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TEORIA

A “Era” Hobsbawm (1917-2012)

Marco Pestana

Em 1993, quando do falecimento de Edward P. Thompson, seu colega de longa data, Eric Hobsbawm, afirmou, em artigo para o The Independent, que “E.P. Thompson, historiador, socialista, poeta, ativista, orador, escritor – em seu tempo – da mais fina e polêmica prosa do século XX, provavelmente gostaria de ser lembrado pelo primeiro termo dessa lista”. Decorridos quase 20 anos da publicação daquele texto, chegada a vez do próprio Hobsbawm nos deixar nesse 1o de outubro de 2012, uma lista igualmente longa de adjetivos pode ser evocada para descrever os múltiplos elementos de sua personalidade: historiador, socialista, professor, crítico e amante de jazz, dentre outros. Não o tendo conhecido pessoalmente, não sou capaz de identificar por qual de suas facetas Hobsbawm gostaria de ser lembrado. Outros elementos, entretanto, me permitem afirmar com segurança que doravante ele será lembrado fundamentalmente como historiador – assim como ocorre ainda hoje com Thompson – por não menos que algumas décadas.

Quanto a isso, é impossível não destacar a vastidão de temas abordados em seus livros e artigos publicados ao longo de mais de seis décadas de intensa produção intelectual, desde suas pesquisas iniciais acerca do que denominou “rebeldes primitivos” – no bojo das quais cunhou o polêmico conceito de movimentos sociais “pré-políticos”. Não menos notável foi sua capacidade de estabelecer interpretações de conjunto para extensos e atribulados períodos históricos, como evidencia sua trilogia (Era das Revoluções, Era do Capital e Era dos Impérios) devotada ao exame do “longo século XIX”, publicada entre as décadas de 1960 e 1980. Nem mesmo uma de suas principais paixões pessoais, o jazz, escapou de ser examinada sob uma perspectivas história, cristalizada no livro História social do jazz, inicialmente publicado sob o pseudônimo de Francis Newton.

Já nos anos 1990, sua erudição e capacidade de síntese foram novamente mobilizadas para a produção de outra obra de grande envergadura, Era dos extremos, em que defendia que o embate entre os sistemas sociais socialista e capitalista seria o fio condutor das principais transformações históricas características do “breve século XX” (fim do eurocentrismo, consolidação da escala global dos processos e dissolução dos antigos padrões de sociabilidade em favor de um individualismo exacerbado), por ele situado nos anos 1914-1991. Originalmente publicado em 1994, o livro destacou-se ainda por abordar um período histórico quase totalmente coincidente com o tempo de vida de Hobsbawm, bem como eventos que tiveram forte significação ao longo de sua trajetória pessoal. Não por acaso, grande parte desses eventos foi tratada sob uma perspectiva mais pessoal em sua autobiografia, Tempos interessantes, como o imperialismo inglês na África, que levou seu pai à cidade de Alexandria, no Egito, onde Eric nasceu em 1917; a ascensão do nazismo em 1933, que fez com que sua família deixasse Berlim para residir na Inglaterra; a Segunda Guerra Mundial, da qual tomou parte como membro do exército inglês, dentre muitos outros.

Vivenciado todos esses importantes processos, Hobsbawm jamais se colocou como um observador ou cronista dos acontecimentos pretensamente neutro. Muito pelo contrário, uma das marcas mais significativas de sua produção historiográfica foi seu permanente engajamento político, sempre ao abrigo das tradições do marxismo e do socialismo. Ainda antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, sob o impacto inspirador da Revolução Russa de 1917, Hobsbawm se tornou membro do Partido Comunista da Grã-Bretanha (PCGB).

Como militante do PCGB, participou do que ficou conhecido como Grupo de Historiadores do Partido Comunista, o qual funcionou entre 1946 e 1956, reunindo alguns dos mais brilhantes historiadores do século XX, como o já mencionado Edward Thompson, Christopher Hill, Rodney Hilton, entre outros, sob a inspiração do decano Maurice Dobb. A conexão entre as discussões coletivas no âmbito do Grupo e as pesquisas individualmente conduzidas por seus membros foram decisivas para a articulação de um dos mais influentes e profícuos veios da moderna historiografia, a chamada História Social Inglesa. A partir dos esforços de resgate da história e da ação histórica dos grupos subalternizados como passo incontornável para uma explicação mais acurada da dinâmica da totalidade social, os pioneiros da História Social Inglesa desenvolveram profundas inovações teórico-metodológicas – relativas ao uso de determinados tipos de fontes, ao burilamento de conceitos centrais para a tradição do materialismo histórico e, até mesmo, à forma de se conceber o estatuto da própria história-disciplina –, para as quais Hobsbawm contribuiu diretamente com duas seminais coletâneas de artigos, intituladas, respectivamente, Trabalhadores e Mundos do Trabalho.

O Grupo de Historiadores, no entanto, se desfez em 1956, como consequência da saída da maioria de seus membros das fileiras do PCGB em protesto contra a invasão da Hungria por tropas soviéticas no mesmo ano. Embora tenha criticado a intervenção militar – assim como faria em relação à repressão imposta, em 1968 e também sob o comando dos soviéticos, à Primavera de Praga –, Hobsbawm divergiu de seus colegas historiadores e optou por permanecer filiado ao PCGB. Ao longo dos anos 1970, Hobsbawm deslocou-se progressivamente para o campo da perspectiva reformista encarnada pelo Eurocomunismo, desenvolvido sobretudo pelo PC italiano. Sua dívida com o comunismo italiano, entretanto, era muito anterior, tendo seu ponto alto na obra do sardo Antonio Gramsci, que figurou, inclusive, como peça-chave em diversos dos ensaios do último livro publicado por Hobsbawm em vida, intitulado Como mudar o mundo.

A aproximação em relação ao reformismo não o impediu de, no decênio seguinte, se contrapor decisiva e publicamente às políticas conduzidas pelo gabinete conservador de Margareth Thatcher. Ao publicar o conjunto de textos Estrategias para uma esquerda racional, apontou claramente para a especificidade histórica do regime econômico e social inaugurado por aquele governo, se contrapondo a outros pensadores da esquerda que insistiam em equipará-lo às administrações conservadoras anteriores. Ainda ao longo da década de 1980, as imbricações entre suas posições políticas e suas preocupações intelectuais e profissionais se expressaram também por meio de seu esforço de organização da mais completa coletânea de História do Marxismo, que traz, em seus 12 volumes, textos de variados autores debatendo as mais diversas vertentes de pensamento e atuação marxista desde sua fundação no século XIX.

Ao contrário do que sugerem muitas abordagens conservadoras acerca da relação entre política e pesquisa, sua perspectiva permanentemente engajada jamais serviu de justificativa para que Hobsbawm deixasse de lado os rigorosos procedimentos metodológicos característicos desse tipo de investigação. Em diversas ocasiões, como em numerosos textos reunidos no livro intitulado Sobre História, o próprio autor tomou para si a tarefa de combater determinados ataques à disciplina histórica materializados sob a forma de concepções narrativistas que a equiparam a construções literárias e/ou instrumentalizações políticas indevidas, que apartam determinados grupos sociais das totalidades históricas em que se inserem.

Para Hobsbawm, em suma, tanto quanto a profunda erudição jamais se tornou escusa para um enclausuramento em arquivos e bibliotecas, deixando de lado a necessidade de intervir nos acontecimentos de seu próprio tempo, a militância política nunca se assentou em bases meramente voluntaristas, prescindindo de um profundo movimento de reflexão para sustentá-la. Em sua trajetória, análise do passado e transformação do presente apareceram sempre como dimensões indissociáveis da prática do historiador, orientada para a criação de um “(…) mundo no qual os trabalhadores possam fazer sua própria vida e sua própria história, ao invés de recebê-las prontas de terceiros, mesmo dos acadêmicos”[1].


[1] HOBSBAWM, Eric. “História operária e ideologia”. In: Mundos do Trabalho: novos estudos sobre história operária. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 30.