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TEORIA

Uma história como precisamos: o marxismo como poesia

Virgínia Fontes

O livro de Eurelino Coelho é uma das mais bonitas e magistrais lições de história que já tive a oportunidade de ler. E o digo com a tranquilidade suave de quem já leu muitos livros de história, e de quem – com o passar dos anos – aprendeu muito com muitas teses e dissertações.

Comecemos do começo e sem cartas na manga. Fui a orientadora da tese da qual deriva o presente livro. Isso significa que tive a rara chance de partilhar de sua elaboração, de vivenciar longas tardes de debates que se prolongavam noite adentro, de vivenciar conversas acaloradas que incidiam diretamente sobre esta pesquisa ou em torno de leituras comuns, definidas no pequeno grupo de orientandos que se reunia regularmente para tentar avançar na compreensão desse nosso mundo atual – compreensão teórica e compreensão histórica. Para que tudo fique bem claro, é preciso que os leitores saibam que em relações saudáveis de orientação, a tese é de seu autor. Se há algum mérito na orientação, ela reside sobretudo em não atrapalhar o difícil trabalho de pesquisa, de maturação e de elaboração de uma tese. Temos uma espécie de decálogo no nosso grupo, no qual uma das primeiras definições é: “a tese é de quem a produz”. Minha contribuição é muito pequena para o trabalho que os leitores têm em mãos. Mas o prazer que vivi foi enorme e sem prazo de validade: perdurará sempre!

A atividade de orientação é muito peculiar e não se presta a receituário ou a definições aligeiradas, pois depende muito do perfil singular de cada orientando, das circunstâncias conjunturais nas quais são produzidas as pesquisas e de muitos outros fatores imponderáveis. Orientadores podem ajudar, podem atrapalhar, podem nada fazer, apenas cumprindo os atos administrativos sob seu controle para que os prazos a cada dia mais reduzidos sejam obedecidos, podem arvorar-se a coautores dos trabalhos ou, ainda, exigir obediência a seus próprios textos, a serem cuidadosamente transcritos nas teses defendidas, aumentando o número de citações nas econometrias acadêmicas de gosto duvidoso.

Por enorme sorte, aprendi as lições para o ‘ser orientadora’ com um maravilhoso time de pós-graduandos, do qual Eurelino Coelho foi integrante fundamental. Éramos um pequeno coletivo com grande autonomia intelectual e enorme curiosidade teórica, garra historiográfica e fome de pesquisa empírica. Formamos um grupo de trabalho coletivo e orientação (GTO) durante muitos anos, pesquisando e lendo juntos, debatendo textos a partir de plano de trabalho elaborado em conjunto. O GTO sobrevive, com sua composição renovada, abrigando jovens pós-graduandos. Os precursores seguem integrando o GTO, agora um coletivo ampliado e com plena maturidade intelectual. A riqueza das discussões que tivemos ali me ajudou a perseverar em características pessoais em triste desuso: intenso questionamento teórico e abertura de debates não direcionados pragmática ou utilitariamente para cada pesquisa, permitindo pensarmos em conjunto, mesmo – e  principalmente – quando não tínhamos resposta para a amplíssima escala de nossas interrogações. Líamos e debatíamos cuidadosamente nossos autores centrais de referência, mas mantivemos sempre aberta a porta para o ingresso de outros textos, outros referenciais, outras questões, de maneira a não construirmos mais uma pequena seita voltada para um número definido de textos canônicos.

Pode parecer surpreendente para alguns, mas essa exigência, ao lado da amplitude de temas e questões nos consolidou na trilha de um marxismo rigoroso e fluente porque capaz de enfrentar – e aprender com – os mais fortes adversários, apto a divergir de maneira camarada dos companheiros, de aprender com o que não havíamos pensado antes. Um dos trabalhos que melhor traduz o conjunto desse processo é o livro que os leitores têm nas mãos.

De maneira muito própria e singular, este é um texto poético. A fluidez e a leveza da redação são parte integrante dessa poesia. Essa leitura é saborosa. Para além do deleite e da fruição estética porém, o desenrolar do argumento construído por Eurelino Coelho nos lembra aquela exigência clássica da poesia: não é suficiente descrever, é preciso retomar os tropeços, compreender e sentir os caminhos e descaminhos; não basta uma bela e densa narrativa, é indispensável que o fio da inteligibilidade atravesse o conjunto; é preciso unir o pensar ao sentir. Coelho traz, no próprio texto, a evidência de que a inteligibilidade não se satisfaz de dados empíricos, ainda que essenciais. Ele  recupera os dados para encontrar, subjacentes, as  formas da ação humana, atravessadas de inflexões e banhadas de subjetividade. Não pensem que vão encontrar essa subjetividade de botequim que está na moda, feita de performances psicologizantes regadas a estimulantes e que demandam tranquilizantes para o esquecimento imediato.

Aqui vamos encontrar seres singulares porém sempre sociais, seres que realizam escolhas e opções, porém o fazem no contexto de determinantes sociais nos quais se movem. Eles são autores e sujeitos não apenas de sua história de vida singular, mas da história tout court. Porém o resultado não é teleológico, pois as alternativas selecionadas envolvem novas lutas e resultados imprecisos. O abandono por muitos dos personagens aqui abordados dessa difícil compreensão de uma história não teleológica constituída por embates de classe, os levou a supor que a ocupação de cargos de direção os converteria em condutores efetivos da história. Deslizaram para a integração no leito redesenhado que as formas de dominação de classe então engendravam, agora em novas condições. Eles contribuiriam ativamente para a elaboração e aceitação desses novos formatos nos quais a dominação se aprofundava. Sua própria ação teria teor de anestesiante adesão aos novos planos burgueses. Não tirarei o charme da leitura, adiantando a riqueza da tese contida no livro.

O trabalho conceitual e historiográfico deste livro constitui uma verdadeira lição de história, no sentido mais pleno. O grande desafio dos historiadores de tradição crítica – e, em especial, no campo do marxismo – é assegurar um firme aprendizado dos conceitos, mantendo-se capaz de ir além de sua expressão imediata. Esse não é um problema para outras linhagens teóricas pois, para aqueles ainda aferrados aos fatos – e eles perduram, embora sob denominações que procuram ocultar seu esteio positivista – os conceitos operam como ferramentas brutas, a serem imediatamente aplicados a uma realidade considerada como evidente. Muitos outros aderiram às formulações que abandonam qualquer tentativa de explicação, contentando-se com formidáveis especulações, mesmo se recobertas de linguagens literatizantes; para estes, os conceitos (quando os usam) são como um deleite estético em si, sem referência efetiva ao mundo real.

Eurelino Coelho conseguiu superar esse desafio, o maior dos historiadores.  Este livro tem o condão de revivificar os conceitos, rigorosamente trabalhados porém sem nenhuma rigidez. Consegue torná-los ágeis e densos, iluminando a compreensão de fenômenos e situações que, apesar de alguns serem muito mencionados, raramente os encontramos expressos através de um sério, rigoroso e poético exame. Os conceitos estão aqui impregnados de historicidade. É um livo de história, e um livro histórico, em suma.

O tema sobre o qual este livro se debruça é espinhoso. Ele tem um escopo preciso, no qual explicações são claramente formuladas. Mas integra também um objetivo muito mais amplo, de uma necessária análise e crítica historiográfica – com todo o peso do termo – em torno tanto do papel do Partido dos Trabalhadores ou do governo Lula, como da própria história do capitalismo no Brasil e das novas formas de sociabilidade que se foram gestando a partir da implantação de um regime político eleitoral e representativo.

É desse desafio – mais amplo que o livro mas que ele incorpora e permite nele avançar – que vamos tratar daqui para a frente. A história recente do Brasil parece ter realizado percurso que ninguém profetizou. Nossa historiografia jamais foi homogênea, mas podemos falar de uma clivagem forte entre uma tradição crítica, engajada e denunciadora, e uma tradição institucional, mais acadêmica e universitária, ocupada sobretudo com um formato descritivo e semblante anódino. Como diz o ditado popular, quem vê cara não vê coração…

Nessa clivagem, grande parcela da tradição crítica – bastante heterogênea – enfatizava a impossibilidade da “modernização” (ou da plena vigência do capitalismo) pelo excessivo peso do atraso histórico, que seguiria se acumulando. A herança escravista, com seu cortejo de racismos e discriminações sociais; o colonialismo introjetado e convertido em subalternidade dos setores dominantes e de novos emergentes; a truculência das formas de dominação, que se superpõem sem um processo civilizatório e “verdadeiramente” democrático; a imutável concentração da riqueza que, embora se desloque de mãos, permanece sempre restrita a um punhado de grandes proprietários; um Estado subserviente aos poderosos (ou, para aqueles de viés liberal, como Faoro e outros, um Estado ‘todo-poderoso’, que fabricaria os poderosos…). Para essa tradição, uma efetiva modernização dependeria de seguidas rupturas com marcas tão fortes e dolorosas de um passado que teimaria em perdurar muito depois de seu próprio tempo.

A outra linhagem conta com muito mais títulos publicados. Variam da cuidadosa aplicação mecânica realizada por estudantes das interpretações e categorias na moda formuladas por seus professores (com enorme variedade de matizes e nuances), até formulações que se pretendem originais mas que raramente vão além da defesa pontual de algum e único tema social, historiográfico ou político. Entre os extremos, passeia uma historiografia cujo perfil mais forte é o da debilidade teórica, que flerta com o conservadorismo (de qualquer matiz). Alguns enveredam pela “inovação”, lida como tradução interna e uso abusivo até o absoluto desgaste de alguma novidade – de preferência estrangeira – capaz de assegurar carreiras. Dada a enormidade do gasto de papel e tinta nesses trabalhos, não vale a pena entrar em maiores minúcias. Na atualidade, de forma bastante genérica, está na moda o tema da democracia e seu elogio, contanto que as classes sociais – sobretudo as renitentes e subalternas – prossigam sua vidinha comum de dominadas, caso em que serão alvo inclusive de filantrópicas teses, recolhendo a contribuição popular para o gáudio intelectual. Para estabelecer um padrão bastante amplo, trata-se de uma historiografia tradicional, que se divide entre os abertamente conservadores (para os quais as contradições do capitalismo abrem excessivo espaço para os incultos) e os conservadores discretos, para os quais a história se expressa como trajetória linear para algum progresso, contanto que não ocorram maiores conflitos.

Ora, parece que chegamos na atualidade a algo bastante diferente daquilo que esperavam tanto os críticos como os conformistas variados. O que emergiu como formidável contestação contra a ordem tornou-se, enfim, a realização da ordem burguesa. Para Francisco de Oliveira, autor de importantíssima obra e que apontou brilhante e coerentemente os equívocos da razão dualista, o século XXI brasileiro se inicia sob o signo de uma condição peculiar,  com o país encalacrado num beco sem saída, como ornitorrincos tardios. A evolução histórica aqui teria chegado a um impasse.

De fato, a sociedade brasileira passou por profundas transformações nos últimos 40 anos. Modificações de tal porte e de tais dimensões geram grande perplexidade: como compreender as novas condições econômicas, sociais, ideológicas, políticas, culturais? Como relacionar nossas atuais expectativas àquelas de nossos pensadores clássicos? Para alguns, ficaram para trás as antigas reivindicações de ‘transformações sociais’, pois as consideram realizadas, sem ter sido sequer necessário alterar as estruturas profundas da sociedade brasileira.

A conquista da democracia representativa eleitoral – com o indispensável e moderno apoio do marketing – representaria o caminho para a cidadania e a civilidade, e a presença de personagens cujo passado os liga às mais importantes manifestações da classe trabalhadora, torna-se doravante o aval para a expansão econômica que alça o país ao patamar de BRIC (sigla que reune Brasil, Rússia, Índia e China, como os novos capitalistas emergentes). Não fariam mais sentido as grandes interrogações sobre o futuro pois navegamos em mares já esquadrinhados e balizados, bastando apenas manter o curso e a rota.

As eleições traduziriam de maneira imediata a ‘vontade popular’ e, por essa razão, trata-se agora de – acima de tudo – conservar a ordem. A garantia de um futuro pleno dependeria apenas de manter o curso e a rota, assegurando a expansão máxima aos empreendedorismos diversos que atravessariam a alma e a cultura brasileira, mas que não tiveram até então o benfazejo apoio público, inclusive para alçar-se ao patamar de empresas ‘global players’ na competitiva ordem do capital em âmbito transnacional. Bizarra trajetória para o ponto de chegada, que reencontra… a defesa da ordem, termo símbolo da tradição truculenta e desigual da vida social brasileira.

Não se espante o leitor com o que é corriqueiro: cruzam-se aqui intenções e projetos históricos formulados por tendências muito diversas, como os que atravessaram, há algumas décadas, os desenvolvimentistas cepalinos, os entreguistas, os comunistas e os socialistas. A resultante é muito peculiar e este livro nos ajuda a compreender o âmago dessa transformação para os anos mais recentes.

Nos dias atuais, para além das tinturas precedentes, incluem-se socialistas auto-proclamados que defendem o ‘progresso’ econômico do grande capital, neokeynesianos que defendem o capitalismo contra os ‘maus’ capitalistas, ex-neoliberais, neoliberais neodesenvolvimentistas, democratas marqueteiros sinceros, trânsfugas da ditadura, etc. O desenvolvimento econômico, fórmula difusa e requentada, continua a ser acenado como a mais efetiva condição para o bem estar da população e, coerente com essa alegação, a prioridade é assegurar competitividade e eficiência às empresas e à gestão do capital, de maneira a acelerar a concentração de capitais que, em seguida, deverá se espraiar para a população na forma do consumo aumentado de todos os tipos de mercadorias, do alimento à saúde, da educação às condições mais diretas da sobrevivência. Ingressam no circuito novos determinantes, como a catástrofe ambiental e a grande crise do capital nos Estados Unidos e Europa. Há uma tendência, entretanto, a minorá-las: organiza-se um capitalismo verde no qual a devastação das florestas se converte em títulos negociáveis enquanto a crise é apresentada como um nicho para novas oportunidades.

Para alguns outros, com mirada crítica, oscilamos entre o regressivo e o neonovismo. Críticos da pretensa transformação social proclamada pelos ideólogos anteriores, apontam que o percurso atual nos faz retroceder no processo histórico. Estaríamos imersos num neodesenvolvimentismo a cada dia mais dependente e subalterno ao imperialismo estunidense. De um neo a outro, reencontraríamos o passado, com a reprimarização da economia e uma recolonização profunda, a cada dia mais submetidos aos ditames da potência imperialista. Reencontramos nesse grupo a vivacidade e a inquietude que animou muitos de nossos antecessores: será possível o desenvolvimento do capitalismo nos países da periferia? O desenvolvimento das forças produtivas não estará definitivamente bloqueado pelos poderes imperialistas e pela fragilidade e incompetência de nossas próprias burguesias internas, míopes e imediatistas? Temos hoje evidências de que as respostas anteriores não eram suficientes. A suposição do retrocesso histórico, ainda que relevante, não esclarece as contradições gestadas nos anos recentes.

Certamente, não é fácil enfrentar um conjunto de problemas tão extenso e contraditório.  Vivemos um período em que a democracia parece ter sido encolhida para o único âmbito eleitoral, jugulada pelo peso dos grandes financiadores de campanha. O aumento da presença do capital internacional no país  se encontra com a afirmação de empresas transnacionais de origem brasileira, apoiadas por bancos públicos, como o BNDES. Essas novas transnacionais preservam suas características de saque e de exploração truculenta do trabalho no âmbito nacional, mas saltam as fronteiras para saquear e explorar outros espaços e povos. No século XXI aumentou o consumo dos setores populares – embalado a bolsas governamentais, a precarização de vínculos trabalhistas, a políticas focais e pela extensão do crédito, sem que isso tenha reduzido a desigualdade social.   O número de milionários brasileiros cresce, e a revista Veja se encarrega de propagandeá-lo.

Como compreender que, saindo diretamente das fileiras das mais radicais organizações anticapitalistas, importantes setores sociais tenham saltado a barreira de classes e, carregando como um trunfo sua trajetória de sindicalistas, se tornem gestores de gigantescos fundos de pensão e, por extensão, integrantes das assembléias de acionistas das maiores empresas atuando no mercado brasileiro e internacional? Nenhum trabalho, pesquisa ou livro singular poderá resolver todas essas questões. Essa é uma tarefa coletiva, trabalho paciente e minucioso de muitos pesquisadores comprometidos em explicar o mundo em que vivemos, nos conferindo também a possibilidade de compreendê-lo.

Nessa tarefa, não basta quedarmos sentados no colo de nossos mestres, não é suficiente sabermos de cor os textos – magníficos – de nossos clássicos. Precisaremos incorporar árdua e pacientemente a sua contribuição, compreender os contextos precisos nos quais foram elaborados, integrar a relação entre as conjunturas que viveram e as questões que elucidaram.  Precisamos escalar os ombros de nossos clássicos, nos apropriarmos deles para produzirmos –  com eles mas além deles – a explicação de nosso próprio tempo. Se não reconstruirmos para o presente o desafio que eles se impuseram, não estaremos à altura do legado que nos deixaram.

Este é o trabalho formidável a que nos impele este livro. Não espere o leitor que ele resolva todas as interrogações que tamanhas transformações suscitam. Em compensação, este livro constitui o mais sólido ponto de partida para a elaboração de uma historiografia hoje urgente e necessária:  análises históricas densas, capazes de integrar plenamente a reflexão teórica à massas de dados que dispomos. A pesquisa de Eurelino Coelho inaugura uma fértil direção interpretativa: sólida, coerente, crítica e refinada. Antes mesmo de ser publicado, já se converteu em referência de novas pesquisas e de grupos de trabalho extremamente criativos. Estamos aqui muito longe das tristemente famosas ‘aplicações’ da teoria à prática: aqui, a teoria é uma verdadeira prática, é uma condição integrante da análise e da reflexão e, por essa razão, não se cristaliza num discurso seco e impositivo. Ela é parte integrante da análise histórica, cuja compreensão se desvela à medida em que é fundamente interrogada, minuciosamente averiguada, coerentemente interpretada.

A reflexão teórica ganha aqui relevo e densidade. Muito mais do que meros exercícios escolares, explicitar a teoria permite dividir com o leitor as condições prévias para a formulação de perguntas e para a invenção do caminho analítico; opera como o estabelecimento de um solo comum para que o longo vôo do conhecimento possa ser compartilhado, estimulante, proveitoso e agradável para todos.

Rio de Janeiro, fevereiro de 2012.