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TEORIA

John Lennon: a trajetória política de um beatle de esquerda (parte 2)

Romulo Mattos

Encerramos o texto anterior com a afirmação de que, no início dos anos 1970, John Lennon viveu o seu período de maior radicalização política, o que pode ser constatado em suas canções e na entrevista concedida ao jornal trotskista Red Mole. Neste segundo artigo, abordaremos as suas composições mais expressivas, no que diz respeito ao ativismo de esquerda. Vimos que o pacifismo hippie ocupava um lugar importante no pensamento político do artista, na segunda metade dos anos 1960. Embora Lennon contestasse os valores da sociedade tradicional, a crença no ideal de não-violência o levava a pregar contra a revolução e o conflito, em músicas e frases de efeito dirigidas à grande imprensa. Em debate público com intelectuais da Nova Esquerda inglesa, o beatle chegou mesmo a menosprezar o conceito de luta de classes. O ídolo pop e os partidários da renovada esquerda britânica compartilhavam os anseios de transformação social, que atingiram níveis elevados em 1968; mas havia diferenças significativas, principalmente, no que diz respeito à forma como essas mudanças mais amplas seriam efetivadas. Seguindo a cartilha hippie, Lennon dava como superada a proposta de enfrentamento político, prezada por ativistas daquele grupo; acima de tudo, acreditava em que a transformação individual fosse um passo indispensável para a transformação coletiva.

Vale lembrar que nos Estados Unidos também havia uma desconfiança mútua entre os estudantes ligados ao Free Speech Movement, o grupo da Universidade de Berkeley que tanto lutou pelos direitos civis, e a turma que ouvia rock e consumia drogas no território hippie de Haight-Ashbury, em São Francisco. Decerto, esses dois grupos que pretendiam criar uma nova América apresentavam estratégia de luta e filosofia diferentes. Mas “a agitação política […] de Berkeley, combinada com uma vida voltada para a criatividade, fora do regime de trabalho e dos objetivos comerciais da sociedade americana, seduzia a cada dia novos adeptos” (MERHEB, 2012, p. 139). Em Londres, embora John Hoyland, crítico musical identificado com a Nova Esquerda, houvesse ironizado o potencial político de “Revolution” (“Revolução”) – “tão revolucionária quanto uma novela de rádio” (ALI, 2008, pp. 371-2) –, o mesmo podia considerar Lennon um companheiro de luta, ao comentar a prisão desse último, por porte de drogas: “talvez agora você perceba o que está (estamos) enfrentando” (idem).

No documentário The U.S. vs. John Lennon, de David Leaf e John Scheinfeld (2006), Tariq Ali, outro intelectual relacionado com a Nova Esquerda britânica, recordou com admiração a pregação antibelicista empreendida pelo cantor. A campanha mundial “War is over (if you want it)” – “A guerra acabou (se você quiser)” –, veiculada no natal de 1969, por exemplo, incluía cartazes e outdoors pagos pelo próprio cantor, que considerava o custo dessa operação “mais barato que a vida de uma pessoa” (idem). Para Ali, o protesto de Lennon contra a Guerra do Vietnã ia ao encontro dos objetivos da Nova Esquerda, que apreciava a originalidade dos métodos empregados pelo artista, verificada nos bed-ins promovidos em Amsterdã e Montreal.

Em seu livro de memórias, Ali (2008, p. 348) não teve a pretensão de acreditar em que o seu pensamento tivesse influenciado de forma decisiva o músico na virada da década de 1960 para a de 1970. Embora esse último tenha ficado empolgado com as conversas travadas entre os dois, o primeiro demonstrou ter a consciência de que a época politizou Lennon. Mais amplamente, entre 1968 e 1972, é possível observar um ciclo de canções políticas em sua obra, iniciado com o single “Revolution” e encerrado com o disco Some Time in New York City. Dentro desse quadro, a sua palavra cantada começou a se radicalizar em 1970.

“Working Class Hero” (“Herói da classe trabalhadora”) foi incluída no disco John Lennon/Plastic Ono Band, gravado em outubro de 1970 e lançado no mês seguinte. A composição mostra a influência do movimento político de esquerda e de seus pensadores. A expressão presente no título indica não um militante e sim uma pessoa que, nascida nas classes mais pobres, ascendeu socialmente. É muito usada para pop stars, jogadores de futebol, astros de cinema, entre outros. Por meio dessa canção, Lennon menosprezava a glória de ser um superastro, à medida que essa era a opção que o sistema permitia a um garoto da classe trabalhadora. Nesse sentido, via a si próprio como uma conveniente válvula de escape para o sistema burguês. O cantor primeiramente denuncia as regras da família e da escola, que diminuem o indivíduo: “Te machucam em casa e te batem na escola/ Te odeiam se você é esperto e desprezam os tolos/ Até você ficar tão pirado que não consegue seguir as regras deles/ Vale a pena ser um herói da classe trabalhadora” (“They hurt you at home and they hit you at school/ They hate you if you’re clever and they despise a fool/ Till you’re so fucking crazy you can’t follow their rules/ A working class hero is something to be”).

Em seguida, ressalta o pensamento de que os trabalhadores podiam ser usados pelos estratos dominantes para construir a riqueza e permanecer sem consciência de classe: “Mantém você drogado com religião, sexo e TV/ E você se acha tão astuto, sem classe social e livre/ Mas ainda não passa de um peão, para mim/ Vale a pena ser um herói da classe trabalhadora” (Keep you doped with religion and sex and TV/ And you think you’re so clever and classless and free/ But you’re still fucking peasants as far as I can see/ A working class hero is something to be).

Na entrevista concedida à revista Rolling Stone (que chamou a atenção de Ali), em 1970, Lennon afirmou:

“Eu acho que é uma canção revolucionária […] Eu acho que é para as pessoas como eu, que são da classe trabalhadora, de quem se espera que sejam processados para a classe média ou para a indústria. É a minha experiência, e eu espero que seja apenas um aviso para as pessoas” (WENNER, 2000, p. 93).

“Working class hero” contém apenas três acordes, sendo a voz acompanhada por um violão tocado de forma econômica. A mensagem política contida na letra é o elemento principal desse material artístico. Mas a interpretação vocal, melancólica, sugere o discurso de uma pessoa desiludida. O parentesco com estilo folk fez a crítica musical sugerir a ascendência de Bob Dylan sobre Lennon, que relativizou tal ideia (Ibid, p. 5). Vale lembrar que, nessa época, a obra dylaniana estava mais perto da reação do que do radicalismo. Se o álbum The times they are a-changin’, de 1963, descortina com profundidade as contradições do mundo capitalista – com o detalhe de que a canção homônima trata a transformação revolucionária como inevitável –, New Morning, de 1970, expressa a felicidade campestre de um homem casado, numa perspectiva autobiográfica. Não obstante, inclui uma composição como “Father of night”, um hino de louvor ao Deus Pai (ROLLASON, 1984, p. 58). Portanto, Lennon e Dylan viviam processos diametralmente opostos em tal contexto – e isso pode ajudar a explicar o porquê de o britânico ter negado a influência direta do americano sobre a sua música.

Estranho às temáticas bucólicas e religiosas prezadas por Dylan, em 1970, Lennon revia o seu afastamento dos trabalhadores em “Working class hero”, o que é significativo para quem colocara a questão de classe em segundo plano, nos acalorados debates de 1968. Também do álbum John Lennon/Plastic Ono Band, “I Found Out” censura acidamente a ideia de religião. O arranjo cru da gravação – guitarra distorcida, baixo e bateria sem floreios e um vocal rascante – acentua a virulência da letra. O compositor anuncia estar livre da ilusão proporcionada pelos falsos ídolos que acumulou (e rejeitou) ao longo de sua vida: “Agora que eu lhe mostrei o que eu passei/ Não se fie naquilo que os outros lhe dizem que você pode fazer/ Não há nenhum Jesus caindo do céu/ Agora eu descobri, sei que posso chorar/ Eu, eu descobri!” (“Now that I showed you what I been through/ Don’t take nobody’s word what you can do/ There ain’t no Jesus gonna come from the sky/ now that I found out I know I can cry/ I, I found out!”).

Mais especificamente, o seu envolvimento com o movimento Hare Krishna, na época dos Beatles, é tratado em termos negativos: “O velho Hare Krishna não conseguiu nada com você/ Só deixou você maluco sem nada para fazer/ Deixou você ocupado com as doçuras no céu/ Não existe guru que possa ver através de seus olhos/ Eu, eu descobri!” (“Old Hare Krishna got nothing on you/ Just keep you crazy with nothing to do/ Keep you occupied with pie in the sky/ There ain’t no guru who can see through your eyes/ I, I found out!”).

Além dos gurus que passaram por sua vida, tendo sido Maharishi Mahesh Yogi o mais famoso deles – criticado em “Sex Sadie”, dos Beatles –, Lennon rejeita outras fontes percebidas de iluminação, como as drogas, utilizadas para meditação: “Não deixem que eles lhe enlouqueçam com tóxico e cocaína” (“Don’t let them fool you with dope and cocaine”). O autor ainda direciona as suas baterias para os seus pais – “Ouvi coisas sobre meu pai e minha mãe/ Eles não me queriam e por isso me fizeram uma estrela” (“I heard something about my ma and my pa/ They didn’t want me so they made me a star”) – e o seu antigo parceiro de composições nos Beatles – “Vejo a religião de Jesus a Paul(o)” (“I seen religion from Jesus to Paul”).

Em entrevistas, Lennon dizia estar livre das “bobagens religiosas” devido à terapia feita com Janov (ALI, 2008, p. 378). Uma composição especialmente importante em sua trajetória política é “Power to the people” (“Poder para o povo”), de 1971. No dia seguinte à entrevista concedida ao jornal Red Mole, um animado Lennon telefonou para Ali: “Olhe, fiquei tão entusiasmado com o que conversamos que fiz uma música para o movimento, para vocês cantarem nas passeatas” (Idem). “Power to the people” mostra uma mudança significativa em relação a “Revolution”. Conforme foi escrito no texto anterior, nessa canção, o artista avisa aos revolucionários para não contarem com ele. Inversamente, em 1971, Lennon canta: “Diga que queremos uma revolução/ É melhor começar logo/ Se prepare/ E vá para as ruas” (“Say we want a revolution/ we better get on right away/ Well, you get on your feet/ And on the street”). A sua adesão aos movimentos revolucionários é ratificada em um verso como: “Nós temos de derrubar vocês/ Quando chegarmos à cidade” (“We got to put you down/ When we come into down”). As suas declarações no período vão no sentido de que o chamado Flower Power fracassara; por essa razão, era necessário começar novamente. Lennon dizia claramente: “Somos o começo da revolução […] Da América ela se espalhará pelo resto do mundo. Viva a revolução” (cf. LEAF, SCHEINFELD, 2006). O arranjo da música merece um rápido comentário. No início da gravação, lançada como single, a frase “Power to the people” é cantada em coro, sendo acompanhada por um provável som de palmas, simulando um protesto de rua.

É interessante notar em “Power to the people” a manifestação do discurso feminista, uma influência de Yoko Ono: “Vou te perguntar, camarada e irmão/ Como é que você trata a sua própria mulher em casa/ Ela tem de ser ela mesma/ Para poder se entregar” (“I’m gonna ask you, comrade and brother/ How do you treat your own woman back home/ She got to be herself/ So she can give herself”). A promoção do feminismo pode ser vista como mais uma autocrítica realizada pelo artista, em seu período de radicalização política. Afinal, Lennon fora capaz de escrever “Run for your life”, presente no disco Rubber Soul, de 1965: “É melhor você correr pela sua vida se puder, garotinha/ Esconda sua cabeça na areia, garotinha/ Te pegar com outro homem/ É o fim, garotinha” (“You better run for your life if you can, little girl/ Hide your head in the sand little girl/ Catch you with another man/ That’s the end, little girl”). No mesmo álbum, “Norwegian Wood” (“Madeira Norueguesa”), que aborda nas entrelinhas os seus relacionamentos extraconjugais na época dos Beatles, conta a história de um homem que, ao acordar e não encontrar a mulher com quem passara a noite – porque a mesma saíra para trabalhar –, ateou fogo ao quarto de sua amante (revestido de madeira norueguesa), por vingança.

A adesão de Lennon ao ideal feminista renderia uma música inteiramente dedicada ao tema: “Woman is the nigger of the wold” (“A mulher é o negro do mundo”), de 1972, título retirado de um artigo de Yoko. Vale ressaltar que, nos Estados Unidos, “nigger” é um termo pejorativo para se referir aos negros; logo, o seu emprego recrudesce a ideia de que as mulheres ocupavam um lugar marginal na sociedade. Lennon destacou a dominação masculina: “Nós a fazemos pintar seu rosto e dançar/ Se não quer ser uma escrava, dizemos que não nos ama/ Se for verdadeira que está tentando ser um homem/ Enquanto a derrubamos, fingimos que está acima de nós/ A mulher é o negro do mundo/ Se não acredita em mim, dê uma olhada na que está com você/ A mulher é a escrava dos escravos/ Ah, yeah, melhor gritar sobre isso…” (“We make her paint her face and dance/ If she won’t be slave, we say that she don’t love us/ If she’s real, we say she’s trying to be a man/ While putting her down we pretend that she’s above us/ Woman is the nigger of the world/ If you don’t belive me, take a look at the one you’re with/ Woman is the slave of the slaves/ Ah yeah… better screem about it”).

Embora a afirmação “A mulher é a escrava dos escravos” possa parecer ingênua nos dias de hoje, ela não destoava do debate travado na época, uma vez que o gênero como categoria analítica ainda não se colocava teoricamente – e sim a ideia de patriarcado, de subordinação das mulheres aos homens. O recurso linguístico encontrado para denunciar a opressão à mulher foi a imagem da escravidão (justamente por ser a representação mais imediata da falta de liberdade e igualdade). Tal verso sugere que, na hierarquia das minorias, a mulher estava no patamar mais baixo.

“Woman is the nigger of the wold” foi incluída no disco Some time in New York City, gravado em março de 1972 e lançado nos Estados Unidos em junho. Nesse álbum, há também Sunday Blody Sunday (“Domingo Sangrento”), uma referência ao dia 30 de janeiro do mesmo ano, em que militantes católicos enfrentaram soldados ingleses nas ruas de Londonderry, na Irlanda do Norte, com um saldo de treze mortos e dezessete feridos, todos irlandeses. Essa canção trata os garotos assassinados como “mártires” e critica a ação do exército inglês, em termos retóricos: “Nem sequer um soldado sangrava quando pregaram as tampas dos caixões!” (“Not a soldier boy was bleeding when they nailed the coffin lids!”). Além de versos exaltados contra a Grã-Bretanha – “Vocês porcos ingleses e escoceses mandados para colonizar o norte” (“You anglo pigs and scotties sent to colonize the north”) –, a letra apoia a causa do Exército Republicano Irlandês, o IRA, que lutava pela separação da Irlanda do Norte da Grã-Bretanha e posterior união com a República da Irlanda: “como é que vocês ousam manter como refém um povo orgulhoso e livre?/ Deixem a Irlanda para os irlandeses/ Botem os ingleses de volta ao mar!” (“How dare you hold to ransom a people proud and free/ Keep Ireland for the Irish/ Put the English back to sea!”).

Gerry O’Hare, que atuava no setor de imprensa do IRA, confirmou que a liderança dessa organização levava Lennon bastante a sério e o via como um aliado útil. O astro chegou a se oferecer para fazer dois shows em benefício do grupo paramilitar – um em Dublin e um em Belfast. Documentos do Departamento Federal de Investigação (FBI) também comprovam a informação de que os serviços de segurança britânicos estavam espionando o cantor (que nessa época morava nos Estados Unidos), por causa do seu apoio ao republicanismo irlandês (cf. ROGAN, 2006). Não obstante, David Shayler, ex-agente do serviço secreto inglês, afirmou que Lennon teria colaborado financeiramente com o IRA. O antigo espião também teria visto uma documentação que atesta o apoio do artista ao Partido Revolucionário dos Trabalhadores, uma organização radical de esquerda. Indignada, Yoko – que tem investido fortemente na memória de Lennon como um pacifista inconteste, como será visto no próximo artigo –, declarou que o beatle enviou dinheiro à Irlanda do Norte, sim, mas apenas para ajudar crianças e a comunidade afetada pela violência política (VEJA, 2000).

A simpatia do músico pelos republicanos irlandeses nunca foi segredo. O ano de 1972 foi realmente agitado para Lennon, no que diz respeito ao seu envolvimento com os movimentos sociais. O artista foi o destaque do evento John Sinclair Freedom Rally, um comício organizado por Jerry Rubin, pela liberdade de seu colega de ativismo político, condenado a dez anos de prisão por portar dois cigarros de maconha. A participação do beatle foi considerada fundamental para a conquista da opinião pública, tendo o Supremo Tribunal de Michigan retrocedido e permitido a liberação de Sinclair. Esse episódio levou o FBI a acompanhar com atenção a vida de Lennon nos Estados Unidos.

Rubin e Abbie Hoffman chegaram a organizar um festival grátis de rock, com três dias de duração, do lado de fora da Convenção Nacional Republicana. Esses dois militantes ficaram tão entusiasmados com o sucesso de sua luta, que planejaram uma excursão de oposição, que seguiria o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, por todo o país, durante a sua campanha de 1972. E o nome de Lennon foi anunciado pela dupla. Logo, o FBI percebeu que o vencimento do visto do ídolo britânico seria uma contramedida estratégica. A vitoriosa (porém árdua) luta do artista pelo direito de permanecer na América se estendeu até o ano de 1976 (cf. LEAF, SCHEINFELD, 2006).

Nixon, como se sabe, renunciou em 9 de agosto de 1974, em virtude do escândalo Watergate, pouco antes da votação pelo Congresso da cassação de seu mandato. A sarcástica “Gimmie some truth” (“Me dê uma verdade”), do disco Imagine, de 1971, cita o apelido “Tricky Dicky”, pelo qual o então presidente era conhecido, em referência aos truques sujos que costumava empregar para ganhar uma disputa. Essa canção ataca a hipocrisia dos líderes políticos: “Estou farto de ler coisas/ De políticos neuróticos/ psicóticos e bem-estabelecidos/ Tudo o que eu quero é a verdade agora/ Apenas me deem um pouco de verdade agora” (“I’ve had enough of reading things/ by neurotic, psychotic, pig-headed politicians/ All I want is the truth now/ Just gimme some truth now”). A gravação tem George Harrison na guitarra slide e um vocal com técnica de execução próxima ao staccato, com notas de curta duração. A frase do título é interpretada de forma enérgica, caracterizando uma exigência (e não um pedido) pela verdade.

O referido álbum, gravado em junho de 1971 e lançado nos Estados Unidos três meses depois, reservou outros momentos memoráveis de crítica política. “I don’t wanna be a soldier mama i just don’t wanna die” (“Não quero ser um soldado, mamãe, eu não quero morrer”) deixa evidente em seu título a temática antibelicista. Mas o destaque foi mesmo o megassucesso que batizou o disco. “Imagine” é geralmente tratada como um hino à paz mundial e à harmonia, principalmente, em virtude de seu verso “Nada em nome do qual matar ou morrer” (“Nothing to kill or die for”) – que, isoladamente, pode contradizer “Power to the people”. No entanto, essa é uma letra antinacionalista – “Imagine que não existam países” (“Imagine there’s no countries”) –, antirreligiosa – “E também nenhuma religião” (“And no religion too”) –, anticonvencional – “Imagine todas as pessoas vivendo para o dia de hoje” (“Imagine all the people living for today”) –, e anticapitalista – “Imagine que não existam posses” (“Imagine no possessions”). Não seria exagero enxergar no refrão uma utopia socialista: “Você pode dizer que sou um sonhador/ mas não sou o único/ espero que um dia você se junte a nós/ e o mundo será como um só” (“You may say i’m a dreamer/ But I’m not the only one/ I hope some day you’ll join us/ And the world will be as one”).

De forma significativa, Lennon pediu para os trotskistas Ali e Robin Blackburn participarem do vídeo de “Imagine” – um indício de que o artista não via nessa canção um retorno ao pacifismo hippie dos anos 1960. Os dois ativistas não só aceitaram prontamente o convite, como levaram o recém-libertado Régis Debray – o mais conhecido cronista europeu da Revolução Cubana, que fora preso e torturado na Bolívia – para acompanhá-los na visita ao astro. Ali (2008, p. 350), particularmente, recebeu o mencionado álbum como uma grata surpresa: “a qualidade artística era altíssima e, felizmente, a política não havia sufocado a arte […] A política e a música […] se uniam com a argamassa da necessidade política”.

A questão é que Lennon experimentara em “Imagine” uma estratégia, no seu entender, vitoriosa: colocar um “pouco de mel” nas mensagens políticas (GILMORE, 2005, p. 62). Trata-se de uma balada conduzida pelo piano, adornada por um arranjo de cordas delicado, com baixo e bateria executados de forma contida. A interpretação do vocal é serena. Esse método foi aplicado novamente com sucesso em “Happy Xmas (war is over)” – “Feliz Natal (a guerra acabou)”, ainda em 1971. Em uma canção natalina melodiosa, com direito a coro infantil, o compositor protesta contra a Guerra do Vietnã e afirma que “o mundo está tão errado” (“the world is so wrong”).

Tendo radicalizado a sua palavra cantada no início da década de 1970, Lennon não deixava por menos nas entrevistas concedidas no período. Na terceira e última parte deste texto, analisaremos a chamada “entrevista perdida”, publicada pelo jornal trotskista Red Mole, em 1971.

Referências bibliográficas

ALI, Tariq. O poder das barricadas. Uma autobiografia dos anos 60. São Paulo: Boitempo, 2008.

GILMORE, Mikal. Lennon Lives Forever. Rolling Stone, 15 de Dezembro de 2005.

LEAF, David, SHEINFELD, John. The U.S. vs. John Lennon. 2006.

MERHEB, Rodrigo. O som da revolução: uma História Cultural do Rock (1965 – 1969). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

ROGGAN, Johnny. Lennon: The Albuns. London: Rogan House, 2010.

ROLLASON, Christopher. Bob Dylan: do radicalismo à reacção. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 13, 1984.

VEJA. Paz, amor e IRA. 1/3/2000.

WENNER, Jann S. Lennon Remembers. London/ New York: Verso, 2000.