Pular para o conteúdo
TEORIA

Do outro lado do Canal da Mancha: 1968 na Inglaterra

Beto della Santa

“É impossível ser jovem em uma terra morta.” (Dennis Potter)

“Dos rios se os diz violentos / mas silenciam sobre as violentas margens que os oprimem.” (Bertolt Brecht)

“Da História já se disse que flui como a água dos rios. Como as margens mudam de lugar, nunca se sabe bem ao certo aonde vão. Nem sempre os rios desembocam nos mares. (…) Assim são, também, os rios da História. São revoltos, cheios de curvas imprevisíveis, com quedas d’água vertiginosas e rápidas correntezas às quais sucedem a calmaria das águas paradas: que, entretanto, também se movem, lenta mas irreversivelmente. Às vezes, transbordam para os lados. Não são, portanto, simples os movimentos dessas águas. O vento explica a forma das ondas. É, no entanto, a força gravitacional da Lua – uma pressão incomparavelmente mais poderosa, porém oculta – o que define o movimento das marés.” (Valério Arcary)

Há tempos – lapsos memoráveis – que, em poucas semanas, põem em questão a séculos inteiros. São momentos históricos privilegiados de encontro entre a exasperante lentidão, estruturante e secular – a continuidade –, e uma ocasião aguda de aceleração conjuntural, ou seja, a ruptura. Como nos ensina aquela Paris e o Maio de 1968, o tempo histórico pode ser acelerado, fragmentado e convulsionado, tanto mais quando se combinam a erupção de uma práxis – política e social – de autodeterminação operária, rebelião estudantil e combate político, enfim, a toda forma histórica de opressão social.

Consoante à súbita cadência imposta pela gênese mesma de um novo sujeito coletivo, esta explosiva primavera social rompia a lógica de formações históricas forjadas sob a permanência das mais modernas casamatas desde a Europa do Capital. Uma impetuosa onda de crise revolucionária varre como rastilho de pólvora o Velho Continente de Paris a Praga, de Berlim a Turim assombrando, tal qual um espectro inarrestável, às classes proprietárias. Mas, face à dimensão épica da greve geral francesa e da revolta antistalinista tcheca, por que figuraria a peculiaridade dos ingleses como digna de memória?

Primeiro, vejamos mais perto. Na bela metáfora que nos serve de epígrafe, Valério Arcary coloca – em chave dialética – a discordância temporal entre as longas durações e os tempos curtos, na perspectiva de um historiador marxista. Compara-se o nível mais abstrato de análise à força caudal de gravitação que a Lua exerce sobre a leva da maré enquanto o segundo, mais concreto, corresponde, na imagem adotada, ao fluxo do vento atuando sob a superfície das ondas: As esquinas perigosas da História. A maré – e as ondas – verteria água nas docas e cais de uma velha ilha?

Se, por um lado, a imponência do 1968 italiano ou alemão em muito supera seu equivalente cronológico inglês, por outro, bem sabemos que a concepção marxista da História não admite cárcere positivista em tão-estreitas chancelas espaciais e/ou temporais. O percurso acima parte da lenta temporalidade da estrutura social de classes – a Ordem do Capital tal qual ela se apresenta, independentemente de nossas vontades – até o ritmo frenético das barricadas do Quartier Latin, no qual ganha relevo a relação política de forças e, sobretudo, a práxis revolucionária. Uma verdadeira onda internacional de insurreições populares teve lugar nos pontos nevrálgicos da acumulação de capital na vaga revolucionária de 1968-1976 a qual, apesar de ter naquela Paris seu epicentro insurrecional, em muito estendia-se para além de ambas as margens do Rio Sena. O operariado italiano lançaria uma escalada grevista com força inédita em 1969; eclodiria, em 1974, uma vibrante Revolução dos Cravos e, desde o ensaio geral de 1972, era a vez da classe operária inglesa pôr em marcha sua mais bem-sucedida ofensiva industrial. A maré cheia – que possibilitara prova de fogo à tendência de síntese entre teoria marxista e política operária no centro nervoso do mundo do capital – aportaria aí ao outro lado do Canal da Mancha.

A um só tempo a supremacia militar de Washington revelava historicamente sua vulnerabilidade, frente à Ofensiva Tet no Vietnã, e a burocracia estatal de Moscou punha a nu suas contradições, em meio à invasão da Tchecoslováquia. Os revoltos mares da História foram então atravessadoscomo uma quilha corta as ondas, quando a grande voga de revolta estudantil em 1968 anunciou a entrada em cena de massivos batalhões sociais operários e populares na Europa Ocidental, de forma histórica antes vista tão-só desde os célebres Conselhos Spartakistas e o Bienio Rosso do início do século XX.

Contudo, não se pode dizer acuradamente que tais eventos tenham surgido tal raio em céu azul. Um ano antes do movimento parisiense, eclodira a longa ocupação universitária na tradicional London School of Economics (LSE) [1] e uma vasta e combativa manifestação contra a Guerra do Vietnã. A modernização capitalista operada pelo governo labourista – o qual, diga-se, apoiou a guerra e desferiu duro golpe à classe operária – exigiu maior subordinação do trabalho intelectual, de modo a massificar um até então altamente elitista sistema educacional britânico. Em meio a uma extensão em tudo precarizada, maciços contingentes de estudantes universitários – em detrimento da cultura acadêmica que reinava nos campi – foram levados, muitos deles advindos de origem social subalterna, a um acelerado processo de resistência e luta contra a autoridade despótica de um sistema disciplinar in loco parentis[2].

Em um ensaio publicado – ao verão de 1968 – no periódico da New Left Review (NLR),[3] o mais destacado expoente da chamada segunda geração da Nova Esquerda britânica, prenunciava três características centrais que a rebelião estudantil em voga possivelmente assumiria na Inglaterra: o desafio ao autoritarismo doméstico, a solidariedade ativa contra o imperialismo no exterior e a batalha contra a cultura reacionária inculcada nas faculdades e universidades. Tais elementos se combinaram ipso facto à escalada universitária.

Não só a autoridade acadêmica fora enfrentada pela luta estudantil como esta se vinculou ao movimento anti-Guerra do Vietnã, cujas manifestações assistiram, a sua vez, à dura repressão labourista.[4] Os textos publicados na revista a este respeito – sob a sintomal insígnia de Student Power – refletiam o fenômeno de radical politização de significativas frações da intelligentsia britânica. As demandas economicistas, por bolsas universitárias e controle estudantil, dariam lugar a um giro assaz voluntarista. Em um texto publicado sob pseudônimo, o colaborador mais próximo do secretário de redação da NLR exortava – inspirado no foquismo de Debray – ao avanço de “bases vermelhas” nos campi comparáveis, segundo o autor, aos soviets operários e populares na Rússia de 17 e aos territórios livres da China rural nos anos 30.[5] Enquanto Perry Anderson argumentava por uma política revolucionária operante no interior da cultura britânica, Robin Blackburn sugeria a reconversão das “‘bases vermelhas’ em alavancas da luta estudantil” e gérmen de “poder popular”.

Uma breve análise dos fatos mostra que o 1968 inglês não foi algo menor ou, sequer, acessório.[6] A Inglaterra inicia 1968 com cortes maciços do governo labourista de Harold Wilson – já em seu segundo mandato – na previsão orçamentária para o ano; há o subseqüente sentaço [7] de 250 estudantes daAston University. Mais de 3 mil estudantes de Liverpool, Leeds, Bristol, Keele e Manchester cercam a Prefeitura de Sheffield coreando “Fora Wilson!”, por causa do Vietnã. Milhares marcham em Londres contra as leis anti-imigração; a Leicester University é ocupada. O 68 inglês assiste à eclosão de uma greve das maquinistas tecelãs da Ford – a qual inaugura o movimento de trabalhadoras por salários iguais – e à primeira marcha de enfermeiras, enquanto a Irlanda do Norte vê nascer o movimento de massas por direitos civis. Dois importantes intelectuais críticos – tal qual Ralph Schoenman e Tariq Ali – são deportados, ou quase. E o mais estava por vir.

A longa ocupação da LSE em 1967 – em protesto à nomeação, como diretor, de um ativo apoiador do regime racista na Rodésia (Zimbábue) – marca os primórdios das mobilizações estudantis na Grã-Bretanha seguindo-se daí uma série de ações diretas nas faculdades em 1968. Outro indício de radicalização política, entre a esquerda marxista, foi a publicação – no mesmo ano – do May Day Manifesto por personalidades tais como Raymond Williams, Stuart Hall e Edward Thompson. Apesar de seus limites e vacilações o manifesto refletia uma genuína aversão às políticas levadas a cabo pelo Governo Wilson, um breviário das ilusões labouristas e, quiçá o mais importante, expressava socialmente a formação – no plano das idéias – de uma milieu socialista. A Campanha de Solidariedade ao Vietnã (VSC) – encabeçada centralmente por organizações que reivindicavam o trotskismo, como o International Marxist Group (IMG), ligado ao Secretariado Unificado, e os International Socialists (IS), dirigidos por Tony Cliff, em relocalização destas face a uma plataforma política –, era então a principal forma organizativa assumida pela juventude antiguerra. Por detrás do aparente crescimento econômico e da ‘prosperidade material’ acumulavam-se contradições sociais não-resolvidas – além de novos conflitos, decorrentes da industrialização e da urbanização –, pondo insuportável pressão sobre as já velhas e arcaicas instituições britânicas.[8]

O movimento estudantil – além de uma jovem intelectualidade socialista –prepararia o terreno para uma inaudita ofensiva industrial da classe operária inglesa. Em 1972 o país assiste ao Piquete de Saltley, onde mineiros e engenheiros unem-se em ações de massas. A ameaça de greve geral, neste ano, força a libertação de estivadores presos sob as leis anti-sindicais do governo conservador. Em 1974 outra greve da mineração derruba o governo tory – à primeira vez que, na história da Inglaterra, uma ação grevista traz abaixo um governo eleito através de sufrágio universal – realocando o partido labourista ao poder no país. À guisa de conclusão, as derrotas da vaga 1968-1976 apontam, à revelia de muitos, o elemental pressuposto marxista de que o proletariado industrial representa a classe revolucionária por excelência da época imperialista. A situação revolucionária aberta no Velho Mundo – “detonada” pelos movimentos estudantis – assumia contornos clássicos em várias formações sociais particulares, com pleno sentido soviético e voltando-se, paradoxalmente, contra as mesmas instituições que reclamavam sua herança formal.

Sobre a Europa de 1968 pode-se afirmar, guardadas as diferenças, que a teoria da revolução permanente – consagrada por Trotsky no início do séc. XX – saltou dos livros para tomar forma histórica e concreta em ocupações, greves e uma autêntica renovação do modo de vida (“Byt”): a ponte entre as reivindicações democráticas e o objetivo socialista, a não-constrição do processo revolucionário aos limites nacionais até, por fim, uma contínua transformação de todas as relações sociais.[9]

Notas:

[1] “Até este ano a Grã-Bretanha, quiçá exclusivamente, careceu de qualquer movimento estudantil significativo. Durante os últimos 15 anos, grupos de estudantes britânicos desempenharam um papel ativo, senão predominante, na agitação sobre o Canal de Suez, campanhas anti-racistas e colonialistas e, mais auspiciosamente, na Campanha pelo Desarmamento Nuclear (CND). Mas nenhuma refletiu nada que pudesse ser nomeado uma específica consciência estudantil.” (Gareth Stedman Jones et al. Student Power: What is to be Done? New Left Review, n. 43, p. 3-9, 1967, grifos no original).

[2] A vida privada dos estudantes era devassada pelos schoolars britânicos em comitês disciplinares que agiam “em lugar dos pais” – tal como atesta a terminologia jurídica latina – estendendo então a tirania familiar para o interior do campus.

[3] Perry Anderson. Componentes of National Culture. New Left Review, n. 50, p. 3-57, 1968. Após os eventos de 68 o conselho editorial se lançou – de forma inédita – ao movimento estudantil tomando uma série de iniciativas, políticas e editoriais.

[4] “O espírito de rebelião estudantil – quase sempre – não é pontualmente acadêmico, nem estreitamente (…) político, mas torna-se uma contestação global dos valores pelos quais se afirma uma ordem estabelecida. Poderíamos esquematizar em três as vocações do movimento estudantil: (i) uma corporativa e acadêmica (defesa de melhores condições de ensino e de vida para os estudantes tais como moradia, alimentação, transporte, prédios, instalações); (ii) uma segunda, de ordem política (defesa de liberdades públicas, contra ditaduras … decretos governamentais); e, ainda, (iii) uma terceira seria cultural ou de costumes (liberdades individuais, como as de opção sexual ou de modos de vida juvenis).” (Henrique Carneiro. Um novo ‘Maio de 68’ na USP?. Portal do PSTU, 2007, grifos nossos).

[5] James Wilcox (Robin Blackburn). Two Tatics. New Left Review, n. 53, p. 23-32, 1969. Segundo Wilcox (Blackburn) as universidades britânicas constituiriam – seguindo Lenin – ‘o elo mais fraco’ da sociedade e da cultura do país. Sob a pressuposição do ‘fetiche’ soviético e de voluntarismo ‘vermelho’ havia uma forte tendência, política e social, com viés substituicionista.

[6] In: Timeline. International Socialism, 2008.

7] O sentaço – o “sit-in” ou “sit-down” – é uma forma de ação direta que envolve um grupo de pessoas ocupando uma área sob protesto, geralmente com o objetivo de promover transformações sociais, políticas, econômicas e/ou culturais à ordem estabelecida. Os manifestantes sentam-se e mantêm-se dessa forma até que sejam atendidas suas reivindicações ou até que sejam retirados à força. A remoção à força – ou a utilização de violência em resposta a ações de desobediência civil não-violentas – geralmente atrai a simpatia da população, aumentando desse modo as chances de conquistar a reivindicação do protesto. A comoção causada chama a atenção ao protesto e, conseqüentemente, a suas demandas. Trata-se de uma ação direta derivada da greve-sentaço – ou “sitdown strike” – na qual os trabalhadores grevistas, os verdadeiros precursores do sentaço, ocupavam o lugar do trabalho e recusavam-se a sair, evitando assim a utilização de substitutos terceirizados ou pelegos fura-greves. Os sentaços foram amplamente utilizados pelo movimento por direitos civis no EUA e pelas rebeliões estudantis e operárias da vaga 1968-1974 na Europa.

[8] O jornal britânico The Times – expressando o temor das classes proprietárias inglesas – traz como capa da edição de 5 de setembro manchete afirmando que edifícios-chave de Londres seriam ocupados como sinal de uma revolução social.

[9] Leon Trotsky citado por Alvaro Bianchi. O primado da política: revolução permanente e transição. Outubro, São Paulo, v. 5, n. 5, p. 101-115, 2000.