Rodchenko, Lilia e o Cartaz Livros!

Beto della Santa

Rodchenko (1891-1956)

Alexander Mikhailovich Rodchenko (1891-1956) – artista visual, fotógrafo, escultor, realizador cinematográfico, agitprop e precursor expoente do assim-chamado design – pode ser considerado, junto a companheiros de jornada simbólica tais como Vladimir Maiakóvski, Dziga Vertov e outros, dentre os mais versáteis artistas totais que a primavera social e política da Revolução dos Soviets fez florescer no terreno fértil duma nova cultura socialista. É de sua bôa lavra o belo cartaz que estampa em seu interior a figura ímpar de Lilia Brik – verdadeira musa inspiradora, sobre a qual logo trataremos – com lenço amarrado à cabeça, sorriso nos olhos, como que a megafonizar dizeres em alfabeto cirílico (“Livros!”) junto a traços arrojados (e cores vibrantes) de nítida inspiração no movimento modernista russo. A fotomontagem – datada, esta, de 1924 – destinava-se a anúncio público da editora soviética Gosizdat, cuja missão consistia em socializar os meios fundamentais da produção da existência de bens culturais e comunicacionais. A situação revolucionária mundial que fez tremer às estruturas de poder da Velha Europa espraiou-se por diversas partes do continente e deu lugar (e hora) a novas trilhas e considerações que, em meio às mais várias contradições vivas do movimento do real, revolucionaram, para além da economia política (e sua crítica), a tôdas relações sociais realmente existentes. Rodchenko, como legítimo herdeiro de Outubro, aspirava reintegrar a arte à vida. Tornou-se conhecido através de áreas tão diversas da produção cultural quanto a montagem cinematográfica, o design gráfico, o agitprop socialista – por meio de cartazes, pôsteres, letreiros etc. etc. e etc. –, as artes plásticas, a tipografia/editoração, o jornalismo esportivo, a curadoria/museologia, a educação artística e, sobretudo, a fotografia de avant-garde. A política do sensível a qual animava seu trabalho brotava dum engajado militantismo, enquanto autêntica força produtiva, e nunca se acomodou a fórmulas estético-sociais de qualquer índole. O efeito de estranhamento oriundo das angulações desafiadoras com que enfrentava os temas retratados questionava em ato não só um cânone fotográfico e/ou a estética dominante mas, por fim, o próprio olhar do espectador: vistos muito de cima ou muito de baixo, perspectiva e profundidade, tal qual extensão e movimento, ganhavam sentidos renovados. Como o teatro dialético de Bertolt Brecht ou o cinema moderno de Sergei Eisestein, Rodchenko reinventou não só a sintaxe e a semântica de seu campo, mas sua própria linguagem, tendo em vista que, muito a contragôsto da nomenklatura política (e, é claro!, de seu respectivo apparatchik cultural) da burocracia moscovita, o aspecto verdadeiramente social em artes se realiza na forma. Se a revolução bolchevique o alçou a diretor do Departamento de Museus, responsável direto pela reorganização das Escolas de Artes e livre-docente dos Estúdios Técnico-Artísticos Avançados, a contrarrevolução stalinista condenou-o ao ostracismo da fotografia de paradas militares, baniu-o dos círculos artísticos centrais e, até que, enfim, fez com que se decidisse a abandonar a fotografia, embora organizasse exposições até 1950.

Lilia (1891-1978)

Lilia Iuerevna Kagan Brik (1891-1978) – uma espécie de sereia encantadora da vanguarda soviética, contemporânea (e musa) de Rodchenko –, ou, simplesmente, Lilia Brik, foi, de fato, tão extraordinária quanto a poesia, as artes visuais e a pintura as quais inspirou. Ela mesma versada em artes cênicas, literatura, ballet clássico e arquitetura e urbanismo, levou uma vida “em cada filigrana do ser tão inusual quanto a arte que alentou”. A afirmação da jornalista londrina Sue Steward, quiçá grandiloqüente na forma literária, corresponde à constatação de fatos e personagens, pensamentos e sentimentos, afetos e convicções que formavam o conteúdo social do próprio ar respirado por Lilia nos primeiros decênios dos idos de 1900. A dois anos da eclosão intempestiva da Revolução dos Soviets, num dos muitos saraus artísticos promovidos no estúdio de Lilia e seu marido Osip Brik – crítico literário e reputado editor –, Lilia viria a conhecer o bonito ex-companheiro de sua irmã, um então juveníssimo Vladimir Maiakóvski. Como costumava fazer, declamou a plenos pulmões um de seus poemas escalonados, arrebatando ao público com uma voz grave de barítono-baixo, olhos flamejantes e gestos impetuosos desde o alto duma estatura física e moral tonitruante e cônscia de si:

De tôda caduca quietude me vou despido,/

nem um só fio de cabelo branco n’alma!/

Trovoando o mundo com a pujança de/

Minha voz,/ minha voz,/

Vou por aí – garboso,/

Os vinte-e-dois anos./

(Nuvem de Calças, 1915, Vladimir Maiakóvski, excerto/tradução nossos.)

O que Leon Trotsky diz a respeito do futurismo russo em geral, e, em particular, sobre a poesia maikovskiana, é de tôdo verdadeiro. O individualismo boêmio excomungava tôda e qualquer tradição como anti-revolucionária, por um lado, e, por outro, dava aos assuntos do eu-lírico proporções de escala épica, falando em tertúlias de salão como quem discursa em praça pública e vice-versa. O que encantou Lilia, contudo, foi perceber algo de ternura e vulnerabilidade em meio a tamanho vigor e intensidade. Daí então deu-se a conhecer um dos casos de amor mais dramáticos – e apaixonados – que registra a história da revolução russa. E, se vale a chave heurística, um caso singular de personagens integrais duma autêntica história universal. Uma revolução digna desse nome não se deparou diante de fatos políticos, sociais e/ou econômicos, mas constituiu o eixo central para se operar mudanças à cultura, à cotidianidade e ao modo de vida. O próprio amor sexual, para além de suas instituições políticas e jurídicas reguladoras, conheceu um novo florescimento de formas e sentidos até então alheios ao metabolismo social de produção e troca tipicamente capitalistas. O “amor-camaradagem” (Alexandra Kollontai) que unia Osip Brik e Lilia não foi impedimento a que os laços de afeto com Maiakóvski se estabelecessem e aprofundassem. No clássico volume publicado pela Editora Perspectiva, de poemas selecionados de Vladimir Maikóvski – transcriados (traduzidos) pelos irmãos Campos junto a Boris Schneidermann –, inclui-se uma entrevista franca e esclarecedora de Lilia a Boris ao final do livro. Com ele conhecemos fotografias, fac-símiles, poemas visuais – entre eles o famoso Liubliú (Amo!), poema-anel de homenagem-aliteração à mulher amada – e uma narrativa vibrante do significado social (e do sentido pessoal) daquilo que os dias de hoje (e de ontem) chamariam um triângulo amoroso. Lilia colaborou com Osip Brik, alentou versos de Maikóvski (Lilitchika) e inspirou obras de Rodchenko. Os quatro trabalharam intensamente como grupo social, junto ao LEF, o Levy Front Iskustv ou Frente de Esquerda nas Artes. Um dos resultados pode ser visto no fac-símile do cartaz de propaganda da editora soviética ,Gosizdat, que traz Lilia numa das imagens mais imitadas desta era.

Cartaz Livros! (Rodchenko e Lilia, 1924)

O Cartaz Livros!, criado em 1924 por Alexander Rodchenko e Lilia Brik para a editora Gosizdat, é talvez uma das imagens mais conhecidas da publicística soviética. Produzido para promover os livros e a leitura nos primeiros anos da jovem república soviética, trata-se duma imagem simples e poderosa, representativa do agitprop socialista da época. Franz Ferdinand (2004), p.e., utiliza-o como inspiração para a capa de seu segundo álbum solo.