomeara a lei. Tal fato, segundo verificamos, não corresponde a realidade, e a afirmação de Novack deve ter sido produto, em nossa opinião, de um descuido ou mesmo de uma modéstia que o impediu de explicitar seu feito terminológico, atribuindo-o ao mestre.
[27] Quanto a isso, ver DEMIER, Felipe. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomização relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operário. (tese de doutoramento em História). Niterói: PPGH/UFF, 2012 (Ver, em especial, o Capítulo III). (A tese pode ser consultada em http://www.historia.uff.br/stricto/td/1389.pdf).
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