Carla Luciana Silva
O presente texto é a versão original de artigo publicado no Le Monde Diplomatique.[1] Foi construído a partir da solicitação editorial do jornal de que se escrevesse um artigo de apresentação geral sobre a revista Veja, uma espécie de resenha informativa do livro que publicamos sobre o papel de Veja na construção do neoliberalismo brasileiro nos anos 1990.[2] O objetivo era mostrar a revista para um público não residente no Brasil, que portanto trouxesse dados gerais, além de apresentar uma interpretação crítica.
A revista semanal de informações Veja é a mais conhecida publicação do gênero da América Latina. Sua tiragem é de 1.198.484 exemplares, sendo 924.329 na forma de assinaturas. [3] As leitoras (57%) de Veja superam o número de leitores homens (43%). São sobretudo da classe B (53%), sendo 20% A, 24%C e apenas 3% da classe D.[4] Assim, seu público leitor se concentra nas classes A e B. A faixa etária é variável, sendo 27% com mais de 50 anos, 21% de 25 a 34 e 20% de 35-44. São em sua maioria pessoas com formação acadêmica ou que estão fazendo cursos superiores.
O preço do exemplar avulso da revista é R$9,90. A revista desenvolve agressivas campanhas promocionais de assinaturas para manter sua cartela de clientes. Uma edição da revista tem aproximadamente 144 páginas, sendo por volta de 70, publicidade. A maioria provém de anunciantes privados, ou seja, não estatais. Os preços dos anúncios variam de R$272 mil a R$427 mil (capa).[5] É uma revista presente em muitos lugares públicos como consultórios médicos, estando presente também na maior parte das bibliotecas brasileiras.
O Grupo Abril [6] existe desde 1950, e foi pioneiro na abertura da midia brasileira ao capital externo, tanto com parcerias internas quanto em tentativas de expansão externas. Desde 2004, 30% da empresa pertence ao grupo Naspers, tornando-se o «primeiro conglomerado da midia brasileiro a atrair investimento ».[7] Seus investimentos centrais estão na área da edição (são mais de 50 revistas diretas), e na área da educação, onde atua de duas formas: com a venda de programas de ensino para órgãos privados; e na produção direta de materiais didáticos, em grande parte comprados por órgãos estatais. O Grupo encerrou o ano de 2011 com receita líquida de R$3,15 bilhões.[8]
A revista Veja é a principal publicação do grupo no sentido de buscar influência no âmbito político e na formação de consenso. Mais que notícias, com Veja aprendemos sobre como a direita se organiza e cria seus instrumentos de produção de consenso. Em qualquer situação, se coloca em postura externa, como se estivesse apenas observando e indicando ao seu leitor que “veja” o que ela lhe oferece. Essa postura oculta sua permanente interferência na política. Seu texto pretende-se poderoso, e em vários momentos da história recente do Brasil, soube exercer esse poder, articular e levar adiante interesses políticos. Mas, insiste em dizer que é “apenas um veículo de comunicação”, que faz o “rascunho da história”.
Veja surgiu em 1968, ano do Ato Institucional n.5, marco da radicalização repressiva da Ditadura brasileira, iniciada em 1964. A relação de Veja com a Ditadura sempre foi ambígua. A equipe responsável pelos primeiros anos da revista era heterogênea, abria espaço para jornalistas notadamente de esquerda, e foi censurada. Mas a linha editorial apoiava os grandes projetos da ditadura, as grandes obras, as empreiteiras, a indústria automobilística. E, igualmente importante, após a ditadura, nos anos 1990 e 2000, a revista cria uma versão sobre a ditadura em que sempre privilegia as vozes dos generais, sendo o ditador Ernesto Geisel o grande modelo exaltado, tratado como “o ditador esclarecido”.[9] O projeto de Geisel era intensificar a abertura econômica para o capital associado, equacionando os interesses do capital nacional e multinacional. Configura-se o que viria ser uma relação “capital-imperialista”,[10] em que a ideia de “Brasil-grande, Brasil potência” seria essencial. A revista tem contribuido para fundar uma memória apassivada dos Anos de Chumbo brasileiros.
Veja acompanhou e contribuiu com a construção da hegemonia neoliberal no Brasil, foi o seu “indispensável partido neoliberal”.[11] O fato jornalístico mais relevante da história da revista foi o impeachment de Fernando Collor de Melo. O primeiro presidente eleito após a ditadura construiu uma candidatura que se firmava no « combate à corrupção » e acabou deposto a partir de denúncias de corrupção ao seu governo. Ele estabeleceu as premissas das reformas neoliberais e levou adiante a reestruturação produtiva. Como não possuia forte base política, Veja buscou ajudar a pautar a linha política a seguir, colocando na agenda política as reformas, exigindo privatizações, fazendo campanha contra os funcionários públicos e defendendo a « mudança de comportamento do empresaridado» sobre as formas de gestão. Em sua auto-propaganda posterior, Veja forjou o mito de ter sido o grande instrumento para derrubar um presidente corrupto, dizendo ser o “quarto poder”, ou “os olhos do Brasil”.
Inicialmente, Veja ajudou a construir o candidato Collor e a fazê-lo vencedor, apoiando-se na imagem do candidato “jovem, bonito”, o “caçador de marajás”[12] sobretudo tournou-se o único candidato da direita frente a um forte candidato da esquerda, o Lula da Silva, em 1989. Essa posição estava em sintonia com outros grandes meios de comunicação, especialmente a Rede Globo de Televisão.
O “risco Lula”, ou seja, o risco de que fosse eleito, faz a revista alertar aos leitores, que mudanças estariam em curso e que colocariam em questão o capitalismo. Por outro lado, indica que Collor teria uma estratégia para «segurar o povão», e o coloca na capa para reverberar essa estratégia. Dessa forma, seus leitores encontram indicações do que fazer e como ajudar. O segundo turno foi a campanha eleitoral mais polarizada ideologicamente que o Brasil já teve. Mas a revista ocultava isso. Negava estar em jogo a relação entre capital e trabalho, que não deveriam, de forma alguma ser alteradas. Os editoriais da revista giravam em torno da necessidade de “abrir o Brasil ao capital estrangeiro”, ainda que isso tivesse que ser feito por meio de “medidas impopulares”.[13]
Depois, Veja passa a tentar definir a linha política de Collor, cobrando os ideais liberais, ensinando-o a tratar com empresários recalcitrantes ao seu projeto, com frases como: “a sociedade e o governo não podem contemporizar com empresários que querem capitalismo sem risco e sem competição”.[14] A revista se colocava como árbitro, indicando o que deveriam fazer a sociedade (da qual ela se exclui) e o governo. Em seguida surgiram muitas denúncias de corrupção, até que o próprio irmão de Fernando Collor concede uma entrevista à revista Veja, considerada como estopim da campanha contra ele. No entanto, isso não significou que a revista tenha aderido à campanha anti-Collor, pelo contrário, exerceu o papel de contenção, buscando o consenso, a conciliação para manter o presidente no governo. Somente quando a situação ficou insustentável, ela timidamente sugeriu que o governo deveria renunciar. Posteriormente, elaborou uma imagem pública apresentando-se como o grande arauto da democracia brasileira por ter ajudado a derrubar um presidente corrupto. Em seguida, exerceu permenente pressão sobre o governo de Itamar Franco. Só houve trégua quando Fernando Henrique Cardoso foi escolhido ministro, abrindo espaço para sua posterior candidatura e vitória como denota a capa “Grande Tacada”.
Veja. 26/5/1993
Ja no início do governo de Cardoso Veja elogia o «rumo certo», montando uma capa em que o presidente aparece com roupas militares. Ele é elogiado por ter “peitado” a CUT, ou seja, ter reprimido uma greve através da intervenção militar.[15] Doravante, assim seriam tratadas as organizações dos trabalhadores.
A presença de intelectuais e políticos vinculados ao PSDB[16] nas páginas de Veja durante os anos em que o partido esteve no poder foi permanente. A campanha vitoriosa de Fernando Henrique para presidente em 1994 contou com todo apoio de Veja. A capa da revista nas véperas das eleições dava a manchete: “o que o eleitor quer: ordem, continuidade e prudência”[17] eram as apostas de Veja, o que era facilmente associado pelo leitor com o candidato Fernando Henrique, que já mostrado como o Ministro do Plano Real. Quando o ano acabou, a revista comemorava com edição especial, lançando slogans: “1994, Eta ano bom”, “Eu acredito. 1995”. O tom era de total apoio e otimismo.
Nos oito anos de governos de Fernando Henrique Cardoso houve uma sintonia permanente entre a revista e o governo, embora Veja sempre relembrasse o “rumo certo”, a sequência do plano Real como forma de aplicação do neoliberalismo brasileiro, especialmente as privatizações e a flexibilização das leis trabalhistas. Nas comemorações dos 80 anos de FHC, o presidente do Grupo Abril registra sua homenagem pública: “Tivemos muita sorte em tê-lo na presidência” (Roberto Civita).[18]
Já a relação de Veja com o Partido dos Trabalhadores sempre foi marcada pela ambiguidade. Até os anos 2000 o PT era visto e tratado como um perigo, expressando a marca ditatorial de se relacionar com a organização da classe trabalhadora.
O que querem os radicais do PT foi a capa em vésperas das eleições de 2002 quando Lula viria a ser eleito presidente. A revista delimita sua função de alertar a população contra o “radicalismo” que estaria não em Lula, mas em parcelas do seu partido. A guinada para a direita do partido,[19] recebeu apoio de Veja, especialmente na manutenção da política neoliberal e no encapsulamento dos movimentos sociais. A revista manteve-se firme em vigiar as ações do governo e tentando influenciar no debate junto ao congresso Nacional.
Na lógica do pensamento único, Veja apoia a repressão, desqualifica o movimento da classe trabalhadora, salvo aquele moldável e inepto para a luta. Também por isso a cobertura internacional dá especial atenção aos governos de esquerda latino-americanos, tratados como se fossem “ditaduras populistas”. A capa abaixo mostra o presidente Lula com um “pé no traseiro”, porque estaria sendo ingênuo diante da política do presidente da Bolívia, Evo Morales.[20] Os interesses das multinacionais brasileiras que exploram os demais países latino-americanos sempre prevalecem em Veja.
Atualmente, há uma fase defensiva, pois a revista vem sendo acusada de envolvimento direto em corrupção. Seu editor político aparece associado a um empresário acusado de gestar um esquema de corrupção, o que levou inclusive à criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, conhecida como a “CPI do Cachoeira”. Policarpo Junior,[21] diretor da revista é acusado de publicar notas e reportagens na revista de acordo com os interesses do empresário. Estão no alvo da investigação reportagens da revista, que teriam servido a interesses escusos.
A série de manifestações e denúncias contra a revista, especialmente na blogesfera suscitam sua virulenta reação, chegando a colocar uma chamada de capa: “táticas de guerrilha para manipular as redes sociais”,[22] onde acusa o Partido dos Trabalhadores de colocar um robô para postar contra a revista no twitter. Em solidariedade, o jornal concorrente O Globo apoiou Veja, “em defesa da liberdade”. A imprensa deve vigiar a todos (quarto poder), mas se for ela investigada tratar-se-ia de cerceamento à liberdade.
A revista tem usado páginas e mais páginas de “cartas de leitores” exaltando a sua própria importância, cheias de auto-elogio. Segue portanto, buscando manter seus fieis (e)leitores e manter a aparência de um “simples veículo” de comunicação. No entanto, passados mais de 40 anos, o capital bancário, financeiro e a indústria automobilística permanecem os grandes anunciantes da revista. Os seus interesses, assim como os do grupo Abril e tudo o que representa são efetivamente um projeto para o Brasil, o projeto neoliberal. No início da década de 1990 Veja publicava uma matéria de capa “Brasil anos 90: uma agenda para vencer o atraso”,[23] apontando para a reforma do Estado como um dos objetivos centrais. E foi justamente esse projeto que Veja ajudou a construir nos anos 1990, buscando pautar a política brasileira.
Como esse poder se construiu é difícil de explicar, mas o poder da grande midia no Brasil, a midiatização da política ja são históricas. O processo de concentração das empresas de midia apenas piora a situação, porque os interesses das empresas da comunicação se ampliam, levando a alianças e acordos que aparecem estampados nas bancas de revista como simples capas bem produzidas.
Notas:
[1] Texto entregue ao Le Monde Diplomatique (Paris), em 22/6/2012. Publicado sob o título “Veja”, lê magazine qui compte au Bresil. http://www.monde-diplomatique.fr/2012/12/SILVA/48470. Publicado, após edição e modificações aprovadas pela autora na edição de dezembro de 2012. Reproduzido e retraduzido, em versões distintas, nas edições nacionais do no Le Monde Diplomatique do Chile, da Espanha, de Portugal e do Brasil no mês de dezembro de 2012.
[2] SILVA, Carla. VEJA: o indispensável partido neoliberal. Cascavel, Edunioeste, 2009. coleção Tempos Históricos.
[6] «A Abrilpar, é o holding da família Civita e controla a Abril S.A, detendo o controle do capital da Abril Educação S.A, além de uma série de outros empreendimentos ». http://www.grupoabril.com.br/estrutura/estrutura-10.shtml. A Abril S.A. A divisão societária é : Ativic: 37,58%; Naspers, 29,99% e família Civita 32,43%
[7] Veja. 14/7/2004.
[8] Valor Econômico, 9/4/2012.
[9] O ditador esclarecido. Veja, 22/10/1997.
[10] FONTES, Virginia. O Brasil e o capital-imperialismo. Teoria e História. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, EPSJV, 2010.
[11] SILVA, Carla. VEJA: o indispensável partido neolbieral. (1989-2002). Cascavel, Edunioeste, Coleção Tempos Históricos, 7. ISBN 978.85.7644.196.0
[12] Capa de Veja. 23/3/1988.
[13] Veja. Editorial. 11/10/1989.
[14] Veja. 7/11/1990.
[15] Capa, 31/5/1995.
[16] Partido da Social Democracia Brasileiro. Partido de Fernando Henrique Cardoso, que, eleito duas vezes consecutivas, governou o Brasil de 1994 a 2001. Sua plataforma foi a mais neoliberal até então assumida por um presidente da República no Brasil.
[17] Veja. 5/10/1994.
[19] COELHO, Eurelino . Outra Hegemonia: sobre algumas leituras petistas de Gramsci e suas reviravoltas. Outubro (São Paulo), São Paulo, v. 12, p. 123-141, 2005.
[20] Veja, 10/5/2006.
[21] Policarpo Junior foi alçado à condição de Redator Chefe da revista em janeiro de 2012. É responsável pela editoria política de Brasilia, centro do poder político brasileiro.
[22] Veja. 16/5/2012.
[23] Veja, 1/8/1990. Capa.
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