[A editora Alameda publicará no início de 2013 o livro Arqueomarxismo: comentários sobre o pensamento socialista, de Alvaro Bianchi. O blog CONVERGÊNCIA antecipa o lançamento e publica aqui a apresentação dessa obra.]
Não quero deixar lugar a dúvidas: este livro, reunindo comentários a respeito do arqueomarxismo, é, de ponta a ponta, uma provocação. Os textos que têm nele lugar foram escritos algumas vezes com objetivos polêmicos explícitos e outras com a intenção de tornar públicas algumas ideias longamente elaboradas. Mas foram sempre provocações, procuravam mais ofender do que defender.
Ofender a quem? Certamente a um pensamento conservador falsamente ilustrado, que teima em desembainhar sua torta espada para atacar o espectro que o assombra. (Como se espadas pudessem enfrentar espectros!) Pois não é paradoxal que esse pensamento conservador o qual afirma que o marxismo é uma forma de arcaísmo e ainda mais uma forma derrotada pela história, viva organizando suas cruzadas na tentativa de vencê-lo mais uma vez? Mas também ofender certo marxismo que se converteu em ideologia de Estado ou que pretende sê-lo e para tal está sempre em busca de um novo guia genial, de um grande timoneiro, de um farol do socialismo.
Para que fique ainda mais claro esse caráter provocativo iniciarei definindo os termos que organizam este livro. Primeiro a noção de comentário. Seguindo livremente algumas ideias de Walter Benjamin quero distinguir um comentário de uma enquete. Uma enquete tem por objetivo escrutinar um objeto e emitir a respeito dele um juízo de fato ou mesmo de valor. Quando assume como objeto um pensamento político-social o escrutinador ideal comporta-se como o físico ideal diante de uma teoria: analisa sua consistência lógica, submete-a a testes, procura validá-la ou invalidá-la. Obviamente as técnicas de ambos são muito diferentes assim como os resultados que podem almejar. Mas é uma atitude típica que quero aqui destacar. O que caracteriza o comportamento do escrutinador é uma atitude ao mesmo tempo distante e desconfiada perante seu objeto.
Essa atitude na qual se sustenta a crítica já produziu grandes obras. Karl Marx fez um profundo exercício de enquete em Die heilige Familie oder Kritik der kritischen Kritik (A sagrada família, ou crítica da crítica crítica) esquadrinhando criticamente a filosofia alemã de sua época e principalmente a obra de Bruno Bauer. E retornou a esse gênero em Misère de la philosophie (Miséria da filosofia), uma avaliação implacável da obra de Joseph Proudhon Système des contradictions économiques ou Philosophie de la misere (Sistema de contradições econômicas ou Filosofia da miséria). Tais obras caracterizavam-se por um propósito negativo previamente anunciado. Foi contra Bauer e Proudhon que Marx escreveu. Seu distanciamento era o resultado de seu antagonismo.
Essa atitude crítica-negativa nem sempre foi assumida pelos escrutinadores. Sabe-se que muitas vezes o distanciamento e a desconfiança não passam de um programa, uma meta, um desejo. Mas frequentemente não são, senão, uma farsa. Um fingido distanciamento e uma simulada desconfiança são as máscaras às quais ao avaliador recorre para ocultar seus desejos, suas preferências, seus preconceitos, seu partido. O fato da enquete do pensamento político-social assumir uma forma similar àquela das ciências naturais torna a farsa mais fácil de ser executada e seu resultado mais plausível. O distanciamento transfigura-se, assim, em exterioridade e a desconfiança em repulsa; uma exterioridade e uma repulsa que se apresentam como o resultado de um empenho autodefinido como científico e não como algo que sempre esteve pressuposto.
A atitude assumida no conjunto de textos que compõem este livro não é a do escrutinador e sim a do comentador. Um comentário não tem as mesmas preocupações da avaliação. Não está interessado em analisar a consistência lógica de uma obra ou submetê-la a testes. Nem gasta seu tempo em validá-la ou invalidá-la. E sequer tem a obrigação de emitir juízos de fato ou de valor. O comentário parte do pressuposto de que a obra em questão já passou por tudo isso e sobreviveu às provas às quais foi submetida. O que se encontra diante dos olhos de um comentador é uma obra que resistiu ao tempo e que, por isso, não precisa mais ser avaliada ou submetida a um escrutínio crítico-negativo. O comentário, diz Benjamin, “difere da avaliação na medida em que se preocupa apenas com a beleza e o conteúdo positivo do texto.” (Benjamin, 2005, v. 4, p. 215).
A atenção à “beleza e ao conteúdo positivo do texto” não extingue o caráter crítico do comentário. Comentar um texto não implica em uma atitude condescendente com ele ou com seu autor. Também não elimina as exigências de rigor e sobriedade próprias de uma atitude crítica. O comentário distingue-se fundamentalmente da avaliação na medida em que parte de um prejulgamento a respeito da relevância da obra e do autor em questão. Que horror! Uma prenoção! Pior ainda, um preconceito! Não é justamente disso o que um cientista, nos ensinou Durkheim, deveria se afastar? Mas quantas vezes o próprio Durkheim não expressou seus preconceitos para com o marxismo e o socialismo? É esta a diferença: o comentador não necessita tomar partido e sim reconhecer previamente o valor daquilo que assume como objeto, mas ele pode tomar partido. O comentador é um crítico sem culpas.
O próprio Benjamin nos deu um exemplo de comentário: aquele no qual tratando da obra poética de Bertold Brecht apresenta o conceito – Kommentare zu Gedichten von Brecht. Seu ponto de partida foi o reconhecimento do caráter clássico dos poemas de Brecht. A situação desse comentário era para Benjamin altamente “dialética”, uma vez que se tratava de tomar nas mãos uma coleção atual de poemas (há pouco publicados) e dar-lhe o tratamento de um texto clássico. Quem lê com desconfiança as críticas dos suplementos culturais da imprensa quotidiana que repetidamente anunciam um “novo clássico” para esquecê-lo na semana seguinte sabe quão arriscada foi a aposta de Benjamin. Mas sua aposta se confirmou: Brecht ainda hoje é lido e não deixará de sê-lo.
O fato de considerar os poemas de Brecht clássicos e de empenhar-se em mostrar sua “beleza e o conteúdo positivo do texto” não impediram Benjamin de criticar asperamente o poeta. A lírica de Brecht era contemporânea e desafiava as autoridades existentes e era isso que atraía o crítico. Ela também tinha um conteúdo político que se expressava poeticamente e era isso o que fazia o crítico tomar seu partido. Isso não impedia a Benjamin de perceber os limites dessa poesia e, particularmente, que condenasse a atitude do poeta perante o stalinismo e sua polícia política, a GPU (cf. p. ex. Benjamin, 2005, v. 4, p. 159). É essa modalidade de crítica anunciada por Benjamin que se quer aqui seguir.
Agora a noção de arqueomarxismo. Para alguns a palavra deve imediatamente trazer à mente algo muito antigo ou há muito deixado para trás. Para outros a lembrança dos exercícios de arqueologia dos saberes de Michel Foucault podem vir à memória. O que pretendo destacar com esse conceito não é nem uma nem outra coisa. O prefixo arqueo- deriva da palavra grega arkhé (ἀρχή) que quer dizer o princípio, o início do mundo, aquilo que começa e o que constantemente determina a marcha. O princípio, o início do marxismo deve ser evidentemente a obra de Karl Marx, mas não pode ser ele próprio, o qual, segundo narrou seu amigo Friedrich Engels, teria dito a Paul Lafargue que não era marxista: “Ce qu’il y a de certain c’est que moi, je ne suis pas Marxiste” (MECW, v. 46, p. 356).
Os marxistas vieram depois de Marx. Trabalharam a partir das pistas deixadas por suas obras, consolidaram ideias nelas presentes, abriram novos continentes para a pesquisa e a prática política. O marxismo, como movimento teórico e político necessitou, em seu próprio princípio, da intervenção de intelectuais e militantes socialistas que lhe deram forma e o converteram em uma força material, determinando desse modo sua própria evolução. As ideias desses homens e mulheres é o que se denomina de arqueomarxismo.
Vê-se como é insuficiente a recorrente exigência do retorno a Marx. Pois não há sentido em voltar a ele mais uma vez sem levar em conta as conquistas intelectuais e políticas que tiveram lugar após sua morte. A roda não precisa ser reinventada. Grandes inovações teóricas foram aí promovidas sobre um número variado de objetos. Particularmente no âmbito da crítica da política e da economia política o arqueomarxismo fez contribuições decisivas. Vladimir Lenin, Leon Trotsky, Rosa Luxemburg, Nicolai Bukharin e Antonio Gramsci formularam ideias importantes nessas áreas do conhecimento. Mas também foram relevantes as inovações registradas no âmbito da filosofia, particularmente por Karl Korsh e György Lukács, e da estética e da historiografia, pela obra de Walter Benjamin. Essas inovações permanecem até agora um marco. Hoje se pode afirmar um conhecimento mais aprofundado da obra de Marx. Alguns contemporâneos contribuíram até mesmo de modo decisivo para o desenvolvimento de pontos importantes da teoria econômica, social e política do marxismo. Mas quantos continuarão a ser lidos dentro de cinquenta anos ou mais, como os arqueomarxistas têm sido?
Os autores que são comentados neste livro foram muitas vezes identificados com um “marxismo clássico”. Com a noção de arqueomarxismo pretendo também afastar-me de um conceito de “clássico” que não consegue se livrar de uma carga fortemente conservadora, nem do compromisso com a ordem e a tradição.2 O compromisso dos autores comentados neste livro é, entretanto, outro: é um compromisso com a revolução social. Quando Lenin em Que fazer? afirmou que sem teoria revolucionária não existiria movimento revolucionário não estava se referindo exclusivamente a uma teoria para a revolução. Era o suficientemente cônscio do caráter inovador de seu empreendimento para não reconhecer o conteúdo transgressor de sua teoria.
A força do pensamento arqueomarxista está justamente em seu caráter transgressor. Lenin desafiou os pais do marxismo russo com sua teoria do partido; Trotsky estarreceu seus contemporâneos quando afirmou que era possível dar saltos no tempo histórico; Gramsci horrorizou a todos com sua batalha contra o economicismo; Benjamin espantou seus amigos quando decidiu explodir o continuum do tempo. O compromisso com a revolução implicava que suas próprias ideias eram revolucionárias e subversoras de uma ordem teórica. Elas era anticlássicas. Toda tentativa de elevar esse pensamento à condição de clássico correspondeu a uma operação com vistas de retirar-lhes todo caráter de transgressão.
Quantas vezes, sisudos e bem comportados acadêmicos não anunciaram que Marx era um clássico, assim como Hegel e Nietzsche, Weber e Durkheim, Adam Smith e David Ricardo. Ao lado de tal ilustre companhia o barbudo de Trier poderia frequentar as aulas de filosofia, sociologia e economia das universidades como uma relíquia do passado, um exemplo de como se pensava antigamente. De fato, nas histórias canônicas dessas disciplinas lá está um bem comportado Marx, imobilizado ao lado de outros tantos, sem poder agitar os braços ao falar como soia fazer, sem poder pensar como de seu feitio, sem provocar como costumava. E quantas vezes o pensamento marxista não teve o mesmo destino, quantas vezes não foi citado para ser enquadrado e imobilizado ao lado de outros imortais do passado.
O que caracteriza o arqueomarxismo, entretanto, não é sua imortalidade, sua antiguidade ou o fato de ser ultrapassado e sim, justamente, o fato deste não pertencer exclusivamente ao pretérito, de não ter sido superado, de ter muito a nos dizer, de tratar de modo inovador e instigante problemas que são ainda os problemas do mundo contemporâneo. O lugar de uma relíquia é no passado ou em um presente artificialmente construído com vistas a simular o pretérito. O lugar do arqueomarxismo é no presente. Ele só faz sentido na medida em que puder continuamente provocar.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Selected writings. Cambridge, MA: Belknap, 2005, 4v.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected works. Nova York: International Publisher, 1976ss. (Citado como MECW).
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