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TEORIA

John Lennon: a trajetória política de um beatle de esquerda (Parte 1)

Romulo Mattos

No início dos anos 1970, John Lennon acentuou a sua atuação política e impressionou integrantes da Nova Esquerda inglesa, até então reticentes em relação ao artista, que vacilara diante do panorama revolucionário de 1968. Chama atenção uma foto em que o compositor aparece lendo o jornal trotskista Red Mole, para o qual os historiadores e ativistas políticos Tariq Ali e Robin Blackburn  o entrevistaram, em 1971. Antes de abordarmos essa entrevista, analisaremos a trajetória política de Lennon, que, longe de demonstrar linearidade, foi marcada por conflitos, inclusive, com partidários da renovada esquerda britânica.

De início, cabe lembrar que Lennon sempre se apresentou como o beatle mais intelectualizado e disposto a falar sobre política e comportamento, sendo o dono dos “insights mais aprofundados” da banda (MERHEB, 2012, p. 71). Em 1963, quando os Beatles se apresentaram no Royal Variety Show, diante da Rainha da Inglaterra, o cantor declarou:  “O pessoal da geral pode bater palmas. O resto, por favor, chacoalhe as joias” (SARMENTO, 2006, p. 60). Em 1965, quando a beatlemania se espalhara pelo planeta, o músico suscitou uma “guerra santa” contra o seu grupo ao afirmar:

“O cristianismo vai acabar. Vai se dissipar, depois sucumbir. Nem preciso discutir isso. Estou certo e o tempo vai provar. Hoje somos mais populares do que Jesus Cristo. Não sei o que vem primeiro, o rock’n’roll ou o cristianismo. Jesus era legal, mas seus discípulos eram estúpidos e ordinários” (MERHEB, 2012, p. 71).

A repercussão negativa desse episódio levou Lennon a se desculpar perante um batalhão de jornalistas. Em sua fase mais politizada, ele manifestaria o seu arrependimento por ter voltado atrás. O ícone pop também teve de se explicar em 1968, dessa vez para a esquerda, que viu na canção Revolution um retrocesso político, quando o mundo estava em ebulição. Movimentos de protesto e mobilização política pulularam naquele ano, que ficou marcado pelas manifestações nos Estados Unidos contra a Guerra do Vietnã; pela Primavera de Praga; pelo maio libertário dos estudantes e trabalhadores franceses; pelo massacre de estudantes no México; pela alternativa pacifista dos hippies; pela contracultura; e pelos grupos de luta armada espalhados mundo afora (RIDENTI, 2008, p. 136).

Revolution foi a primeira de uma série de canções em que Lennon trouxe o tema da política para o centro de sua produção. O artista iniciava essa letra com o verso “Você diz que quer uma revolução” (“You say you want a revolution”) e completava com uma recusa a participar: “Você já sabe que não pode contar comigo” (“Don’t you know you can count me out”). Luciana Sarmento (2006, p. 114), autora de uma dissertação de mestrado que enfoca o conflito entre consumo e contracultura nas letras dos Beatles, procurou situar Lennon no campo político do período: “Essa música […] fala da contracultura dividida: havia aqueles que partiam para a luta armada, matando e/ou machucando pessoas para abolir o establishment e aqueles que se colocavam ao lado dos movimentos pacifistas” (grifo nosso). Vemos também neste trecho que a pesquisadora parece concordar com o posicionamento adotado pelo beatle, ao deslegitimar implicitamente a opção pela luta armada, que foi uma realidade histórica da época.

Ouça aqui a canção Revolution

Lennon foi admoestado por John Hoyland, crítico musical da Black Dwarf, jornal da Nova Esquerda britânica. O intelectual escreveu uma “CARTA ABERTA A JOHN LENNON”, em 1969, procurando, entre outros assuntos, relativizar o ideário hippie, que girava em torno da paz e do amor, principalmente:

“Essa música [Revolution] é tão revolucionária quanto uma novela de rádio. Para mudar o mundo, precisamos entender o que está errado nele. E, aí, destruir isso. Sem piedade. Isso não é crueldade nem loucura. É uma das formas mais apaixonadas de amor. Por que o que estamos combatendo é o sofrimento, a opressão, a humilhação, o custo imenso da infelicidade cobrado pelo capitalismo. E todo “amor” que não se posiciona contra essas coisas é piegas e irrelevante” (ALI, 2008, pp. 371-2).

Essas palavras tinham endereço certo, uma vez que Lennon costumava dizer para os ativistas sociais Jerry Rubin e Abbie Hoffman: “Estou fora se for pela violência. Não me esperem nas barricadas, a menos que seja com flores” (ROYLANCE, 2001, p. 299). Mais uma frase de efeito da coleção do músico. Hoyland continuou a desconstruir o pacifismo hippie promulgado por Lennon, tentando lhe mostrar, didaticamente, a inviabilidade concreta de tal proposta, no que diz respeito às transformações mais amplas na sociedade:

“Revolução bem-educada não existe. Isso não significa que a violência seja sempre o caminho certo, nem que você tenha necessariamente de comparecer à próxima manifestação. Há outras maneiras de desafiar o sistema. Mas elas exigem que se entenda que os privilegiados farão praticamente tudo – matarão, torturarão, destruirão, promoverão ignorância, apatia e egoísmo aqui e queimarão crianças lá fora – para não entregar o poder” (ALI, 2008, p. 372).

O artista não perdeu tempo e elaborou uma “CARTA MUITO ABERTA DE JOHN LENNON A JOHN HOYLAND”. Reafirmando os seus princípios pacifistas, retrucou: “Obviamente você está numa viagem de destruição” (Ibid, p. 373). O beatle se mostrava particularmente preocupado com os rumos que a revolução poderia tomar, ou seja, com o tipo de sociedade que dela poderia se originar: “Que tipo de sistema você propõe e quem ficaria no controle?” (Idem). Esse tipo de apreensão aparecia em outro trecho, de forma mais veemente: “Me fale de uma de uma só revolução bem-sucedida. Quem fodeu o comunismo, o cristianismo, o capitalismo, o budismo etc.? Cabeças doentes e só” (Idem). Ao completar o seu pensamento, que resvalava em um ceticismo de cariz conservador, Lennon mostrava quão longe podia estar da Nova Esquerda. Isso porque o conceito de luta de classes era praticamente menosprezado em seu discurso: “Acha que todo inimigo usa insígnias capitalistas para você atirar nele? Isso é meio ingênuo, John. Parece que você acha que tudo não passa de uma guerra de classes” (Idem).  Apesar dessa frase, o abastado astro do rock não negava inteiramente a divisão do mundo em classes sociais. Tanto que lembrou a época em que engrossava a fileira dos “estudantes humilhados da classe operária [que compravam] um casaco ou qualquer coisa assim razoavelmente barato e durável” (Idem). Mas a sua preocupação com a melhoria das condições de vida dos  trabalhadores passava ao largo do conflito social, como reforça a última linha de sua carta: “PS.: Você estraçalha e eu construo em volta”.

Este tipo de pregação, transformada em canção no caso de Revolution, contribuía para colocar os Beatles atrás dos Rolling Stones no julgamento dos partidários da esquerda britânica. Ali preferia a banda de Mick Jagger e Keith Richards por acreditar que ela transmitia melhor o espírito de 1968 (2008, p. 347). Hoyland tocou nesse assunto em sua carta endereçada a Lennon:  “ultimamente a sua música vem perdendo força, numa época em que a música dos Stones só vem ganhando força” (Ibid, p. 372). Mas o beatle percebeu que o comentário político do jornalista podia estar contaminado por uma abordagem midiática vulgar, que tendia a alimentar a suposta disputa entre as bandas: “em vez de procurar pelo em ovo nessa história de Beatles e Stones, pense um pouco mais alto […]” (Ibid. 374).

Recuando um pouco, em outubro de 1968, a já mencionada Black Dwarf tinha considerado Satisfaction e Play with fire, ambas escritas pela dupla Jagger e Richards, “clássicos do nosso tempo” e ainda “sementes da nova revolução cultural” (WIENER, 1984, p. 81). Além disso, afirmara que “Revolution” mostrava que os “Beatles foram deliberadamente salvaguardar o investimento capitalista” (Idem). Na edição subsequente, o jornal dera aos Stones status de radicais. Publicado pouco antes de uma nova marcha contra a embaixada americana, o editor fizera publicar a manchete “Marx, Engels, Mick Jagger“. Ao lado de um ensaio de Engels, sob o título “On Street Fighting“, aparecia a letra da canção “Street Fighting Man“, escrita de próprio punho por Jagger, que a enviara à redação para mostrar seu apoio à marcha (Ibid, p. 82).

Em 1969, ao mesmo tempo que Lennon ratificava em carta aberta o pacifismo hippie presente em “Revolution”, as suas ações políticas se aguçavam. Quando o psiquiatra americano e papa do LSD, Timothy Leary, resolveu se candidatar ao governo da Califórnia (tendo como adversário Ronald Reagan!), o artista compôs Come Together, inspirado no slogan da campanha do Partido Psicodélico da Califórnia: “Chegue junto, junte-se à festa” (“Come Together, join the party”) – é interessante notar o trocadilho (em inglês) feito com a palavra party, que pode significar tanto “festa” quanto “partido” (LEARY, 1999, p. 366). Portanto, Come Together foi originalmente escrita como música de campanha de Leary, tendo sido mais tarde aperfeiçoada pelo beatle.

O psiquiatra americano chegou a protestar em carta ao compositor por não ter sido incluído na autoria da música. Esse último se livrou de um possível embaraço jurídico de forma espirituosa – embora pouco coletivista. Disse que era um alfaiate e o candidato um cliente que havia encomendado um terno e nunca mais retornara. Então, ele o vendera para outra pessoa. Mesmo tratando de política, Lennon não perdia de vista a dimensão do mercado. Mas a colaboração entre os dois teve outros episódios interessantes. Leary, autor de artigos a favor da não-violência, participara da gravação de “Give peace a chance”, durante o famoso bed-in promovido por Lennon e Yoko Ono no hotel Queen Elizabeth, em Montreal, em março de 1969. O casal enviara sementes de carvalho para todos os presidentes e ditadores do mundo como um símbolo do movimento pela paz. Durante a estada no referido hotel, os recém-casados se mantiveram esparramados numa cama king-size. Eles também destinaram cerca de U$5000 ao entusiasta do LSD, quando esse esteve no exílio (iniciado em 1970), por meio dos advogados dos Weathermen – grupo de esquerda norte-americano, praticante da luta armada (Ibid, pp. 365-7, 372-3).

Ainda em 1969, no mês de setembro, Lennon organizou o festival Sweet Toronto, para promover “a paz no mundo”. No fim do ano, devolveu ao Palácio de Buckingham a sua insígnia de Membro da Ordem do Império Britânico, em protesto contra o envolvimento da Grã-Bretanha na guerra Nigéria-Biafra, contra o apoio britânico à guerra do Vietnã e contra a queda nas paradas de sucesso da canção Cold Turkey (NOYER, 2010, p. 28). Vemos que, mais uma vez, o artista misturou protesto político e razões mercadológicas, ao tentar também promover um single malsucedido para os padrões de um integrante dos Beatles – grupo que, aliás, passara um período significativo sem dar declarações sobre a Guerra do Vietnã, para não atrapalhar a carreira e os negócios.

Por essa época, Lennon começou a se aproximar de Ali – então editor da mesma Black Dwarf que criticara Revolution –, para o qual telefonava uma ou duas vezes por mês, com o objetivo de conversar sobre a situação do mundo. O início da nova década marcou a fase mais radical de sua carreira, registrada em canções como Working Class Hero, Power to the people e I Found Out. Além disso, o artista concordou em colaborar com o jornal trotskista Red Mole, surgido após uma cisão na esquerda inglesa, que levou Ali a abandonar aquela outra publicação. Assim, Lennon concedeu a esse último e a Blackburn uma entrevista em que o tema da política vinha em primeiro lugar.

Referências bibliográficas

ALI, Tariq. O poder das barricadas. Uma autobiografia dos anos 60. São Paulo: Boitempo, 2008.

LEARY, Timothy. Flashbacks “surfando no caos”: uma autobiografia. São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999.

MERHEB, Rodrigo. O som da revolução: uma história cultural do rock (1965 – 1969). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

NOYER, Paul Du. John Lennon: The Stories Behind Every Song 1970-1980. London: Carlton Books Ltd., 2010.

RIDENTI, Marcelo. “1968: rebeliões e utopias”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge & ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX. V. 3. O tempo das dúvidas: do declínio das utopias às globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

ROYLANCE, Brian. Beatles – Antologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2001.

SARMENTO,  Luciana Villela de Moraes. Ticket to ride. As tensões entre consumo e contracultura nas letras de música dos Beatles. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

WIENER, Jon. Come Together: John Lennon in his time. Illini books ed. Urbana: University of Illinois Press, 1991.