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TEORIA

A marola conservadora

Ruy Braga

Para Flávio Pierucci, sociólogo da alma popular.

Assim como muitos cidadãos paulistanos, também fui pego de surpresa pelo resultado do primeiro turno da eleição para prefeito. Até uma semana antes do 3 de outubro, poderia jurar, apoiado em, praticamente, todas as enquetes dos institutos de pesquisa de opinião, que o candidato tucano, José Serra, disputaria o segundo turno com Celso Russomanno, do PRB, partido criado em 2005 pelo ex-vice-presidente da república, José de Alencar, a fim de acomodar fisiologicamente antigas forças políticas oposicionistas recém-convertidas ao governismo federal.

Independente de Russomanno não ter chegado ao segundo turno, o sucesso de sua candidatura representa um grande desafio para a análise da política brasileira. Antes do primeiro turno, muitos observadores explicaram seu crescimento por meio de dois argumentos complementares: o candidato do PRB articularia a revivificação do velho populismo paulistano de direita, uma tradição que remonta a Adhemar de Barros, Jânio Quadros e Paulo Maluf, com uma nova onda politicamente conservadora e apoiada, principalmente, no crescimento da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). (Não nos esqueçamos de que dez dos dezoito membros da Executiva Nacional do PRB são diretamente ligados à Iurd ou ao seu braço midiático, a Rede Record…)

A iminente vitória do candidato petista, Fernando Haddad, no entanto, traz um elemento problematizador para este raciocínio. Afinal, se a cidade passa por uma “onda conservadora”, como interpretar a surpreendente arrancada do candidato lulista, a despeito de seu patamar de votos no primeiro turno estar abaixo da média histórica do PT na capital?

O comportamento politicamente conservador de parte expressiva do eleitorado paulistano – retratado este ano por uma pioneira enquete realizada pelo instituto Datafolha – não é novidade. São Paulo é uma cidade que acantona mais de um milhão de pequenos proprietários: taxistas, donos de oficinas mecânicas, de salões de beleza, pequenos “empreendedores” (bares, biroscas, botequins, vendas, mercadinhos, restaurantes, etc.), além de milhares de trabalhadores supostamente “auto-empregados”, como os motoboys, por exemplo. Historicamente, o universo ideológico do pequeno proprietário combina a inclinação por soluções repressivas para a questão social – “Rota na rua”, etc. – com a intransigente defesa de cortes de tributos e de impostos. Resultado: voto na direita.

No entanto, isto seria capaz de explicar a novidade representada pela candidatura de Celso Russomanno? Não me parece o caso. Afinal, a fatia conservadora do eleitorado há tempos acomoda-se confortavelmente à hegemonia tucana: basta pensarmos no próprio José Serra, mas também em Geraldo Alckmin (com a Rota, a desocupação do Pinheirinho…), Gilberto Kassab (com a intervenção na cracolândia…), etc. A alta rejeição ao candidato tucano e a baixa popularidade do atual prefeito são fatores que, evidentemente, devem ser levados em consideração. No entanto, outros candidatos poderiam ter levantado a bandeira da truculência como solução para os problemas da cidade. E não nos esqueçamos que, segundo a pesquisa pioneira do instituto Datafolha, entre os eleitores mais conservadores, José Serra foi o preferido.

Aqui emerge a segunda parte do argumento: Celso Russomanno teria sido beneficiado pelo avanço do neopentecostalismo. Trata-se de uma tese que, basicamente, afirma que o crescimento das denominações neopentecostais não apenas é compatível com a proliferação do conservadorismo político como não foi ainda capaz de encontrar uma expressão politicamente orgânica nos partidos tradicionais. Daí a capacidade de atração demonstrada por um candidato neopopulista de direita à frente de um partido nanico controlado pela Iurd.

Falecido em maio passado, meu saudoso amigo, Flávio Pierucci, estudou por anos a fio a relação entre a religião e a vida política nacional. Evidentemente, não sei o que Flávio diria sobre a atual eleição, mas intuo que ele desenvolveria ideias de seus últimos artigos publicados na revista Novos Estudos do Cebrap e na própria Folha de S. Paulo. Aqui, não me refiro tanto ao “efeito Fariseu” – isto é, o abandono pelo crente do candidato que se vangloria de sua fé –, que Flávio importou da ciência política estadunidense para interpretar a derrota de José Serra em 2010.

Apenas em hipótese, considero possível que uma espécie de “efeito Fariseu precoce” – ou seja, antes do turno derradeiro – tenha acontecido este ano em São Paulo. Afinal, a peculiar situação de ter um candidato notoriamente católico ladeado por bispos da Iurb pode ter desidratado o voto evangélico em Russomanno. No entanto, ao menos no tocante aos temas religiosos, confesso não ter percebido na campanha de Celso Russomanno uma especial belicosidade. Aliás, a despeito do modelo de seu programa de televisão mimetizar a estrutura de alguns programas da Record, o neopentecostalismo “de choque” esteve longe de dar o tom da campanha do PRB paulistano.

Na verdade, em alguns de seus últimos textos, Flávio Pierucci insinuou uma hipótese aparentada, mas distinta, do “efeito Fariseu”. Segundo ele, a lógica que rege a relação entre as múltiplas denominações neopentecostais é a da concorrência pelos fiéis – e não a da solidariedade entre os crentes. No início, o candidato apoiado por uma igreja a um cargo majoritário chega a atrair a simpatia dos evangélicos. Afinal, trata-se de um “igual na fé”, ou seja, um “irmão”.

O problema é que quando esse mesmo candidato começa a ser associado a uma denominação em particular, caso da Iurb, por exemplo, as demais igrejas logo se afastam dele, percebendo aí uma ameaça ao prestígio de sua própria comunidade. Por isso, o voto evangélico elege vereadores e deputados, mas não prefeitos, governadores ou presidentes. Em eleições majoritárias, este tipo de motivação ao voto tende a perder força. Daí o ceticismo manifestado por Flávio Pierucci em seus artigos sobre a suposta força política dos grupos evangélicos.

Ou seja, nem o tradicional conservadorismo paulistano, nem o neoconservadorismo religioso, parecem-me argumentos fortes o suficiente para explicar a ascensão e o declínio de Celso Russomanno. Ademais, servem menos ainda para elucidar a iminente eleição de Haddad: afinal, não é notório que o petista cresce em todas as regiões da cidade, especialmente, naquela semi-periferia onde o candidato do PRB teve seu melhor desempenho eleitoral? Se realmente estamos vivendo uma onda direitista em São Paulo, os votos de Russomanno não estariam migrando para José Serra, o preferido dos mais conservadores? Por quê então desaguam caudalosamente em Haddad?

Aliás, em recente pesquisa, o Datafolha revelou que, entre os eleitores classificados como “conservadores”, Haddad tem 46% das intenções de voto contra 33% de Serra neste segundo turno. Em pesquisa semelhante realizada em setembro, o candidato lulista tinha o pior desempenho entre os conservadores, com 12% e, naquela ocasião, o líder isolado nesse grupo, com 41%, era exatamente Russomanno.

Malgrado reconhecer que se trata de uma formulação polêmica, gostaria de arriscar uma hipótese alternativa ao debate: em minha opinião, o notável desempenho do candidato do PRB à prefeitura da cidade de São Paulo representa a manifestação deformada de um estado de inquietação social com o atual modelo de desenvolvimento cuja raiz não está no modo de regulação lulista. Ao contrário, este continua seduzindo as classes sociais subalternas, como bem demonstram o próprio desempenho de Haddad e o crescimento, com mensalão e tudo, dos votos no PT. A raiz do atual estado de inquietação social deve ser buscada nos limites do regime de acumulação pós-fordista e financeirizado que domina a estrutura social brasileira.

Trata-se de uma situação complexa em que o lulismo, com sua ênfase nas políticas públicas, continua reproduzindo eficientemente uma conflitualidade classista que começa a aumentar com o baixo crescimento econômico e a incapacidade do regime de acumulação de prover postos de trabalho que remunerem mais do que 1,5 salário mínimo. Como não há ganhos de produtividade na estrutura social, a incorporação das massas pauperizadas ao mercado de trabalho formal é realizada por meio da multiplicação de empregos subremunerados, terceirizados e submetidos a altas taxas de rotatividade. Ao mesmo tempo, a financeirização do consumo popular continua avançando por meio da indústria do empréstimo a juros. Resultado: deterioração das condições de trabalho associada ao aumento do endividamento das famílias trabalhadoras.

Eis que surge Celso Russomanno, campeão dos direitos do consumidor. Não me parece irrealista imaginar que o candidato do PRB tenha aparecido aos olhos do trabalhador paulistano, como uma alternativa sedutora aos dois principais representantes do atual regime de acumulação. Em minha opinião, esse setor do eleitorado popular esboçou um namoro com Russomanno, logo desfeito diante do aumento dos ataques dos adversários e da própria inconsistência do candidato. E decidiu seguir hipotecando seu apoio ao representante oficial do atual modo de regulação. Puro “pragmatismo dos pobres”, como gostava de dizer Flávio Pierucci: ao fim e ao cabo, dos males, o menor.

É por isso que tendo a interpretar cum grano salis – alguns diriam, “dialeticamente” – essa história de “onda conservadora” em São Paulo. Parafraseando Lula da Silva, essa tsunami mais parece uma marolinha. Em minha opinião, a chave capaz de desvendar Russomanno não é a do avanço da direita. Na realidade, assistimos no primeiro turno à manifestação de um conservadorismo social típico daqueles setores que desejam preservar o pouco que foi alcançado durante o último ciclo de crescimento econômico. Tudo somado, trata-se de um fenômeno potencialmente progressista que foi vocalizado por uma alternativa de direita.