A tese da “cordialidade” mantém atualidade?

Valerio Arcary


Quem a si próprio elogia, não merece crédito. (Sabedoria popular chinesa.)

Não se deve elogiar o dia antes da noite. (Sabedoria popular alemã.)

A verdade é como o azeite: Vem sempre ao de cima. (Sabedoria popular portuguesa.)

O bloco político que apóia o governo Dilma saiu, essencialmente, vitorioso do primeiro turno das eleições municipais de 2012. O PT foi o partido mais votado em todo o país. Se perder o segundo turno em São Paulo, a vitória relativa pode ficar com um sabor amargo, mas não ao ponto de fragilizar o governo.

Historiadores se dedicam a narrativas que pretendem atribuir sentido ao que já aconteceu. Quem escreve a história do tempo presente sabe que, se o futuro pode ser inesperado, o passado recente pode ser, também, inusitado. Mas somente em ocasiões muitas raras, aquilo que será, revela-se, realmente, imprevisto. Existem tendências inscritas na realidade, e que expressam as relações de forças sociais e políticas que estão em disputa. Estas tendências são forças de pressão poderosas que restringem, em condições normais, as alternativas em disputa a poucas possibilidades.

Este pequeno texto tem um argumento: as eleições municipais de 2012 no Brasil confirmaram que o regime de presidencialismo de coalizão nunca esteve tão forte desde o fim da ditadura. O que remete à discussão das causas desta estabilidade.

Duas hipóteses de interpretação do tema da estabilidade do regime presidencialista

A impressionante estabilidade do regime democrático nos últimos anos exige uma explicação histórica. Afinal, ela foi excepcional na vida política brasileira, se considerarmos os dez anos de governos de coalizão dirigidos pelo PT, comparativamente, com o período 1945/64 ou com o período 1985/2002.  Dois caminhos se abrem diante da análise histórico-social. Eles não são incompatíveis, mas merecem ser apresentados, separadamente, por necessidades de exposição.

O primeiro priorizará os elementos objetivos das transformações econômicas e sociais. O crescimento econômico entre 2004 e 2008, interrompido em 2009, porém, recuperado com exuberância em 2010, foi inferior à média do crescimento dos países vizinhos, mas a inflação foi, também, significativamente menor que a argentina, boliviana ou venezuelana, por exemplo. Esta parece ter sido uma das chaves de explicação do sucesso popular do governo Lula: reduziu o desemprego a taxas menores que a metade daquelas que o país conheceu ao longo dos anos noventa; garantiu uma elevação constante do salário mínimo além da inflação, passando de US$60,00 para mais de US$300,00 e assegurou, portanto, outro patamar de sobrevivência aos aposentados e pensionistas da previdência social, um benefício estendido à população de origem rural sem condições de comprovar 35 anos de contribuição pela Constituição de 1988; permitiu a recuperação do salário médio que atingiu, finalmente, em 2011, o valor de 1990; aumentou a mobilidade social, tanto a distribuição pessoal quanto a distribuição funcional da renda; garantiu uma elevação real do salário mínimo acima da inflação; e permitiu a ampliação dos benefícios do Bolsa-Família. O crescimento econômico teve duas dimensões: foi favorecido pelo aumento da demanda mundial de commodities, e pelo aumento interno do consumo. Associado à expansão do crédito, ofereceu ao país uma sensação de alívio. Nenhum destes fatores pode ser subestimado, mas, ainda assim, esta via de interpretação parece insuficiente.

O segundo caminho remete ao peso histórico das ideologias na preservação da paz social. Entre elas, as duas mais importantes, porque aquelas com raízes mais antigas no “Brasil profundo” ressaltam a ambiguidade do elogio do “jeitinho”, ou seja, a ideologia da improvisação, portanto, daquilo que há de positivo em uma sociedade enérgica e decidida, mas, também, de consagração do drible das regras universais, por exemplo, a legitimação do nepotismo; e o elogio do “levar vantagem”, a ideologia da conveniência e do proveito, portanto, daquilo que há de positivo na flexibilidade, mas, também, de tolerância com a corrupção, ou até de naturalização da manipulação dos laços emocionais entre as pessoas para favorecer o alpinismo social. Acontece que a crítica da ideologia do jeitinho necessita, além de uma descrição, de uma análise histórico-social. Foi isso que Chico de Oliveira ensaiou em artigo instigante sobre o caráter nacional em recente artigo para a Revista Piauí. Segundo Chico de Oliveira o que se esconde atrás do jeitinho é a brutalidade das relações de dominação. Vai nessa direção a leitura histórica de Cesar Benjamim:

“Nossa história, diz Sérgio Buarque, girou em torno do complexo ibérico. Mas o êxito da colonização portuguesa não decorreu de um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica: buscou a riqueza que custa ousadia, não a riqueza que custa trabalho. A ética da aventura prevaleceu sobre a ética do trabalho. É uma herança atrasada, em via de superação, mas foi a base da nacionalidade, constituiu as ‘raízes do Brasil’.”[1]

Não parece razoável tentar explicações históricas pela análise do caráter nacional. A hipótese oposta permanece mais fértil. Foram as peculiaridades de nossa história que forjaram a ideologia dominante, e não o contrário. Mas em cada época histórica encontraremos uma ideologia dominante. Nossa tese é complementar à de Chico de Oliveira: o “jeitinho” seria, em nossa opinião, a forma encontrada de garantir mobilidade social individual através de relações pessoais de compadrio e favor, tratando os desiguais de forma desigual para preservar a paz social e encontrar saídas negociadas e concertadas.

A ideologia do jeitinho brasileiro, aquilo que em Portugal ficou conhecido como os “brandos costumes” desde Alexandre Herculano, remete à solução peculiar do difícil problema político da mobilidade social em sociedades muito desiguais em processo de urbanização tardia. A solução burguesa liberal européia foi a meritocracia, ou seja, a equidade social, a ascensão social pela tirania do esforço ou da capacidade. Em outras palavras, tratar os desiguais de forma igual. A “solução” brasileira foi diferente. Apesar da perpetuação da desigualdade, existiu no Brasil uma mobilidade social na margem.

A tese da cordialidade mantém atualidade?

O tema provoca uma reflexão sobre a atualidade da tese da cordialidade, em um país em que as idéias republicanas de equidade, liberais de igualdade jurídica ou socialistas de igualdade social sempre foram pouco influentes. A cordialidade conceituada por Sergio Buarque de Hollanda em Raízes do Brasil remetia à forma especificamente nacional da formação do caráter brasileiro, uma manifestação no terreno dos costumes da intensa mobilidade social de um país ainda em construção nos anos trinta, vivendo as sequelas de um atraso material e cultural, mas extremamente dinâmico: “A cordialidade (… ) a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam com efeito um traço definitivo do caráter brasileiro”.[2]

O “homem cordial” é uma imagem que recorre, em primeiro lugar, ao que se reconhece no senso comum como a natural afetuosidade, gentileza espontânea, facilidade de trato e disponibilidade emocional dos brasileiros que se expressaria no terreno político-social pela priorização das vias conciliadas, ou seja, um fenômeno cultural compreendido como, essencialmente, benigno: afinal, as maneiras suaves e os costumes afáveis, por oposição ao que é áspero, ríspido, bruto e grosseiro seriam conquistas civilizatórias.

Mas a “cordialidade” foi, também, um conceito contra-intuitivo que descrevia a forma cultural de dominação e ocultamento da imensa brutalidade das relações sociais, camufladas através da intimidade artificial, da familiaridade falsa, da camaradagem fingida. A cordialidade seria uma das formas brasileiras de camuflagem da desigualdade econômica, social e racial. Ela teria duas dimensões: por um lado seria uma forma cultural de dissimulação do controle privado do espaço público, ou seja, da necessidade do domínio do Estado por uma burguesia nacional de constituição tardia, fragilizada pela dependência externa. Por outro lado, seria uma máscara de disfarce de uma burguesia acossada pelo perigo da rebelião interna: daí a importância das relações de bajulação, a centralidade do benefício pessoal, da graça outorgada, do favor concedido, do obséquio prestado, ou seja, da autoridade sobre a clientela. Surgiu nesse processo uma relativa coesão social. Mas ela não foi nunca tão funcional, ou seja, nunca permitiu uma dominação, politicamente, estável como nos últimos dez anos de governo do PT.


[1] BENJAMIM, Cesar. Uma certa idéia de Brasil. In Enciclopédia da Brasilidade, auto-estima em verde e amarelo Carlos Lessa. BNDES, 2005. Consulta em 31/10/2011. Disponível:  .http://www.contrapontoeditora.com.br/arquivos/artigos/ 200711011651590.Certa%20ideiade%20Brasil.pdf

[2] BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2006.