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TEORIA

Um filme, uma questão: o “No” a Pinochet

Rejane Carolina Hoeveler

O recente filme de Pablo Larraín, “No”, despertou reflexões e controvérsias desde sua estreia em dezembro de 2012. O assunto é o plebiscito realizado no Chile em 1988, convocado pelo ditador Augusto Pinochet, que decidiu sobre a continuidade do mesmo no poder, e que acabou se transformando num episódio central da transição chilena da ditadura ao atual modelo democrático. Só por ter reacendido esta discussão, a película já tem seu mérito garantido, além de suas qualidades estéticas; porém, o que se questionou no filme foi a interpretação do cenário político chileno do período (em especial das correntes da esquerda) e do papel atribuído à campanha televisiva do “não” no plebiscito, ambas transmitidas pelo ponto de vista do personagem principal, o publicitário René Saavedra (Gael García Bernal). Para compreender a relevância deste debate, é necessário analisar qual era, de fato, a situação chilena no período abordado pelo filme.

A ditadura neoliberal de Pinochet

Em 1988, a economia chilena já havia se recuperado substancialmente da situação que se encontrava em 1982, quando uma drástica crise financeira (provocada em grande parte pelo “choque Volcker” de 1979) fez explodir a dívida externa do país, assim como de inúmeros outros da América Latina, como o próprio Brasil. Porém, no Chile o choque foi bastante grande devido ao fato de que o país do cobre vinha sendo um laboratório do neoliberalismo ao menos desde 1975. Nunca é demais lembrar o papel que desempenharam os chamados “Chicago boys”, um grupo de economistas formados na Chicago University que compunha o quadro docente de economia da Universidad Católica e que se consolidou como principal articulador da implantação do modelo neoliberal com a atuação de Sergio de Castro, um monetarista ortodoxo, no Ministério da Economia.[1] A liberdade para a aplicação integral do programa neoliberal foi garantida pela violência da ditadura, uma das mais sangrentas já conhecidas pela história contemporânea.[2] O monetarismo e os conhecidos valores individuais propagados pela ideologia neoliberal ofereceram, de quebra, uma espécie de utopia a legitimar a construção do regime. Uma das primeiras medidas foi a tomada de vultuosos empréstimos, concedidos de bom grado pelos bancos internacionais.[3] Entre 1970 e 1978, os investimentos do governo caíram pela metade, o desemprego subiu de 9,7% para 18,7% só entre dezembro de 1974 e dezembro de 1975. A privatização das empresas públicas foi geral, única exceção feita ao cobre, recurso que garantia simplesmente a própria existência do Estado.[4] Em fins de 1978, cinco conglomerados econômicos controlavam 53% dos ativos totais das 250 maiores empresas privadas no Chile.  Os salários reais no período entre 1974 e 1981 mal alcançavam 75% de seu valor em comparação com 1970, e a concentração de renda cresceu assustadoramente. A legislação introduzida em 1979 destruiu a efetividade das negociações coletivas dos sindicatos.

Mas o fato é que, apesar da repressão violenta orquestrada pela DINA (Dirección de Inteligencia Nacional), em 1983 explodiram fortes protestos sociais nos subúrbios chilenos, protagonizados pelos setores mais pauperizados, desempregados ou subempregados que viviam nas “chabolas” (favelas), sobretudo de Santiago; no bairro de La Victoria, até mesmo um sacerdote francês chegou a ser morto no início da operação repressiva que a polícia e o Exército desencadearam sobre a população desses bairros. Foi neste período que os partidos de oposição passaram a desenvolver uma atividade um pouco mais aberta, formando, por um lado, a Alianza Democrática (AD), composta pela democracia cristã e pelos setores “moderados” do Partido Socialista; e por outro, o Movimiento Democrático Popular (MDP), dirigido basicamente pelo Partido Comunista e por setores mais combativos entre os socialistas, do Partido Socialista e de fora deste. É difícil calcular os efeitos que a repressão durante mais 10 anos de ditadura causaram sobre a esquerda, pois setores inteiros da esquerda combativa foram simplesmente varridos da vida política, aliás, da vida em si. Porém, as jornadas de 1983 demonstravam que a classe trabalhadora atacada ainda se defendia, e chegou mesmo a desestabilizar fortemente o regime de Pinochet, que só conseguiu de fato manter-se devido à unidade das Forças Armadas.

Sob os auspícios da Igreja, foi realizado em 1985 o Acuerdo Nacional para la transición hacia la plena democracia, que, significativamente, excluía não somente setores expressivos da esquerda, mas também o próprio Partido Comunista, que, como é sabido, não carregava objetivos revolucionários, porém, como fazia parte da órbita da URSS, não poderia ser oficialmente aceito pela coalizão moderada, que buscava o apoio de Washington. Esta iniciativa seria um embrião da oposição moderada que pactuou com o regime para uma transição negociada, o que assegurou que a mudança de regime excluiria qualquer possibilidade de sonhos allendistas ou revolucionários, e que resultou na continuidade de mecanismos econômicos e políticos da ditadura na nova “democracia”. É neste contexto que se deu o plebiscito de 1988.

O plebiscito e a publicidade

O recurso a plebiscitos foi um dos instrumentos de construção de legitimidade do regime de Pinochet; houve um em 1978, no qual se perguntava se os chilenos apoiavam Pinochet ante à “agressão” internacional, e outro em 1980, para a aprovação de uma nova Constituição, de formato claramente ditatorial, que previa um período de 8 anos no qual Pinochet exerceria um poder executivo sem restrições, e com a possibilidade de ser reeleito por mais 8 anos após isso, a ser referendado por um novo plebiscito. Ambos estes plebiscitos foram marcados por fraudes grotescas, pelo controle total do governo do processo eleitoral, pela propaganda oficial massiva e exclusiva, e, obviamente, pela intimidação da oposição.

O plebiscito de 1988, no entanto, teve que ser diferente devido a inúmeros fatores, entre eles, de fato, uma mudança na posição dos EUA. Desde a política dos direitos humanos de Carter, havia um clima internacional de condenação em relação ao Chile, embora as sanções impostas por Carter (e depois suspensas por Reagan) tenham sido, no mínimo, inócuas.[5] Apesar do teatro das sanções, de fato houve uma ligeira mudança nas recomendações americanas para os regimes políticos latino-americanos. Era melhor e mais estável construir democracias precedimentais do que continuar a pagar os altos custos da intervenção direta das Forças Armadas e da repressão política. Neste mesmo momento estava em pleno curso a construção de uma hegemonia em torno da ideia de “democracia”, como um regime que apenas garantisse os direitos individuais, e não necessariamente os direitos sociais. A democracia, desta forma, se compatibilizaria com a aplicação do neoliberalismo.[6]

Havia no Chile, portanto, um cenário propício para uma transição “sem traumas”: uma “obra” já consolidada (o modelo neoliberal) e uma oposição confiável, disposta a colaborar e a jogar dentro das regras, sem o incômodo de uma esquerda radical com peso para questionar o pacto. Só faltava uma coisa, o ditador aceitar sua queda, e isso foi o maior fruto do plebiscito de 1988, cujos resultados não havia como não serem aceitos pelo governo (calcula-se que havia mais de mil observadores internacionais). De fato, era a primeira campanha mais ou menos livre que ocorria em 15 anos, e foi concedido à oposição um espaço na televisão, de 15 minutos, durante três semanas antes da votação, e um espaço de 15 minutos para a campanha do sim, dirigida basicamente pelo ministro do Interior e principal arquiteto da Constituição de 1980, Sergio Fernández.

A campanha pelo “Não”, objeto do filme de Larraín, já revelava todas essas características da oposição que viraria situação após as eleições de dezembro de 1990. Ela estava voltada para a reconciliação e para a moderação política, foi salpicada mais de humor que de denúncia; e como disse várias vezes o personagem central do filme, “mirava o futuro”. A campanha do Não abriu mão claramente de falar, por exemplo, sobre Allende, e, apesar de conter denúncias sobre violações de direitos humanos, foi pautada por esta característica dita “positiva”, como uma tática para aproximar a juventude. Esta postura de campanha foi, com razão, encarada por muitos militantes da esquerda como um desrespeito à memória dos que tombaram sob aquele regime.

O filme mostra como a confiança na vitória era certa entre os partidários de Pinochet, devido principalmente aos últimos avanços da economia, embora grande parte dessa “confiança” se baseasse numa postura que visava não desagradar o ditador. Mas esse prognóstico (que era compartilhado com infelicidade pela própria oposição) não era de todo irreal, afinal, todos os canais de televisão, jornais e estações de rádio estavam nas mãos do governo há muito, e portanto havia uma infinidade de táticas, tanto de intimidação quanto de persuasão, disponíveis ao mesmo. O filme passa que este pessimismo foi o que levou os principais dirigentes da campanha do Não a darem grande autonomia ao publicitário Saavedra, que se utilizou das modernas técnicas da publicidade para “vender o produto” (a democracia), o que remete em muito ao papel das modernas campanhas televisivas nos atuais regimes democráticos. Por isso mesmo houve setores, como demonstra o filme, que romperam com aquela campanha, se recusando a abrir mão de certos princípios políticos básicos.

Segundo seus críticos, o filme dá a entender, no final das contas, que a propaganda do Não na TV, e em particular, a própria atuação de Saavedra nela, foi o que garantiu de fato o resultado das urnas. Embora não retrate os militantes da esquerda que discordavam daquele tipo de campanha de forma absolutamente caricatural – como é comum em muitos filmes que tratam da esquerda – o filme de fato dá razão aos moderados, parece que eles eram os únicos que realmente estavam “pensando no futuro”, quando, na verdade, se tratava da adesão daquela oposição a um determinado modelo de democracia, o aceitável para uma transição pacífica.

Gabriel Salazar, um dos mais conhecidos historiadores chilenos, e que era militante do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionária) durante a campanha do Não, contestou a versão do filme, e disse que o sucesso da campanha na televisão “só foi possível graças a um sentimento popular latente, de que as pessoas já tinham perdido o medo do terrorismo militar”. De acordo com entrevista concedida ao portal Opera Mundi, Lorena Pizarro, porta-voz da AFDD (Agrupação dos Familiares de Detidos e Desaparecidos Políticos), também expressou opinião semelhante, reconhecendo que os comerciais do “NÃO” na televisão ajudaram a promover o movimento pelo fim da ditadura, mas afirmando, também, que só está de acordo com a versão apresentada pelo filme no que diz respeito à caracterização da campanha do sim (uma campanha extremamente reacionária, baseada em falácias e ataques à oposição como “terrorista”).

Porém, segundo Juán Larraín, produtor do filme, a abordagem não tinha a intenção de subestimar, por exemplo, o papel dos movimentos que antecederam a campanha do Não, e se disse satisfeito pelo fato do filme ter despertado debates. Durante entrevista em Cannes, onde o filme ganhou o prêmio principal na Quinzena dos Realizadores, o diretor Pablo Larraín foi além, afirmando que “Não estamos falando apenas da ditadura e de como ela acabou, mas também do que aconteceu depois, do que vem acontecendo nos últimos 24 anos. O meu país é tipo um shopping center: se você quer qualquer coisa, tem que pagar. Você quer uma boa educação, tem que pagar caro. Se você quer saúde, tem que pagar. Tudo está à venda. Tudo é baseado em dinheiro”. A declaração se faz mais importante no contexto de protestos, protagonizado principalmente pelo renascido movimento estudantil chileno, em sua luta por educação pública, um dos setores mais barbaramente destruído pelos anos de ditadura.

Os estudantes que lutam hoje no Chile têm que se enfrentar com uma democracia que reprime seus protestos em nome da estabilidade política e dos compromissos internacionais, e isso é fruto da transição pactuada. Pinochet se foi, mas o capitalismo neoliberal continuou, e a isso é necessário continuar a campanha do Não: com humor, possivelmente, mas principalmente, sem pactos espúrios.

Referências bibliográficas

GARRETÓN, Manuel Antonio. El plebiscito de 1988 y la transición a la democracia.. Santiago de Chile: Flacso, 1988.

VALDEZ, J. Pinochet’s economists: The Chicago School in Chile. New York, Cambrigde University Press, 1995.

HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.

CHOMSKY, Noam. Rumo a uma nova Guerra Fria. Política externa dos EUA, do Vietnã a Reagan. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2007.

Notas:

[1] Desde os anos 1950, os Estados Unidos vinham financiando o treinamento de economistas chilenos na Universidade de Chicago como parte de um instrumento típico da Guerra Fria, para combater a esquerda socialista na América Latina. O grupo já se reunía desde 1970 e organizavam sua oposição a Allende através de um grupo chamado de “Clube da Segunda-feira”. Sabe-se que a experiência chilena supriu com fartura de dados a formulação do neoliberalismo na Grã-Bretanha, sob Thatcher, e nos EUA, sob Reagan.

[2] Calcula-se até trinta mil o número de mortos, e oitenta mil detenções por motivos políticos só nos 6 primeiros meses após o golpe que depôs e assassinou Allende.

[3] Só nos três primeiros anos, Pinochet recebeu 93 milhões de dólares da AID, 141,8 milhões de dólares do Export-Import Bank e 304,3 milhões de dólares do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

[4] De cerca de 300 empresas estatais que havia em 1973, em 1980 só restavam 24, e a venda desses ativos foi feita em condições especialmente favoráveis aos novos proprietários, a preços de liquidação de expulsão do edifício, além de que o Estado pagou uma subvenção considerável (entre 40 e 50% do preço de compra) aos conglomerados que os compraram.

[5] A sanção mais grave tinha sido a proibição de financiamento do Export-Import Bank para empresas americanas que faziam negócios com o Chile ou em seu território, em represália pela recusa do governo de Pinochet em extraditar os funcionários da DINA procurados pelo assassinato de Orlando Letelier (que havia sido ministro de Allende) e Ronni Moffit, em 1976. Como disse Noam Chomsky, um assassinato em Washington já era considerado ir longe demais! Porém, duas semanas depois do anúncio feito por Carter, a embaixada americana em Santiago publicou um relatório anual sobre a economia chilena, claramente tratando de estimular os investimentos americanos.

[6] A Comissão Trilateral, por exemplo, é simbólica desta mudança de postura dos imperialismos em relação à democracia, e pregava que no terceiro mundo deveriam ser construídas democracias restritas, com instituições fortes e pouco ou nenhum compromisso social.

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