Alvaro Bianchi
Com o lançamento do filme Lincoln, de Steven Spielberg alguns escritores aproveitaram a oportunidade para revalorizar um aspecto comumente neglicenciado pela historiografia: o apoio do movimento operário europeu e, particularmente de Karl Marx à União e à presidência de Abraham Lincoln. Essa revalorização produziu alguns argumentos claramente exagerados a respeito da relação de Marx com Lincoln. No Brasil Augusto Buonicore, por exemplo, afirmou que para “o autor do Manifesto do Partido Comunista, Lincoln havia sido um grande estadista e um homem sensível às aspirações de seu povo.” (BUONICORE, 2013).
Vicenç Navarro foi além e, a partir de algumas ideias de John Nichols (2012) e Robin Blackburn (2011), chegou a afirmar que “não há dúvidas de que [Lincoln] foi altamente influenciado por Marx e outros pensadores socialistas, com os quais partilhou seus desejos imediatos, claramente simpatizando com eles e levando sua postura a altos níveis de radicalismo em seu compromisso democrático.” (NAVARRO, 2013.) Paradoxalmente essa afirmação não está muito distante daquela dos revisionistas neoconfederados, os quais acusaram Lincoln de estar sob a influência do comunismo (KENNEDY; BENSON, 2007) e de ter aplainado o caminho para o intervencionismo estatal na economia e a intromissão legislativa na vida privada que teriam solapado as bases da liberdade nos Estados Unidos (cf. p. ex. DILORENZO, 2003).
Escravidão e emancipação
Marx conhecia a insistência com a qual Lincoln afirmou nos primeiros meses do conflito que a guerra não era contra a escravidão e sim em defesa da União. Desejoso de manter o apoio dos membro do Partido Democrático do Norte e neutralizar os escravistas dos estados fronteiriços – Delaware, Maryland, Virginia, North Carolina, Kentucky, Tennessee, Missouri e Arkansas – o presidente dos Estados Unidos postergou o conflito ao máximo e repetidas vezes afirmou a intenção de manter a escravidão nos estados nos quais ela já era legalmente reconhecida.[1]
Marx e Engels consideravam que a relutância em conduzir uma guerra revolucionária cotra os escravistas assentava suas raízes no embuste da democracia “burguesa”. A permanente necessidade de conciliar os interesses das diversas frações das classes dominantes no âmbito parlamentar, dentre as quais as forças escravistas existentes no Norte e nos território fronteiriços, levou o governo a adiar ao máximo a emancipação dos escravos nos territórios confederados e a criar regimento de negros livres e armados. Lincoln, cumpria, desse modo, o papel que lhe era exigido e para o qual era talhado.
No dia 1º de setembro de 1861 o New York Daily Tribune publicou a proclamação do general John Charles Frémont na qual era anunciado o confisco das propriedades dos habitantes do Missouri que apoiassem a Confederação e a emancipação dos escravos dos rebeldes. O presidente Lincoln havia instruído Frémont a decretar a libertação apenas dos escravos que tivessem sido utilizados pelos confederados nos combates, mas o general foi além e declarou a emancipação de todos, despertando a ira de Washington. Os protestos dos escravistas dos estados fronteiriços, como o Kentucky fizeram o governo revogar o decreto de Frémont e demiti-lo do posto de comandante-em-chefe do Missouri (MECW, v. 19, p. 51).
A contraposição que Marx fez entre as personalidades de Fémont e Lincoln, quando o primeiro foi demitido de seu cargo, em novembro de 1861, permite reconstruir de modo mais preciso sua opinião a respeito do presidencialismo estadunidense e de seu principal mandatário. Longe de apresentá-lo como um “grande estadista”, para os leitores de Die Presse, Marx via Lincoln como a expressão de uma máquina política que se caracterizava por selecionar figuras completamente medíocres:
“Durante as duas últimas décadas, desenvolveu-se nos Estados Unidos a prática singular de não eleger para a presidência um homem que ocupasse uma posição de autoridade em seu próprio partido. Tais homens, é verdade, foram utilizados para manifestações eleitorais, mas assim que se passava a assuntos importantes eles eram retirados e substituídos por mediocridades desconhecidas, influentes apenas localmente. Desta maneira Polk, Pierce, Buchanan, etc, tornaram-se presidentes. Da mesma forma Abraham Lincoln. O general Andrew Jackson foi de fato o último presidente dos Estados Unidos que devia seu posto a sua importância pessoal, enquanto todos os seus sucessores deviam isso, pelo contrário, a sua insignificância pessoal.” (MECW, v. 19, p. 86.)[2]
Ao contrário do impetuoso Frémont, o presidente eleito dos Estados Unidos era absolutamente previsível, movendo-se sempre, como um advogado do interior, nos estreitos limites da Constituição e recusando o conflito aberto contra os escravistas: “Lincoln, de acordo com a sua tradição jurídica, tem aversão por todo gênio, ansiosamente se apega à letra da Constituição e se envergonha de todo passo que possa prejudicar ‘leais’ senhores de escravos dos estados fronteiriços.” (MECW, v. 19, p. 87).
A opinião de Marx não mudou sequer quando teve notícia da proclamação da emancipação dos escravos dos estados confederados, em setembro de 1862. Pelo contrário, não deixou de perceber na declaração a hesitação típica do presidente:
“A figura do presidente Lincoln é sui generis nos anais da história. Sem iniciativa, sem eloquência, sem altivez, sem roupagem histórica. Ele sempre apresenta os atos mais importantes da maneira mais insignificante possível. (…) Hesitante, resistente, relutante, ele marca a aura de bravura de seu papel como se tivesse que pedir perdão pelas circunstâncias que o forçaram ‘a ser um leão’.” (MECW, v. 19, p. 250.)
A AIT e a guerra civil americana
Essa atitude cética para com as instituições dos Estados Unidos e seu presidente não impediram Marx e Engels de procurarem pressionar o movimento abolicionista e o próprio Lincoln em direção à guerra revolucionária. É nessa perspectiva que deve ser lida a surpreendente mensagem que a recém-fundada Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), enviou ao presidente dos Estados Unidos. A redação de uma mensagem de apoio a Lincoln havia sido proposta por Dick e Howell, membros do Conselho Central da AIT na reunião do dia 22 de novembro. Marx parece não ter ficado muito satisfeito com a proposta e de ter que redigir a carta, como dá a entender a Engels, em uma carta de 2 de dezembro de 1864:
“A Mensagem para Lincoln está agora na agenda novamente, e novamente eu tive que compor a coisa (que é muito mais difícil do que escrever um trabalho adequado), na medida em que a fraseologia para esse tipo de escrita é limitada, mas ela está pelo menos distinguível da fraseologia vulgar-democrática” (MECW, v. 42, p. 49.)
O texto de Marx foi aprovado pelo Conselho Central no dia 29 de novembro, depois de intensa discussão. Alguns queriam que, de acordo com a tradição predominante na Inglaterra, a mensagem a Lincoln fosse encaminhada por um parlamentar. Mas essa proposta foi derrotada. Também foi derrotada a proposta de Le Lubez, o qual propôs que a mensagem fosse endereçada ao povo dos Estados Unidos e não a seu presidente (idem). William R. Cramer, secretário da AIT, utilizou seus contatos com o governo dos Estados Unidos para fazer a carta chegar a seu destinatário.
A mensagem redigida por Marx logo após a vitoriosa reeleição de Lincoln e expressa a opinião de que em um segundo mandato o presidente poderia assumir “uma plataforma muito mais radical”: “Congratulamos o povo da América pela sua reeleição por larga maioria. Se a resistência ao Poder Escravista foi a palavra de ordem reservada de sua primeira eleição, o grito de guerra triunfal de sua reeleição é Morte à Escravidão.” (MECW, v. 20, p. 19.) A mensagem da AIT revela que Marx havia passado a considerar, ou pelo menos a tornar explícito, nexo existente entre a emancipação do trabalho e o fim da escravidão. Sem a emancipação dos negros a exploração dos trabalhadores assalariados não poderia ter um fim. A libertação dos escravos era, assim, uma condição para a emancipação de todos os trabalhadores do mundo:
“Enquanto os trabalhadores, as verdadeiras forças políticas do Norte, permitirem que a escravidão contamine sua própria república, enquanto perante o negro, dominado e vendido sem a sua anuência, os trabalhadores de pele branca ostentem a mais alta prerrogativa do trabalhador de venderem-se a si mesmos e escolherem seus próprios mestres, eles serão incapazes de atingir a verdadeira liberdade de trabalho, ou de apoiar seus irmãos europeus na sua luta pela emancipação, mas essa barreira ao progresso tem sido varrida pelo mar vermelho de guerra civil.” (MECW, v. 20, p. 20.)
Marx esperava que assim como a guerra de independência dos Estados Unidos havia revitalizado a burguesia europeia, a guerra antiescravista na América fortalecesse a luta das classes trabalhadoras europeias. A mensagem era concluída de modo dramático:
“Eles [os trabalhadores] consideram uma dádiva da época que tenha sido Abraham Lincoln, o dedicado filho da classe trabalhadora [the single-minded son of the working class], quem conduziu o país através da árdua luta de resgate de uma raça acorrentada e de reconstrução de um mundo social.” (MECW, v. 20, p. 20.)[3]
A resposta veio por meio de uma carta, assinada pelo embaixador dos Estados Unidos na Inglaterra, Charles Francis Adams. O embaixador informava na carta que Lincoln havia recebido a mensagem e que expressava, em caráter pessoal, o desejo de provar-se merecedor da confiança recebida de “tantos amigos da humanidade e do progresso ao redor do mundo” (MARX, 1972. p. 238). Embora cuidadosamente reafirmasse abster-se de todo propagandismo e intervenção ilegal, Lincoln, nas palavras do embaixador, afirmava:
“As nações não existem por si só, mas para promover o bem-estar e a felicidade da humanidade por meio de relações benevolentes e do exemplo. É nesta relação que os Estados Unidos consideram sua causa no presente conflito com a escravidão, mantendo a insurgência como a causa da natureza humana, e derivam novos incentivos para perseverar dos testemunhos dos trabalhadores da Europa de que a atitude nacional recebe sua aprovação esclarecida e suas simpatias sinceras.” (MARX, 1972, p. 239-240.)
O governo dos Estados Unidos estava ciente de que o único apoio que recebera durante a guerra havia sido proveniente das classes trabalhadoras, as quais haviam participado ativamente das manifestações contrárias a uma intervenção da coroa inglesa no continente americano. Por essa razão, manifestou seu reconhecimento do apoio recebido pelos trabalhadores europeus. Apesar de suas reticências iniciais, Marx festejou a resposta de Lincoln à AIT e o fato das manifestações da associações e clubes da burguesia britânica terem sido praticamente ignoradas, em uma carta endereçada a Engels em fevereiro de 1865, cheia de sarcasmo: “Apropos. O fato de Lincoln nos responder tão cortesmente e tão bruscamente e de modo puramente formal à ‘Sociedade pela Emancipação Burguesa’ deixou The Daily News tão indignado que não publicaram a resposta a nós. (…) Você pode imaginar quão gratificante foi isso para nosso pessoal” (MECW, v. 42, p. 86.)
Poucos meses depois o presidente Lincoln foi assassinado e Andrew Johnson assumiu a presidência. Repercutindo o sucesso da carta anterior, o Conselho Central da AIT decidiu no dia 2 de maio mandar uma carta ao novo presidente. Marx mais uma vez redigiu o texto, o qual foi aprovado na reunião do dia 9 de maio e despachado logo a seguir por intermédio do embaixador Charles Adams. Embora a guerra já estivesse decidida o momento era de grande intensidade dramática e a direção na qual a reconstrução seria realizada era ainda incerta. Desta vez o autor da mensagem carregou nos tons, escreveu um texto fortemente emotivo e foi mais condescendente do que nas vezes anteriores com o presidente Lincoln, o qual agora era apresentado como um mártir:
“Mesmo os sicofantas que, ano após ano, e dia após dia, exerceram seu trabalho de Sísifo de assassinar moralmente Abraham Lincoln e a República que ele dirigiu, estão agora horrorizados com essa explosão universal do sentimento popular, e rivalizam uns com os outros em espalhar flores retóricas sobre seu túmulo aberto. Finalmente eles descobriram que era um homem, que não poderia ser intimidado pela adversidade, nem intoxicado pelo sucesso, conduzindo-se inflexivelmente para seu grande objetivo, nunca comprometendo-o pela pressa cega, maturando lentamente seus passos, nunca voltando atrás, jamais se afastando da onda de fervor popular, nunca desanimando com o afrouxamento do impulso do povo, temperando o rigor com o calor de um coração bondoso, iluminando cenários escuros com paixão pelo sorriso de humor, fazendo com humildade e simplicidade seu trabalho titânico, enquanto os governantes nascidos no céu costumam ornamentar as pequenas coisas com a grandiloquência da pompa e do estado; em uma palavra, um dos raros homens que conseguiu se tornar grande, sem deixar de ser bom. Essa, na verdade, era a modéstia deste homem grande e bom, no qual o mundo só descobriu um herói depois de ter caído como mártir.” (MECW, v. 20, p. 99.)
A carta é claramente exagerada, mas também tinha um forte conteúdo politico e procurava apontar a direção que a AIT desejaria que fosse tomada no “árduo trabalho de reconstrução política e regeneração social” (MECW, v. 20, p. 100). Em suas linhas finais a missiva deixava o tom emotivo e grandiloquente, bem como afastava-se definitivamente a fraseologia “vulgar-democrática” e afirmava decididamente a bandeira da AIT: a emancipação dos trabalhadores. Mais uma vez, Marx destacou as origens sociais do presidente:
“Um profundo senso de sua grande missão poderá salvá-lo de qualquer transigência com os duros deveres. Você nunca esquecerá que para iniciar a nova era da emancipação do trabalho, o povo americano depositou as responsabilidades da liderança sobre dois homens de trabalho – Abraham Lincoln, um, Andrew Johnson, o outro” (Idem.)
Essa carta ficou, entretanto, sem resposta e logo as esperanças de seus signatários se viram frustradas. Marx rapidamente passou a desconfiar do novo presidente e cerca de um mês depois da mensagem da AIT a Johnson já manifestava a Engels suas reservas e via a reação avançar:
“A política de Johnson não me agrada. Uma ridícula afetação de severidade para com indivíduos; até então excessivamente vacilante e fraco quando se trata de agir. A reação já está posta na América e em breve se fortalecerá muito se a atual atitude indolente não for deixada para trás imediatamente.” (MECW, v. 42, p. 163).
As desconfianças tornaram-se oposição aberta e em novembro de 1866 Marx escreveu François Lafargue comemorando a derrota eleitoral de Johnson e concluindo: “Os trabalhadores do Norte finalmente compreenderam plenamente que os trabalhadores brancos nunca se emanciparão enquanto os trabalhadores negros forem ainda estigmatizados.” (MECW, v. 42, p. 334). A reação empreendida por Johnson tornava essa perspectiva mais distante e a reação de Marx mais violenta contra ele. Em agosto de 1867 escreveu ao editor do Le Courrier Français, Auguste Vermorel, protestando contra o tratamento benevolente que esse jornal dispensava a Johnson e chamando o presidente dos Estados Unidos de “uma ferramenta suja dos escravocratas” (MECW, v. 42, p. 414).
As esperanças que Marx e Engels haviam depositado na guerra civil encontravam-se, assim, definitivamente frustradas. A guerra, embora tenha conduzido à derrota dos escravistas, permaneceu como uma revolução truncada. Seu resultado foi, assim, uma emancipação mitigada. A segregação racial que assentou suas bases após o fim da guerra manteve os trabalhadores afrodescendentes sob grilhões e os trabalhadores negros e brancos sob o garrote do capital. Marx estava certo sobre a vitória do Norte sobre a qual Engels tantas vezes duvidou. Mas este acertou sobre o resultado mais geral do conflito. A “contrarrevolução democrática” finalmente triunfou mas, paradoxalmente, depois da vitória militar dos capitalistas do Norte.
Referências bibliográficas
BUONICORE, Augusto. Marx, Lincoln e a Guerra Civil Americana. Disponível em: http://grabois.org.br/portal/noticia.php?id_sessao=8&id_noticia=10390.
DILORENZO, Thomas J. The real Lincoln: a new look at Abraham Lincoln, his agenda, and an unnecessary war. New York: Three Rivers, 2003.
KENNEDY, Walter; BENSON, Alan. Red Republicans and Lincoln’s Marxists: Marxism in the Civil War. New York: iUniverse, 2007.
LINCOLN, Abraham. Lincoln on race and slavery: edited and introduced by Henry Louis Gates, Jr. coedited by Donald Yacovone. Princeton: Princeton University, 2009.
MARX, Karl. On America and the Civil war. New York: McGraw-Hill, 1972.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected works. New York: International, 1975, 50 v. (Citado como MECW.)
NAVARRO, Vicenç. Lo que la película Lincoln no dice sobre Lincoln. Disponível em: <http://www.vnavarro.org/?p=8339>. Acesso em: 1 fev. 2013.
NICHOLS, John. Reading Karl Marx with Abraham Lincoln Utopian socialists, German communists, and other republicans. Political Affairs. 27 Nov. 2012. Disponível em: <http://www.politicalaffairs.net/reading-karl-marx-with-abraham-lincoln-utopian-socialists-german-communists-and-other-republicans/>. Acesso em: 1 fev. 2013.
Notas:
[1] Explicando a John A. Gilmer suas a respeito do programa do Partido Republicano, Lincoln escreveu: “Eu não pensei em recomendar a abolição da escravatura no Distrito de Columbia, nem o do tráfico de escravos entre os estados, mesmo em condições indicadas, e se eu fizesse tal recomendação, é bastante claro que o Congresso não poderia segui-la.” (LINCOLN, 2009, p. 212). Sobre o reconhecimento da escravidão no estados em que já era aceita, Lincoln escreveu: a Gilmer: “Você pensa que a escravidão é certa e deve ser prolongado; nós pensamos que é errada e deve ser restrita. Mas isso não é motivo para nos zangarmos um com o outro.” (Idem.)
[2] Obviamente, Marx era mais cuidadoso com as palavras usadas quando se dirigia ao público dos Estados Unidos. Uma das limitações das recentes análises é, justamente, não perceber essa diferença.
[3] À luz dos textos anteriormente citados, nos quais Marx menciona a mediocridade de Lincoln, percebe-se uma boa dose de ironia nessa definição do presidente como “the single-minded son of the working class”. Literalmente single-minded é aquele que possui uma única coisa na cabeça.
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