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TEORIA

Notas sobre The Times They Are a-Changin’, de Bob Dylan

Romulo Costa Mattos

Em outubro de 1963, Bob Dylan gravou The Times They Are a-Changin’, faixa título do disco lançado em janeiro de 1964, nos EUA. A intenção do compositor era fazer um hino para as transformações históricas quem vinham ocorrendo no mundo e, particularmente, nos EUA. Nesse país, o movimento pelos direitos civis dos negros ganhava intensidade até então inédita, ao qual aderiram os músicos ligados ao estilo folk, principalmente. Ao lado do referido cantor, artistas como Peter Seeger, Phil Ochs e Joan Baez eram bastante estimados pelo público jovem e marcadamente de esquerda. Mas, inegavelmente, a palavra cantada de Dylan tinha uma força maior do que a de seus colegas.

No ano em que Dylan compôs The Times They Are a-Changin’, a sua carreira vinha em um crescendo. Em 13 de julho de 1963, Blowing’ in the Wind, gravada pelo trio Peter, Paul and Mary, alcançara o segundo lugar nas paradas da Billboard, com vendas que passaram de 1 milhão de cópias. Ainda nesse mês, no prestigiado Newport Folk Festival, o bardo tinha sido apresentado ao público como o artista folk mais importante dos EUA. No dia 26 de outubro, o cantor fez um show-solo com lotação esgotada no Carnegie Hall, confirmando o seu novo status de astro. A edição de 4 de novembro da Newsweek trazia um artigo sobre o artista, embora em termos pejorativos, tratando-o como um jovem vaidoso, que manipulava a verdade para se promover (SOUNES, 2002: 128, 134-5).

Não é propriamente a ascendente carreira de Dylan que explica a gestação de uma canção como The Times They Are a-Changin’ e sim a sua capacidade para realizar as conexões existentes num contexto histórico raro – em que a crença no futuro se transformava em experiência coletiva. Nos anos imediatamente anteriores à referida gravação, foram vitoriosas ou estavam ocorrendo diversas revoluções de libertação nacional, como a revolução cubana de 1959, a independência da Argélia em 1962 e a Guerra do Vietnã. Essas guerras mostravam ao planeta a rebeldia de povos coloniais e semi-coloniais contra grande potências, em um possível prenúncio dos novos tempos. Essa noção é essencial para a compreensão das lutas e do ideal contestador da década de 1960, que atingiriam o seu auge no ano de 1968 (RIDENTI, 2008: 135).

Nos EUA, boa parte dos ativistas da Nova Esquerda cresceu no já mencionado movimento pelos direitos civis e se misturou ao movimento estudantil nas universidades. Em 1962, criou-se no Michigan a SDS – Studantes for a Democratic Society –, que pregava uma nova política e manifestava a desilusão com a sociedade vigente. Em 1964, a insatisfação explodiu na Universidade da Califórnia, em Berkeley, tendo nascido dessa experiência o Movimento pela Livre Expressão, que denunciava o caráter impessoal da universidade e de suas políticas educacionais, tidas como corruptas e segracionistas. Em relação à luta pelos direitos civis, especificamente, organizações a princípio interraciais como a SNCC – Student Nonviolent Coordination Committee (1960) – e o CORE – Congress of Racial Equality (1961) – desenvolviam programas de educação ao cidadão e encorajavam a resistência e a afirmação dos direitos do negro. A SCLC – Southern Christian Leadership Conference (1957) – era liderada pelo pastor Martin Luther King, que organizou uma manifestação em Alabama, em abril de 1963, cujas cenas de violência contra os negros impactaram os lares americanos. Pouco depois, Medgar Evans, presidente da NAACP – National Association for the Advancement of Colored People (1909) –, foi assassinado no Mississipi e o governo federal foi obrigado a interferir. Em junho, John Kennedy enviou um conjunto de propostas legislativas que combatiam a segregação e a discriminação raciais, além de ter discursado sobre o assunto – embora a Lei dos Direitos Civis tenha virado realidade somente em 1965, durante o governo de Lyndon Johnson. Em agosto de 1963, ocorreu a famosa passeata em Washington, no Lincoln Memorial, quando 250 mil pessoas fizeram a maior demonstração pelos direitos civis até então (PAMPLONA, 1995: 83-6). Dylan estava a poucos metros de Luther King quando esse fez o seu discurso mais conhecido: “I have a dream…”. O artista cantou para a multidão, ao lado de Baez.

Três meses depois, Kennedy seria assassinado. A morte do presidente dos EUA deprimiu Dylan, mas logo ele descobriu que podia ter empatia pelo suposto autor do crime, Lee Oswald. Em dezembro de 1963, o compositor foi homenageado pelo ECLC – Emergency Civil Liberties Comittee – com o conceituado prêmio Tom Paine, destinado a personalidades que lutassem em prol da justiça social. No jantar de arrecadação de fundos para a entidade, o cantor recebeu vaias e assobios após afirmar: “eu me vi um pouco nele [Oswald]”. Em entrevista subsequente, Dylan repetiu essa ideia e tentou se explicar melhor: “vi nele boa parte da época em que estamos vivendo” (SOUNES, 2002: 135-5). O ano de 1964 foi marcado pelo Freedom Summer, quando os militantes pelos direitos civis aumentaram as manifestações no Mississipi. Em reação ao assassinato de três líderes do movimento pela polícia, foi criado o MFDP – Mississipi Freedom Democratic Party –, saído das fileiras do Partido Democrata. (PAMPLONA, 1995: 86).

The Times They Are a-Changin’ era um brado à juventude no momento em que os EUA passavam por mudanças cruciais. Influenciado por baladas escocesas e irlandesas, como Come All Ye Bold Highway Men e Come All Ye Tender Hearted Maidens (CROWE, 1985), Dylan convidava os pais a saírem do caminho se não fossem capazes de ajudar (“Your old road is/ Rapidly agin(g)’/ Please get out of the new one/ If you can’t lend your hand”), enquanto convocava senadores e congressistas para atender ao chamado (“Come senators, congressmen/ Please heed the call”). Virando a linguagem bíblica contra as classe dominantes, numa adaptação de uma frase do Sermão da Montanha (“And the first one now will later be last”), lembrou os jovens ouvintes de que eles seriam os herdeiros da terra. Em resumo, a transformação revolucionária é vista como inevitável. Vale mencionar que o álbum homônimo (que também foi sucesso comercial) é o trabalho político de Dylan, por excelência. As suas letras produzem uma análise penetrante da sociedade dos EUA, sendo capazes de comunicar política progressista através de um meio popular (ROLLASON, 1984: 48, 51).

Dylan produziu outras canções duras de protesto no início dos anos 1960, como Masters of War, The Lonesome Death of Hattie Carroll e A Hard Rain’s A-Gonna Fall. Depois do disco The Times They Are a-Changin’, é possível notar o seu afastamento do movimento de protesto, tendo passado a rejeitar uma postura coletiva a favor de um posicionamento anarco-individualista e antissistema. Porta-voz da nova (e subversiva) cultura underground, para muitos, o compositor continuava a fazer política, na prática. Mas o fim da década de 1960 revelou uma viragem gradual de posições radicais para uma postura reacionária, que seria completada com a sua conversão, em 1978, à ideologia do movimento cristão “born-again”, afinado com o reaganismo e a direita-radical. No ano seguinte, o seu álbum Slow Train Coming apresentava uma ideologia raivosamente antimulher, pró-família, pró-censura e anticomunista. O cristianismo sob a forma autoritária substituía o conceito de classe em sua obra: o motor da história seria a luta entre crentes e não crentes. Até para cristãos esse dogmatismo fundamentalista pareceu indigesto (Cf. ROLLASON, 1984).

Ao longo das décadas de 1990 e 2000, a canção The Times They Are A-Changin foi licenciada para uso publicitário em campanhas publicitárias de empresas de auditoria e contabilidade, de companhias de seguros e até de bancos canadenses (GRAY, 2006: 152), além de ter integrado a trilha sonora de superproduções hollywoodianas. Mas pode ser, nos dias de hoje, novamente apropriada segundo o seu sentido político original, tendo em vista os grandes protestos que unificam cada vez mais a luta dos trabalhadores europeus contra o capitalismo ortodoxo da Troika. Milhões de pessoas que insistem em negar, nas ruas, as verdades inexoráveis do neoliberalismo, segundo as quais mudar é sempre muito difícil, quando não impossível.

Os tempos estão mudando.

Referências bibliográficas

DYLAN, Bob. Biograph. Columbia Records, 1985. Notas e textos por Cameron Crowe.

GRAY, Michael. The Bob Dylan Encyclopedia. New York, London: Continuum International, 2006.

PAMPLONA, Marco A. Revendo o sonho americano: 1890-1972. São Paulo: Atual, 1995.

RIDENTI, Marcelo. “1968: rebeliões e utopias”. In: FILHO, Daniel Aarão Reis Filho, FERREIRA, Jorge, ZENHA, Celeste. O Século XX. O Tempo das Dúvidas. Do declínio das utopias às globalizações.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

ROLLASON, Christopher. Bob Dylan: do radicalismo à reacção. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 13, 1984.

SOUNES, Howard. Bob Dylan: a biografia. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002.

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bob dylan / música