Eduardo Frota
Hollywood, usualmente, apresenta os Estados Unidos como o salvador do mundo. Foi assim que se criou uma gigantesca máquina fílmica de propaganda política a serviço dos interesses governamentais norte-americanos.
Para arregimentar fetichisticamente as massas e difundir a ideologia do grande capital, presidentes e congressistas estadunidenses sempre tiveram nos grandes estúdios cinematográficos um importante aliado. Agora, porém, numa dialética inversão de papéis entre criador e criatura, parece ter chegado a vez dos estúdios de Hollywood mostrarem como eles próprios ajudaram a salvar pessoas adeptas do projeto de mundo estadunidense. Mais precisamente, pode-se dizer que Hollywood nos mostra agora como a própria indústria cinematográfica foi capaz, ela mesma, de salvar heroicamente um punhado de funcionários da embaixada dos Estados Unidos em Teerã, no conturbado ano de 1979. Trata-se do filme Argo, candidato ao próximo Oscar.
Para entender melhor a maneira como o galã e diretor Ben Affleck resolveu montar seu filme, é preciso conhecer um pouco mais a fundo um antigo vilão do cinema norte-americano que até hoje encontra ressonância. É preciso entender como a mesma Hollywood retratou ao longo dos anos os chamados zumbis – sim, esses mesmos que agora também fazem sucesso em seriados de televisão. Nos idos da década de 40 do século passado, zumbis não eram cadáveres reanimados que abandonavam suas covas para comer os cérebros dos viventes. Eram, então, incautos cidadãos civilizados em transes provocados por feitiçaria. No primeiro grande clássico do gênero, I walked with a zombie, de 1943, uma enfermeira vai parar numa ilha caribenha onde passa a cuidar de uma mulher em estado de choque. Todas as noites, a atormentada mulher levanta-se do leito e caminha a esmo. Os médicos acreditam que é loucura. A enfermeira, no entanto, descobre que é um voodoo engendrado por habitantes locais. Mais tarde, George Romero deixou de cabelos em pé o público com o seu inigualável e assustador A noite dos mortos-vivos, produção de 1968 que marcou profundamente a forma de retratar os zumbis. Vítimas da corrida armamentista, contaminados por substâncias radioativas, eles levantam de suas tumbas e atacam de forma animalesca os que ainda caminham sobre a Terra, numa espécie de apocalipse nuclear. Depois do filme de Romero, uma enxurrada de produções hollywoodianas se apropriou dessa ideia como recurso estético para contextualizar uma possível III Guerra Mundial.
Dois momentos históricos distintos, dois inimigos distintos e um mesmo artifício dramático. Zumbis eram os bodes expiatórios de Hollywood. Num primeiro momento, era preciso temer os latinos com seus perigosos e tradicionais rituais de feitiçaria. Era preciso, mais ainda, civilizar e levar o progresso a todas as ilhas da América Central, localidade estratégica para a geopolítica dos Estados Unidos. Mais tarde, em plena Guerra Fria, era preciso ter medo dos russos (soviéticos), os quais, apertando um simples botão vermelho, poderiam lançar uma ogiva nuclear e transformar em um aterrorizante zumbi o ascético e modelar cidadão estadunidense, defensor da família, temente a Deus e contumaz colecionador de eletrodomésticos – um próprio zumbi da sociedade de mercado, vale dizer. Ainda no contexto da Guerra Fria, também os guerrilheiros vietnamitas de Ho Chin Minh apareciam nos filmes da Era Reagan como não mais do que um amaldiçoado exército de zumbis, os quais rajadas de metralhadora faziam morrer aos borbotões enquanto pronunciavam agudos vocábulos incompreensíveis para os ocidentais defensores da liberdade.
E o que isso tem a ver comArgo? A sinopse diz que a história é baseada em fatos reais. Um drama. Durante uma crise em 1979 envolvendo reféns em Teerã, um agente da CIA e um maquiador de Hollywood decidem criar um falso filme para tentar tirar clandestinamente americanos do Irã em uma operação ousada. O que a sinopse não fala é que a tal crise tem início com a recusa dos Estados Unidos em devolver ao governo iraniano o cruento ditador Mohammad “Xá” Reza Pahlavi, destituído do cargo pela revolução islâmica daquele ano e asilado nos Estados Unidos.
Durante um protesto, uma horda de iranianos revoltados invade a embaixada norte-americana em busca dos civilizados funcionários que haviam apoiado o ditador deposto. E os iranianos o fazem exatamente como os zumbis: uma massa coletiva, maltrapilha, sem individualidade, de ânimos incontroláveis, em estado de cólera, pronunciando palavras ininteligíveis, em busca de seres humanos acuados que precisam fugir. Se, ao invés de iranianos, Argo tivesse retratado zumbis, não haveria qualquer diferença. Isso porque, além da pantomima típica das temidas criaturas, toda a mecânica cênica e dramática do filme remete às produções de outro gênero que não o drama, e sim o terror. Alguém aí pensou em terrorismo? Não importa onde os estadunidenses se escondam. Correm risco iminente. A trilha sonora é lúgubre, o tom de suspense é crescente, os enquadramentos são claustrofóbicos, a câmera trepida. Há iranianos à espreita, que surgem dos locais mais improváveis. É preciso um plano mirabolante para fugir de um destino cruel.
Incontestavelmente, Argo é um filme bem montado. Fotografia caprichada, direção de arte bastante competente, figurinos corretos e todas aquelas outras coisas que merecem premiações técnicas. Elogios que muitos filmes de zumbis que serviram como suporte para divulgação de plataformas de governo não ganharam. Hollywood parece ter encontrado um novo filão. Graças ao governo estadunidense e ao seu mais novo vilão, o mundo islâmico.
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