Pierre Broué (1926-2005), historiador mundialmente conhecido, nasceu em Privas no sul da França. Jovem entrou na resistência contra a ocupação nazista e aderiu ao Partido Comunista. Porém, divergiu do partido ao tentar organizar propaganda internacionalista entre os soldados alemães, sendo expulso por “trotskismo”. No final da II Guerra mundial integrou-se ao movimento trotskista francês, tornando-se membro ativo durante várias décadas. Simultaneamente, consolidou uma carreira acadêmica como professor do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble, como historiador destacado das revoluções do século XX. Suas obras mais conhecidas foram traduzidas para vários idiomas: Revolução e Guerra Civil na Espanha, (em co-autoria com Émile Térmime), O Partido Bolchevique, Revolução na Alemanha (1917–1923), História da Internacional Comunista, Os processos de Moscou, as biografias de Trotsky e Rakovsky, Stalin e a revolução: o caso espanhol e A revolução e a guerra da Espanha. Dedicou-se intensamente à criação e organização do Instituto Leon Trotsky e à publicação dos Cahiers Leon Trotsky, que publicaram inúmeros trabalhos sobre o movimento trotskista em diversos lugares do mundo.
Broué foi o primeiro historiador autorizado a entrar nos arquivos fechados de Trotsky em Havard, quando de sua abertura em 1980 – antes Isaac Deutscher (1907-1967) os tinha consultado com autorização especial. A partir de 1989 dedicou-se à direção da revista Le marxisme aujourd’hui. Com o colapso da União Soviética, Pierre Broué foi à busca dos arquivos recém-abertos, incluindo os da polícia secreta stalinista. Ele também se reuniu com membros das famílias de velhos bolcheviques assassinados, e alguns dos poucos e últimos que não foram exterminados. Além disso, colaborou com a organização russa Memorial, dedicada a defender a memória das vítimas de Stalin.
O livro Comunistas contra Stalin: masacre de una geracion (Málaga: Sepha, 2008), é produto das pesquisas de Broué nos arquivos abertos da ex-URSS. O resultado é a revelação de uma história zelosamente ocultada durante mais de meio século.
Nos anos vinte numerosos militantes comunistas se uniram à Oposição de Esquerda e a outras correntes anti-stalinistas na URSS. Foram chamados de oposicionistas ou trotskistas. Milhares deles seriam fuzilados em 1937 e 1938 nas prisões ou nos campos de Vorkuta e Kolyma. O seu extermínio foi o capítulo final de uma luta que duraria algo mais que quinze anos. Começando com a expulsão de militantes do Partido Comunista, seguindo com o exílio, as deportações, ao suicídio, as prisões, os isolamentos e os campos de trabalho. Assim, os defensores da democracia proletária tornaram-se as vítimas prioritárias da contrarrevolução burocrática.
De maneira objetiva e fundamentada, Broué relata a história da luta, da perseguição e do assassinato de milhares de revolucionários. Demonstrando não só que Stalin consolidou seu poder mediante o massacre de uma geração de militantes comunistas, que rebelou-se contra sua tirania, mas que existia uma alternativa ao domínio da burocracia. Noutras palavras, que a revolução russa e o bolchevismo não estavam predestinados a desaguar no “socialismo real” e suas mazelas. A batalha não estava decidida de antemão.
Mais do que um resgate de um processo histórico, que trouxe consequências trágicas para o movimento comunista internacional até os dias atuais. Broué vai além do simples relato dos fatos ocorridos, o que já seria um grande feito. Ele nos fala de indivíduos concretos, mulheres e homens, revolucionários acima de tudo, que lutaram até o fim pela emancipação social. O autor, assim, revela suas intenções:
“há anos que quero falar de milhares de mulheres e homens, de velhos e crianças, que morreram metralhados a dezenas. Quero mostrá-los vivos, pensando, amando, sofrendo. Dizer quem eram antes, durante e depois de seu calvário. Fazê-los reviver, na medida do possível” (p. 24).
Nessa perspectiva, entramos em contato com militantes de diversas gerações, nacionalidades e trajetórias individuais. Adolf Abramovich Joffe, um dos criadores da organização interbairros que se integrou ao Partido Bolchevique em 1917; Christian Georgievich Rakovsky, antigo chefe do governo vermelho da Ucrânia durante a guerra civil e primeiro chefe da administração política do exército vermelho; Vladimir A. Antonov Ovseenko, jovem oficial que se amotinou em 1905 com seus soldados e substituiu Rakovsky como chefe dos comissários políticos do exército vermelho; o doutor Iván Zalkind comissário do povo adjunto aos Assuntos Exteriores; Igor Poznansky, jovem estudante de matemática, que em 1917 apresentou-se voluntariamente para ser guarda-costas de Trotsky; Varsenika Djavadovna Kasparova, uma das formadoras de mulheres comissárias políticas; Olga Afanasievna Varentsovna, que trabalhava no escritório do comissário do povo; Iván Nikitich Smirnov, apelidado “o Lênin da Sibéria”; Karl Ivanovich Grüstein, que dirigiu a Escola do Ar; Larissa Reisner, comissária política que participou da Batalha de Kanzan contra os brancos e escreveu uma brilhante reportagem sobre ela; Yakov G. Blumkin, que após tentar matar o embaixador alemão e ser condenado à morte, foi convencido por Trostky do bolchevismo em sua cela e tornou-se posteriormente membro do serviço de informação do exército vermelho; Sergei Vitaliévich Mrachkovsky, nascido na prisão de pais prisioneiros políticos; o gigante Nikolai Ivanovich Muralov, que comandou em 1919 a guarnição de Moscou. A geração de 1923-1925 constituída por um grupo de jovens do Instituto de Professores Vermelhos, a elite do ensino superior do país: Grigori Yakovin, Man Nevelson, Eleazar Solntsev, Galina Byk. Também há ao redor de Rakovsky um grupo de jovens ucranianos: Lipa A. Volfson, G. M. Vulfovich, o dirigente operário Vasili Golubenko, a economista Tania Semenovna Miagkova. Há georgianos como David (Datiko) Efremovich Lordkipanidze, herói da lutas pela organização operária e contra a polícia do Czar, Budu Mdvani, militante operário, Vaso Donadze, que presidiu o soviete de Tíflis no princípio da revolução. Essa é uma mostra mínima e aleatória dos milhares que ousaram enfrentar o processo de burocratização representado pela ascensão de Stalin.
Nas páginas de Comunistas contra Stalin: masacre de una geración, é exposto a luta desigual entre as forças da revolução e os mecanismos da contrarrevolução que se apoderaram do Estado operário, do Partido e dos sindicatos. Vislumbramos a ação dos que resistiram à destruição dos ideais da Revolução de Outubro. Acompanhamos suas contradições, seus avanços, suas ilusões, seus retrocessos, suas vitórias parciais e seu destino final, que enfrentaram como revolucionários. Como frisa Broué:
“Seus inimigos lhes batizaram de trotskistas, mas eles se chamavam de bolcheviques-leninistas, sentindo-se e querendo ser os verdadeiros continuadores do Partido Bolchevique de Lênin e de Trotsky. Eram sua geração de Outubro, enquadrada e as vezes freada pelos velhos de um partido sangrado, fatigado, desgastado e muitas vezes desmoralizado. A um jovem cabo que haviam mandado disparar sobre dezenas de prisioneiros, lhe impressionou que morreram cantando e disse que eram uns fanáticos. Erro grosseiro, mas útil para os chefes dos verdugos. Em realidade tratavam-se de militantes convencidos. Tinham uma moral, mas também uma moral rigorosa que lhes granjeou o respeito de seus companheiros de calvário. Como outros grupos perseguidos por suas convicções, como os protestantes em tempos de Rei Sol, não cessaram em sua luta, apesar de terríveis sofrimentos, por uma maior tolerância, pela democracia e a livre discussão. Assim, os trotskistas, que não haviam encontrado palavras suficientemente duras para condenar a capitulação de Zinoviev e de Kamenev, levantaram-se em sinal de respeito e dor ao conhecer sua execução quando foi anunciada em Vorkuta.” (p. 31)
Pela pesquisa realizada é possível compreender porque a luta não estava perdida antecipadamente. Um fato demonstra tal perspectiva. Num momento de tensão do aparato burocrático – quando o bloco de centro-direita (Stalin-Bukharin), como se dizia então, entrou em crise pela exclusão de Trotsky e Zinoviev do Comitê Central do Partido – Stalin, escrevendo a Molotov expressa a lógica da luta em curso: “Entre duas coisas, uma. Ou bem restabelecemos aos chefes da oposição os direitos como membros do Partido Bolchevique e criamos um partido de coalizão, ou bem lhe vencemos imediatamente e conservamos o monolitismo do partido. Ou bem para trás, ou bem para diante.” (p. 272)
O importante desse fato é que não há uma linha de continuidade entre Lênin e Stalin, mas sim uma ruptura colossal. Por isso, afirma o autor, comentado a citada mensagem:
“É esta a chave que a maior parte dos historiadores não querem ver, porque desmente o que eles creem ou pelo menos afirmam: a continuidade entre Lênin e Stalin, entre bolchevismo e stalinismo, a equivalência entre Trotsky e Stalin. Para trás: é o partido de Lênin, com suas tendências e frações, suas discussões abertas e públicas – em definitivo, a democracia do partido e dos sovietes. Para diante: é o partido stalinista monolítico, mantido no terror pela GPU.” (p. 272)
Stalin do ponto de vista da contrarrevolução burocrática tinha razão. Não poderia existir acordo entre as duas perspectivas. Por isso, os métodos para derrotar foram tão escusos e a repressão tão brutal. Os oposicionistas, anos antes, em 1923, tinham tido a maioria da conferência do partido de Moscou, mas foram derrotados pela fraude:
“Em Moscou, a Oposição conseguiu a maioria em 40 células (6.954 membros) contra 32 (2.790), a maioria das células do Exército Vermelho, 30% das células operárias, a maioria em 22.000, e… três delegados no total. Vítima de um assalto, foi caluniada na conferência, na qual os delegados eram funcionários mal eleitos, arrogantes e grosseiros, condenando-a por desvio menchevique” (p. 48).
Velhos quadros do partido do partido simpatizavam com a Oposição de Esquerda – mais tarde Stalin viria a dissolver a Associação dos Velhos Bolcheviques. Os jovens a ouviam e não poucos a apoiavam. Operários percebiam que ela expressava suas necessidades. Em Moscou, na Geórgia e na Ucrânia os oposicionistas tinham bases sólidas. Até em Leningrado, área de influência de Zinoviev, a oposição de esquerda, os bolchevique-leninistas estavam presentes. Com o surgimento da Oposição Unificada de 1927 – oposição de esquerda, zinovievistas, decistas (grupo centralismo-democrático) e outros setores defensores da democracia socialista -, ficou evidente a disjuntiva indicada por Stalin. A polícia passou a ser utilizada nas discussões políticas. Transferências e expulsões arbitrárias de militantes, intervenções em células e exílio forçado passaram a ser comuns. Eis a lógica das forças da contrarrevolução, expressa na tese de Stalin “entre duas coisas, uma”, da mentira, da intimidação, da fraude, da exclusão às prisões, torturas, deportações, repressão brutal e, finalmente ao massacre dos revolucionários. Mesmo assim, muitos não se intimidaram, como o exemplo singular do jovem operário Boris Vajnshtok: “que ficou isolado depois da prisão de dezenas de seus camaradas em 1927. Esperou o Congresso do ano seguinte e tomou a palavra para exigir sua liberação. Não duvidava de que esse era seu dever. Encontrou-se com alguns quando foram fuzilados, dez anos mais tarde, em Kolyma” (p. 373).
De acordo com a lista oficial, os membros da Oposição de Esquerda, isto é, pessoas acusadas de “trotskismo” pela polícia e pelo aparato do partido, e por isso detidas ou excluídas, apresentavam a seguinte composição social e profissional:
“44% dos excluídos por pertencer à Oposição eram operários de fábrica, e 25% antigos operários colocados em postos de responsabilidade [o números destes últimos aumentariam muito se fosse possível conhecer a profissão anterior dos comissários políticos do Exército Vermelho e dos estudantes da Rabfaki]. Em que concerne à idade, as pessoas da Oposição são jovens e inclusive muito jovens; 85% tem menos de 35 anos […]. Em Kharkov dos 259 membros excluídos de 1927, entre os quais haviam 196 operários, 70% tem menos de 30 anos, 38% menos de 25 anos” (p. 369).
Isso significa que: “Estamos diante de um movimento da juventude operária. Os jovens que combatem nas fileiras da Oposição são os que eram adolescentes, inclusive crianças, na época da revolução, e cuja maré ainda os impulsionava: a parte mais dinâmica da sociedade, seu futuro;o resultado profundo, a pegada mais duradoura da revolução” (p. 369).
E que teve também forte presença feminina:
“Outro elemento é o papel das mulheres. Em nenhum outro país do mundo podemos encontrar nessa época mulheres jogando um papel como o jogam na URSS as da Oposição. Não só é uma onda feminina a que reforçar des 1928 o centro de B. M. Eltsin, senão também as encontramos nos grupos clandestinos, nas impressoras, como operárias. São mulheres como Mussia, depois Nadejna Ioffe, as que conseguem ganhar o respeito de temíveis bandidos, dos demais detidos e, frequentemente, o de verdugos e torturadores. Talvez não devemos recordar que a participação das mulheres é, e sempre foi, o signo infalível da profundidade de uma revolução, da ancoragem de uma revolução?” (p. 369).
No entanto, a Oposição de Esquerda provou sua superioridade de maneira ainda mais marcante nos campos de prisioneiros. Pois, mesmo nas piores condições, as relações entre os revolucionários oposicionistas não deixaram de espelhar elementos de uma sociabilidade emancipada: “a tolerância (…) não parou de crescer entre as vítimas (…) lhes abriu aos debates políticos e aos grandes horizontes. Desse modo puderam, no Gulag, homenagear todas as vítimas do inumano sistema estalinista (p. 373). Além disso, “havia ali não só um progresso, mas também uma conquista. A superioridade moral dos opositsioneri deve conhecer e reconhecer-se para poder um dia alcançar seus frutos. É por isso que os inimigos do gênero humano se encarniçam em desfigurar as revoluções e os revolucionários, com a esperança de lançar o resto da humanidade ao culto do bezerro de ouro.”
Por isso, nas palavras do historiador francês, um livro como Comunistas contra Stalin, masacre de una generación é tão necessário:
Esta é a razão de ser deste livro. Deveria ser uma arma contra o horror do passado e contra tudo o que se parece com ele hoje; uma lição de valor e de dignidade, jamais inútil; um balanço de uma experiência coletiva sem a qual estaríamos condenados a repetir indefinidamente os mesmos erros e a sofrer as mesmas derrotas. E que depois de havê-lo lido, cada leitor, venha de onde vier, se alinhe no campo dos oprimidos e dos combatentes de Vorkuta e de Magadan (p. 373-374).
Daí que a palavra final seja dada, por direito, a Tatiana, filha de um oposicionista, Ivar Smilga fuzilado por Stalin: “A memoria se conservou. Os homens, os livros foram conservados, inclusive o ambiente mesmo que eles criaram em Outubro com seus estandartes. A verdade nunca abandona a vida. Pertence ao futuro” (p. 374).
(Publicado originalmente em Revista Eletrônica Arma da Crítica, a. 3, n. 3, 2011.)
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