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TEORIA

Tierra en trance

Ruy Braga

Desembarquei em Buenos Aires dois dias depois do “8N”, super-“panelaço” que agregou, em torno do Obelisco da 9 de Julio, milhares de opositores ao governo da presidente Cristina Kirchner. Convocado pela internet, a manifestação expressou o repúdio de diversas forças sociais, em especial, a oposição de direita, contrárias à proposta de emenda constitucional que aprovaria a “re-reeleição” da presidente. Apenas para lembrar, Cristina Kirchner assumiu o governo argentino pela primeira vez em 2007 e foi reeleita em outubro do ano passado, sem direito a um terceiro mandato.

A imprensa ainda repercutia o sucesso do 8N e debatia a insatisfação da “classe média” com um governo incapaz de controlar a inflação, quando setores sindicais opositores à presidência – a Confederação Geral do Trabalho “Azopardo”, liderada pelo histórico Hugo Moyano, a Confederação Geral do Trabalho “Azul y Blanca”, liderada por Luis Barrionuevo, a Central dos Trabalhadores da Argentina, dirigida por Pablo Micheli, e a Corrente Classista e Combativa, liderada por Juan Carlos Alderete – anunciaram a primeira paralização nacional contra o “kirchnerismo”. Ainda estava na Argentina dando um curso na Universidade Nacional de Cuyo, em Mendoza, quando, no dia 20 de novembro, o país todo foi sacudido por piquetes, bloqueios de estradas, paralisação de todo o sistema de transporte aéreo – exceto os voos internacionais –, abastecimento terrestre, metrô, ônibus, além da paralisação de vários serviços públicos.

Por um lado, o governo apressou-se em minimizar o impacto causado pelo sucesso do 8N, alegando que o movimento não seria suficientemente “orgânico” ao ponto de se transformar em uma força política ameaçadora. Malgrado a rejeição à “re-reeleição”, simplesmente não haveria uma agenda capaz de unificar a oposição de direita. Por outro lado, em relação à greve geral, a presidente declarou: “Eu não corro de nada, muito menos de ameaças”. O recado era claro: mostrar disposição de enfrentar os setores sindicais opositores. Os mesmos que, até há pouco, apoiaram abertamente Cristina e seu falecido marido, Néstor Kirchner.

Filho de um carteiro e vindo da distante e despovoada província patagônica de Santa Cruz, Néstor Kirchner foi o improvável candidato justicialista vencedor, com pouco mais de 20% dos votos, de uma eleição marcada pela maior crise econômica da história do país. Iniciado em março de 2003, seu mandato estimulou uma política de recuperação econômica acelerada apoiada sobre setores exportadores e sobre a moderação salarial. Ao mesmo tempo, Kirchner imprimiu um tom de centro-esquerda ao seu governo: criticou os crimes da ditadura, enfrentou diferentes setores burgueses não exportadores, controlou o movimento operário por meio de aumentos nos repasses ao assistencialismo sindical, etc. A “hegemonia kirchnerista” foi construída sobre a velha política nacionalista, somada ao crescimento econômico proporcionado, sobretudo, pelo desempenho de setores exportadores durante um ciclo de elevação dos preços das commodities.

Em outubro de 2007, a eleição de Cristina Kirchner sacramentou a reprodução desse modelo, assim como, fortaleceu o equilíbrio de forças entre setores burgueses exportadores e burocracia sindical. Em seu primeiro mandato, a presidente seguiu a agenda apresentada por seu marido: nacionalizou e reestatizou empresas, enfrentou setores midiáticos, aumentou gastos sociais, avançou na política de direitos humanos, etc. No entanto, com o advento da crise econômica mundial de 2008, as contradições do modelo desenvolvimentista-exportador radicalizaram-se. A inflação retornou com força, sacrificando ainda mais trabalhadores já superexplorados e cujas condições de subsistência passaram a depender cada dia mais de preços controlados ou subsidiados pelo governo.

No segundo mandato, quando os empresários começaram a exigir um grande ajuste desses preços, a hegemonia kirchnerista começou a claudicar. Vieram denúncias contra o “aparelhismo” e interferência da juventude peronista nas empresas nacionalizadas – a companhia Aerolíneas Argentinas, à frente –, além das rupturas de setores do movimento sindical, como a parte da CGT ligada a Moyano, além da fração da CTA, liderada por Micheli. No momento em que a inflação voltou a bater novos recordes – na realidade, o índice inflacionário argentino é o quarto mais alto do mundo – e a taxa de desemprego aumentou nitidamente, os setores urbanos pequeno-burgueses, apoiados pela mídia e por forças sociais conservadoras, além de uma parte da burocracia sindical, flanqueada por pequenos agrupamentos políticos de esquerda, decidiram aumentar a pressão sobre o governo.

Aqui, vale uma curta reflexão: apesar das abissais diferenças históricas entre Brasil e Argentina – notáveis, diga-se de passagem, em se tratando de países territorialmente tão próximos –, teimamos em compartilhar ciclos sociais muito sincronizados: durante a redemocratização dos 1980, Raúl Alfonsín e José Sarney tentaram semear o liberal-desenvolvimentismo, mas colheram apenas a hiperinflação. Ambos foram sucedidos por Carlos Menem e Fernando Collor, depois Fernando Henrique Cardoso, em uma década de 1990 marcada por políticas de ajuste neoliberais, pelo controle inflacionário, pelo ciclo das privatizações e pelo aumento do desemprego. Crises econômicas e políticas acumularam-se no início de 2000. Com poucos meses de diferença, vieram Néstor Kirchner e Lula da Silva. Seguiu-se um ciclo de governos orientados pela retomada econômica e pelo aumento dos gastos sociais, acompanhado pelo indefectível “transformismo” sindical.

O curioso disso tudo é que a realidade de nossos vizinhos, apesar do paralelismo, foi marcada por uma maior intensidade das cores: a inflação dos 1980 foi mais intensa na Argentina do que no Brasil, a experiência neoliberal dos 1990 foi muito mais longe lá do que aqui, a retomada platina dos 2000 foi mais aguda e com um nível igualmente superior de atritos entre o governo e parte da burguesia, rural e urbana… Mesmo se mirarmos mais atrás, a ditadura militar foi mais sanguinária lá do que aqui e o peronismo mais longevo e marcante do que o varguismo. Alguma relação com a atávica cordialidade brasileira, em contraste com o famoso “pecho caliente” ítalo-espanhol de nossos “hermanos”?

Penso que não. Ao fim e ao cabo, somos países capitalistas periféricos integrados no mesmo sistema-mundo. Temos nossas diferenças econômicas e culturais, mas também nossas semelhanças: temos territórios extensos, vivemos um bom período da economia agrário-exportadora, adotamos projetos de industrialização nacional e de substituição de importações mais ou menos na mesma época, atravessamos ciclos populistas autoritários e, então, democráticos, com uma década de diferença, etc. Em suma, estamos condenados pela proximidade a uma trajetória e a um destino histórico, mais ou menos, comuns.

De qualquer maneira, quando o governo Dilma Rousseff enreda-se na complexa trama de baixar juros, dividir royalties, modificar o modelo das concessões no setor elétrico e, ao mesmo tempo, endurecer nas negociações com os trabalhadores, como vem acontecendo há aproximadamente um ano, a lembrança do panelaço do 8N associada à greve geral nacional do último dia 20 de novembro, forçosamente vem à mente. Os governos de Cristina Kirchner e Dilma Rousseff serão capazes de superar os limites dos respectivos modelos de desenvolvimento, em especial, em relação às classes subalternas? Tenho sérias dúvidas… No entanto, a relativa sincronia de nossas temporalidades nacionais permite intuir que o futuro reserva turbulências para o governo brasileiro. Ainda que temperado por nossa tradicional cordialidade.