O PSR de Sacchetta e Florestan
Felipe Demier
Bastante desarticulado devido à repressão varguista pós-novembro de 1935, o PCB assistiu, em meados de 1937, a uma significativa crise no seu interior. Discordando da concepção estratégica que apontava a burguesia como “força motriz da revolução brasileira” e das táticas que se gestavam na direção partidária para a intervenção nas eleições presidenciais de 1938,[1] a maioria do Comitê Regional de São Paulo, em aliança com setores de outras regionais, deu origem ao Comitê Central Provisório (CCP) – também autodenominado de “Comitê Regional do PCB” –, liderado por Heitor Ferreira Lima e Hermínio Sacchetta. Derrotado pela facção partidária comandada por Lauro Reginaldo da Rocha (“Bangu”) – que contou com o apoio, por intermédio de transmissões radiofônicas, da IC –, o CCP sofreu uma cisão, autodenominada Dissidência pró-Reagrupamento da Vanguarda Revolucionária.[2] No ano de 1938, esse agrupamento, no qual se destacavam figuras como o advogado Alberto Moniz da Rocha Barros e o jornalista José Stacchini, além do próprio Sacchetta, aproximou-se do POL.[3]
Em agosto de 1939, a fusão entre o POL e o agrupamento de Sacchetta, reunindo o que se pode chamar da segunda geração do trotskismo brasileiro, deu origem ao Partido Socialista Revolucionário (PSR), logo reconhecido como seção brasileira da IV Internacional. Contudo, os vínculos entre esta e o novo partido foram, até 1943, bastante esporádicos. O clima bélico mundial instaurado definitivamente no mesmo ano de 1939 e a morte de Trotsky em 1940, no México, fizeram com que a própria IV Internacional carecesse de organicidade, deixando um tanto quanto “soltas” suas seções nacionais. Somou-se a isso o fato de que Mário Pedrosa, ainda em 1939, juntamente com um setor minoritário do norte-americano Socialist Workers Party (SWP), rompeu com a internacional trotskista em função de divergências sobre a caracterização da União Soviética.[4] Segundo a direção da IV Internacional, por motivos “fracionais”, Pedrosa teria dificultado o contato da organização com os militantes que permaneceram no PSR.[5]
Exercendo suas atividades em meio à repressão estadonovista, o PSR inicialmente divulgou suas posições também por meio d’A luta de classe – jornal que havia sido criado pela Liga Comunista do Brasil e preservado pelas organizações trotskistas seguintes (LCI e POL) – e, depois, passou a editar o periódico Luta Proletária. A partir de 1943 (ano em que estreitou seus laços com a IV Internacional), o PSR passou a defender a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte para por fim ao Estado Novo – vale lembrar que foi justamente em 1943 que Vargas iniciou uma guinada “democrática” no regime. Em 1945, com o fim da guerra e com a ditadura em crise, os trotskistas propuseram a formação de uma “frente única” entre os socialistas e as forças democráticas (que incluía a oposição liberal a Vargas) contra eventuais manobras ditatoriais da cúpula governamental que visassem impedir as eleições esperadas. Ainda em 1945, os trotskistas convidaram o conjunto da esquerda para participar de uma frente eleitoral, a Coligação Democrática Radical, proposta que malogrou, principalmente, devido ao lançamento da candidatura, por parte do PCB, do médico Yedo Fiúza.[6] Nas eleições estaduais de 1947, o PSR chamou o “voto em branco” para governador e o “voto crítico” nos comunistas (PCB) para deputados.
Entre outubro de 1946 e janeiro de 1948, o PSR editou o jornal Orientação Socialista, no qual foram publicados vários artigos de Sacchetta de conteúdo extremamente crítico às teses “etapistas” do PCB;[7] Nos anos finais do partido, na década de 1950, seu periódico voltaria a se chamar Luta Proletária. O partido trotskista obteve também uma significativa influência na editora paulista Flama, que publicou traduções de Marx, Engels, Rosa Luxemburgo e Kautsky. Com uma inserção bastante marginal entre os trabalhadores e praticamente restrito a São Paulo, o PSR atuou junto a categorias como a dos gráficos, dos jornalistas e dos vidreiros. Entre 1951 e 1952, devido a motivos ainda não muito esclarecidos, o PSR deixou de existir.[8] Em 1956, Hermínio Sacchetta organizaria a Liga Socialista Independente (LSI), agrupamento de inspiração luxemburguista que contou com a presença de nomes como Paul Singer, Michael Löwy, Maurício Tragtenberg, Moniz Bandeira e os irmãos Emir e Éder Sader.
Chamamos um atenção especial neste pequeno artigo para o fato de que, entre 1942 e 1952 (aproximadamente), o futuro renomado acadêmico Florestan Fernandes foi membro do PSR.[9] A adesão do então estudante de sociologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, “núcleo-matriz” da Universidade de São Paulo (USP), ao partido trotskista deu-se por intermédio de Sacchetta, que Florestan conhecera na redação do jornal paulista Folha da Manhã. Convidado pelo jornalista trotskista a militar no pequeno grupo, Florestan encontrou um lugar no qual o “colaboracionismo” de classes propagado pelo PCB não obtinha ressonância. Em uma entrevista de 1995, o sociólogo assim falou de sua participação política entre os trotskistas do PSR:
“Eu venerava muito o partido e algumas das figuras do PC, mas ao mesmo tempo não gostava da conciliação de interesses que levava o partido a ter uma face para o movimento operário e outra face para a burguesia. A organização em que militei era filiada à IV Internacional, tinha uma pequena base operária e uma colaboração de intelectuais…O grupo era relativamente pequeno, caberia na categoria de grupúsculos, segundo os franceses, sem diminuir a importância. Mas tinha operários, não muitos, tinha pessoas empenhadas nos problemas da mulher, nos problemas da pobreza e no combate comum ao Estado Novo…Os meus colegas trotskistas não compartilhavam do sacrifício que exigia o meu trabalho na universidade, por causa até da atividade partidária. Eu sempre dava uma contribuição menor do que a que eles esperavam. Fiquei na organização até mais ou menos 1952. Tinha entrado em 1942.”[10]
Não obstante o fato de não ter se dedicado exclusivamente à militância partidária, Florestan participou intensamente das atividades da organização. Segundo Laurez Cerqueira, Florestan cedeu sua residência para reuniões do PSR e, num dos cômodos dela, instalou um mimeógrafo no qual eram rodados textos do partido. O jovem intelectual foi também um dos redatores do “Anteprojeto Técnico Eleitoral”, documento político-programático apresentado em 1945 pela Coligação Democrática Radical, entidade (como foi visto pouco acima) impulsionada pelos trotskistas com vistas a aglutinar o conjunto da esquerda nas eleições presidenciais e parlamentares à Constituinte que se avizinhava.[11] Em 1946, foi publicada pela Flama a Contribuição à crítica da economia política, de Marx (MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Flama, 1946), traduzida por Florestan a pedido de Sacchetta, então à frente da casa editorial. A edição que trouxe uma introdução de sua autoria bastante elogiada pelos intelectuais da época.
A partir de 1945, Florestan Fernandes passou a lecionar na Faculdade de Filosofia. Após um período em que, com muito sacrifício, conciliou as atividades de militante e acadêmico, Florestan, por volta de 1952, quando concluía sua tese de doutoramento (FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade tupinambá. 3ª edição. São Paulo: Globo, 2006), finalmente optou pela carreira universitária. Nessa difícil escolha, o já destacado intelectual obteve o apoio de seu próprio dirigente partidário, Hermínio Sacchetta:
“Com a filiação ao PSR, a seção brasileira da IV Internacional, minha militância se tornou sistemática […] eu me mantive [no partido] até o início dos anos 50. Aí os próprios companheiros acharam que não seria conveniente que eu desperdiçasse o tempo em um movimento de pequeno alcance, quando podia me dedicar a trabalhos de maior envergadura na universidade. O Sacchetta, que era um homem esclarecido, me aconselhou: ‘É melhor você se afastar da organização e se dedicar à universidade, que vai ser mais importante para nós’.”[12]
O abandono da militância partidária, motivado pela necessidade de concentrar-se integralmente no mundo acadêmico, provocou em Florestan, segundo o próprio, uma “crise de consciência”:[13]
“Passado o período da militância, defrontei-me com uma acomodação improdutiva: ou ser militante, com o sacrifício de minhas possibilidades intelectuais, ou ser universitário, com atividades políticas de fachada, mistificadoras. Uma tormentosa crise foi resolvida com a generosidade dos companheiros políticos, que viam claro a realidade: a esquerda ainda não possuía partidos que pudessem aproveitar o intelectual rebelde de forma produtiva para o pensamento político revolucionário. Por sua vez, Antonio Cândido ajudou-me a conviver com feridas e frustrações, que surgiam como um pesadelo e me levaram a sublimar a castração política parcial com uma prática exigente e (acredito) autopunitiva do significado da responsabilidade intelectual.”[14]
Ainda que não partidariamente, Florestan Fernandes nunca deixou de fazer política, mesmo que, durante um longo tempo, a fizesse apenas por intermédio de seus escritos universitários. Seria somente cerca de trinta anos depois que Florestan novamente combinaria as duas funções (a de militante e a de acadêmico), quando aderiu ao Partido dos Trabalhadores (PT), pelo qual foi eleito deputado federal em 1987, cargo que exerceria por dois mandatos. Nas polêmicas travadas dentre a militância petista, Florestan sempre propugnaria a necessidade do partido se portar como um defensor do fim da propriedade privada dos meios de produção, opondo-se à expulsão das correntes trotskistas do seu interior.[15] Segundo Coggiola, “toda a bagagem política adquirida [por Florestan] no PSR voltava à tona” quando o velho intelectual imergia nos debates programáticos de seu novo partido.[16] Talvez seja interessante mencionar ainda que, em 1990, quando do aniversário de cinqüenta anos da morte de Trotsky, Florestan, afastado organicamente dos trotskistas havia quase quatro décadas, não se furtou a reafirmar, em palestras e trabalhos apresentados em eventos “comemorativos” à data, a inquestionável validade histórica da “teoria da revolução permanente”, assim como o papel político fundamental para o movimento operário desempenhado pelo revolucionário russo desde 1905 até seu assassinato.[17] Os que conhecem a produção científica de Florestan poderão notar como a militância trotskista em sua juventude acabou por deixar marcas indeléveis em Florestan.[18]
Notas:
[1] O PCB cogitava fortemente o apoio ao candidato José Américo de Almeida. Contudo, como se sabe, o golpe estadonovista de novembro de 1937 levaria à frustação do pleito presidencial.
[2] Quanto à história da cisão do PCB envolvendo a Dissidência pró-Reagrupamento da Vanguarda Revolucionária, ver KAREPOVS, Dainis. Luta subterrânea. O PCB em 1937-1938. São Paulo: Unesp/Hucitec, 2003.
[3] No debate acerca das futuras eleições de 1938, o POL defendeu o lançamento do nome de Luiz Carlos Prestes, que se encontrava preso, para candidato à Presidência da República.
[4]As posições de Trotsky (e da maioria do SWP) nessa polêmica travada no seio da internacional trotskista podem ser vistas em TROTSKY, L Em defesa do marxismo. São Paulo: Sundermann, 2011. Já as posições de Mário Pedrosa (compartilhadas pelos dissidentes do SWP) podem ser encontradas em PEDROSA, M. “A defesa da URSS na guerra atual” in Cadernos AEL: trotskismo (v. 12, nº. 22/23). Campinas: Unicamp/IFCH/AEL, 2005, p. 289-318.
[5] Mário Pedrosa, rompido com o trotskismo, dirigiu, ao lado da poetisa Patrícia Galvão (Pagu), que havia sido do PSR, o jornal Vanguarda Socialista. Em 1945, já no Partido Socialista Brasileiro (PSB), defendeu a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à Presidência da República. Muitos anos depois, após a volta do exílio vivido durante a ditadura militar brasileira, seria homenageado ao ser escolhido para preencher a primeira ficha de filiação do Partido dos Trabalhadores (PT) no ato de sua fundação, realizado em fevereiro de 1980. Em novembro do ano seguinte, aos 81 anos de idade, o “fundador” do trotskismo brasileiro e consagrado crítico de arte morreria em sua casa no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro.
[6] Os militantes do periódico Vanguarda Socialista, alocados em sua maioria no PSB, defenderam, como dissemos, o voto em Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional (UDN). Isolados, os trotskistas do PSR anularam seus votos, sufragando nas cédulas o nome de Luiz Carlos Prestes.
[7] Os interessados na trajetória do Orientação Socialista podem consultar FERREIRA, P. R. Imprensa política e ideologia: Orientação Socialista (1946-1948). São Paulo: Moraes, 1989.
[8] Segundo Murilo Leal, a nova crise da IV Internacional, aberta após a vitória de Pablo e Mandel no III Congresso da organização, e a convergência de militantes do partido com as posições do grupo Vanguarda Socialista referentes à natureza social da União Soviética podem ter sido alguns dos motivos que levaram ao fim o PSR (LEAL, M. À esquerda da esquerda. Trotskistas, comunistas e populistas no Brasil contemporâneo (1952-1966). São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 27-34).
[9] As informações acerca da relação de Florestan Fernandes com o PSR foram retiradas de COGGIOLA, O. “Florestan Fernandes e o socialismo” in FERNANDES, F. Em busca do socialismo. Últimos escritos e outros textos. São Paulo: Xamã, 1995, p. 9-28. e de CERQUEIRA, Laurez. Florestan Fernandes. Vida e obra. São Paulo: Expressão popular, 2004.
[10] LEITE, Paulo Moreira. “Vida e transformação, as convivas do Florestan”. Jornal da Tarde. São Paulo, 19 de agosto de 1995, apud COGGIOLA, O. “Florestan Fernandes e o socialismo”. Op. cit., p. 14.
[11] Cerqueira, Laurez. Op. cit., p. 43.
[12] VENCESLAU, Paulo de Tarso. “Florestan Fernandes” (entrevista) in Teoria e debate n.º 13. São Paulo, fevereiro de 1991, apud COGGIOLA, O. “Florestan Fernandes e o socialismo”. Op. cit., p. 11.
[13] COGGIOLA, O. “Florestan Fernandes e o socialismo”. Op. cit., p. 10.
[14] FERNANDES, Florestan. Que tipo de república? São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 252, apud COGGIOLA, O. “Florestan Fernandes e o socialismo”. Op. cit., p. 10.
[15] COGGIOLA, O. “Florestan Fernandes e o socialismo”. Op. cit., p. 24-25.
[16] Idem, p. 25.
[17] Ver FERNANDES, Florestan. “Trotsky e a revolução” in ____. Em busca do socialismo. Op. cit.
[18] DEMIER, Felipe. “A lei do desenvolvimento desigual e combinado e a intelectualidade brasileira” in Outubro, n. 16, 2008.
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