Nem um minuto contra o regime

Felipe Demier

O caráter extremamente restrito e exclusivamente burguês das democracias liberais contemporâneas parece evidenciar-se em momentos eleitorais, nos quais, em nome da reprodução ordinária e tranquila do regime, alguns rebuços ideológicos tem que ser abandonados. Parafraseando Florestan Fernandes, pode-se dizer que, durante os pleitos, o baile da democracia burguesa continua, só que sem máscaras. A festa atinge, portanto, seu fastígio, para regozijo dos partidários da ordem e de seus prepostos midiáticos, os enjoativos “analistas políticos” dos mass media.

Na última quarta-feira, os que, por inércia, convicção ou terapia, assistiram ao programa eleitoral de televisão da cidade do Rio de Janeiro talvez tenham notado que mais da metade dos já escassos 60 segundos dos quais dispõe diariamente o candidato Cyro Garcia, do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), foram transferidos, por decisão do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), para o “candidato-vencedor”, Eduardo Paes, que já dispõe de aproximadamente de 17 minutos, mais de 50% do total do tempo destinado a cada bloco da campanha eleitoral televisiva. Assim, abruptamente, quando mal havia começado a acelerada propaganda de Cyro, a tela tornou-se azul e, no melhor estilo dos cortes cinematográficos soixante-huitard, passou a exibir o tal direito de resposta de Paes, que não era senão mais um reforço para a fictícia peça publicitária do candidato à reeleição à Prefeitura da cidade. A alegação do TRE para transferir os exíguos segundos de Cyro para a telenovela de Paes foi a de que o candidato do PSTU teria acusado, sem provas, Eduardo Paes de ser um candidato financiado pelos banqueiros e empreiteiras, e apoiados pelos meios de comunicação. Didaticamente, o episódio em questão nos diz muito acerca da atual configuração do regime democrático-liberal, a qual, com pequenas variações, pode ser encontrada em várias partes do mundo.

Nunca a democracia liberal burguesa foi tão uniforme, tão padronizada e, curiosamente, tão laudatoriamente tratada por quase todas as forças políticas. Se, no chamado “mundo ocidental”, ela é peremptoriamente defendida por agrupamentos de diversos matizes (que vão dos dirigentes da esquerda reformista/centrista aos mais radicais adeptos de um neoliberalismo privatista), em outras partes do globo, é vista como uma meta a ser atingida, uma solução “cientificamente” sugerida pelos politólogos de plantão.

Não seria, portanto, a nosso ver, exagerado falar na existência de um verdadeiro dogma liberal-democrático. Entretanto, contraditoriamente – ou talvez apenas em uma aparente contradição –, as jovens massas populares que, neste último período aberto pela crise econômica de 2008, vêm se mobilizando em várias partes do mundo democrático-liberal, em especial no sul da Europa, apresentam como uma de suas reivindicações políticas centrais justamente…a democracia! As certezas de que o presente já é pior do que o passado, e de que o futuro tende a ser ainda pior do que o já angustiante presente, levam a que milhares de jovens dos setores subalternos da sociedade adentrem pela primeira vez a cena política, e estes o fazem clamando, entre outras demandas, por uma “democracia real” – as bandeiras de “Democracia real já!” ou de “Nós somos os 99%!” estiveram presentes com muito destaque nas manifestações pelo mundo afora conhecidas como Ocuppy (Puerta del Sol, Cataluña, Syntagma,Wall Street etc., todas inspiradas na ocupação da Praça Tahir, expoente máximo da revolução egípcia que derrubou a longeva ditadura de Hosni Mubarak em 2011). A nosso ver, essa posição das jovens massas europeias que, contra os regimes democrático-liberais, reivindicam exatamente democracia explicita bem mais do que a já sabida contradição entre a democracia realmente existente sob o capitalismo e o sentido histórico original (e mesmo etimológico) da “democracia” (“poder do povo”, “soberania popular” etc.). Mais precisamente, tais enfrentamentos evidenciam a formatação absurdamente restrita que o regime democrático-liberal assumiu nesta última quadra histórica, tanto em países do centro quanto da periferia do sistema capitalista.

De feições “técnicas” e “apolíticas”, os atuais regimes democrático-liberais parecem cada vez mais fechados a qualquer tipo de demanda minimamente reformista que provenha dos segmentos subalternos da sociedade. Diferentemente das democracias liberais surgidas no pós-Segunda Guerra Mundial, as quais, por diversos fatores histórico-conjunturais (derrota do nazi-fascismo, força política da classe trabalhadora, existência da “ameaçadora” União Soviética, entre outros), viram-se obrigadas a incorporar significativamente aspirações populares por meio de reformas/direitos sociais universais, os “novos” regimes democrático-liberais que começaram a ser desenhados em fins da década de 1970, com a “crise do fordismo” e a emergência da onda neoliberal, mostram-se como regimes políticos essencialmente contrarreformistas. Assim, se nas democracias liberais europeias do welfare state fordista, importantes demandas dos trabalhadores encontravam, ainda que de forma filtrada e rebaixada, expressão nas políticas públicas levadas a cabo pelos governos – conformando, portanto, uma espécie de “colaboração de classes” assentada em um efetivo “pacto social” –, não se pode dizer o mesmo dos regimes democrático-liberais da contemporaneidade. Remodelada pelo neoliberalismo das últimas décadas, as democracias liberais europeias substituíram uma política social reformista que as caracterizava por outra de corte nitidamente contrarreformista, cujo objetivo precípuo é – e assim o é desde fins dos anos 70 – reverter a queda da taxa de lucro. Almejando esse objetivo, as contrarreformas proporcionam, coetaneamente, uma drástica diminuição dos gastos estatais com as políticas públicas universais, um agravamento da precariedade e da insegurança do Trabalho (viabilizando maiores taxas de exploração) e – o que é mais importante – a abertura de novos espaços de investimentos para o Capital privado (Saúde, Educação, Previdência etc.).

Nessa contraofensiva do Capital sobre o Trabalho – definida precisamente por Ruy Braga como a “restauração do capital” –, a qual visava reverter o quadro crítico das economias centrais verificado a partir de 1973, uma das metas políticas aventadas pelos intelectuais orgânicos das classes dominantes, como bem destacou Atílio Boron, era tornar os regimes democrático-liberais imunes, ou pelo menos não muito suscetíveis, às “exigências populares”. Livrá-los dos “‘excessos’ democráticos, paralisantes da alegada vitalidade do mercado”, apareceria no receituário dos ideólogos neoliberais como uma condição política necessária à recuperação das economias capitalistas em crise, em especial as europeias politicamente alicerçadas no chamado “bem-estar social” (Alemanha, França, Inglaterra, Itália etc.). Assim, se as concessões materiais do Capital ao Trabalho que garantiam o “pacto social” vigente sob as democracias do welfare state (vários direitos sociais, estabilidade do salário real, baixos níveis de desemprego, boa qualidade de vida do proletariado médio etc.) deveriam ser progressivamente retiradas para que os níveis de lucratividade fossem retomados, fazia-se premente que as incômodas interferências populares nos centros decisórios de poder político (Parlamento e Poder Executivo, especialmente) fossem reduzidas ao máximo. Para se reerguer, o Capital deveria desfazer-se de todas as suas amarras reformistas.

Iniciado pelo governo de Margareth Thatcher na Inglaterra (1979-1990) – que impôs drásticas derrotas ao movimento sindical –, esse processo de reformatação das democracias liberais realizou-se com ritmos desiguais e encaminhamentos diferenciados no continente europeu. Também as nações que só conheciam o regime democrático-liberal havia poucos anos, como Portugal, Espanha e Grécia, assim como os países da América Latina que realizavam transições políticas pelo alto em direção à democracia, deveriam moldá-la de modo a sintonizar suas formas de dominação político-social com as exigências da recuperação econômica capitalista. Em resumo, pode-se dizer que a plataforma neoliberal, que incluía corte de direitos sociais, privatizações, aceleração da reestruturação produtiva e financeirização/desregulamentação da economia, exigia uma nova configuração político-jurídica do Estado mais adequada a sua implementação. Na década de 1990, com o fim do “socialismo real” – que simbolizava uma alternativa de organização societária ao capitalismo –, as metamorfoses nos regimes democrático-liberais se acelerariam intensamente, tornando-os cada vez mais próximos à longeva e insípida democracia-liberal norte americana – que, sem rupturas estruturais, também se remodelava em função do neoliberalismo inaugurado no país com o governo do republicano Ronald Reagan (1981-1989).

Constituíram-se, então, regimes políticos que, conquanto similares em muitos aspectos às democracias ocidentais do pós-Segunda Guerra – afinal de contas, trata-se também de democracias liberais, e não de ditaduras bonapartistas, militares, fascistas etc. –, já continham elementos que nos permitem caracterizá-los como “democracias liberais de novo tipo”, as quais podemos designar como democracias blindadas. Distintamente das democracias do welfare state, nas quais os movimentos sociais organizados conseguiam penetrar de forma mediada (majoritariamente por meio de representações políticas social-democráticas) nas instâncias institucionais do regime e pressionar pela implementação de suas posições, as tais democracias blindadas têm seus núcleos políticos decisórios (ministérios, secretarias, parlamentos, tribunais etc.) praticamente impermeáveis às demandas populares, mesmo as de viés reformista. Ademais, guardando uma autonomia quase absoluta em relação aos processos eleitorais e, portanto, livres de qualquer tipo (ainda que mínimo) de controle popular, certos organismos do Estado responsáveis pelas questões consideradas estratégicas (como os bancos centrais, agências reguladoras etc.) tornaram-se monopólios inquestionáveis dos representantes políticos e prepostos comerciais da classe dominante – Convém lembrar, ainda, da imensa interferência política nos países europeus de entidades supranacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE), as quais não estão sujeitas às legislações e controle político-institucional de nenhum dos estados nacionais nos quais atuam.

Em função de aspectos como a força do poder econômico e midiático nos processos eletivos e de legislações eleitorais altamente restritivas (na prática) aos pequenos partidos (ditos “ideológicos”) que não aderem às grandes coalizões do pleito, os poderes Executivo e Legislativo – para não falar do Judiciário – parecem a cada dia ter menos poros pelos quais poderiam adentrar representações políticas genuinamente vinculadas aos trabalhadores. Assim, na maioria dos casos, essas democracias blindadas tem sua lógica de reprodução baseada em uma alternância (revezamento) no governo entre dois grandes blocos político-partidários os quais comungam uma adesão (aberta ou tácita, dependendo do caso) aos pontos axiais da plataforma neoliberal (redução dos gastos públicos com a “questão social”, privatizações, pagamento religioso da dívida pública, cumprimento dos acordos e contratos internacionais etc.), ainda que os graus, mecanismos e retóricas da aplicação destes pontos variem de acordo com o bloco político-partidário que momentaneamente se encontra à frente do Estado. Perpetuando a hegemonia do grande Capital na “sociedade política” – hegemonia esta que, dialeticamente, é construída a partir da “sociedade civil”– essa alternância governamental entre esses dois blocos, entre essas duas grandes alas de um grande “partido da ordem”, se aproxima, cada vez mais (em especial neste início de século), daquilo que Domenico Losurdo, observando o sistema eleitoral americano, definiu como uma espécie de “monopartidarismo competitivo”:

“Por um lado, no plano jurídico, toda uma série de normas e de casuísmos dificulta a apresentação de candidaturas fora dos dois partidos oficiais; por outro, as grandes empresas de televisão são livres para convidar aos debates por elas organizados os candidatos considerados merecedores de atenção e para excluir os candidatos de risco para o sistema e a ideologia dominante. E assim a competição eleitoral se reduz a um duelo televisivo e midiático entre dois contendentes. Confrontam-se dois programas diversos? [..] Os dois candidatos oficiais remetem não só a um mesmo partido político, mas também a mesma classe social.” (LOSURDO, Domenico. “Prefácio à edição brasileira” in ____. Democracia ou bonapartismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ São Paulo: Ed. UNESP, 2004, p. 11)

Parece-nos que, via de regra, um desses blocos políticos do regime é composto por partidos tradicionalmente identificados com as forças conservadoras (de direita), enquanto o outro é capitaneado por um ou mais partidos (social-democratas e/ou eurocomunistas) que, embora vinculados historicamente à classe trabalhadora e às suas demandas por melhorias sociais, passaram por um processo de “transformismo” no qual uma plataforma política de cunho reformista (mais ou menos radical, dependendo do caso) deu lugar à aplicação, quando no poder, de um programa essencialmente contrarreformista (mesclado a políticas públicas focalizadas, os chamados programas sociais compensatórios). Substituindo uma política de “pacto social” por outra de “concertação social”, tais partidos de “esquerda” costumaram (costumam) manter sua capacidade de direção sobre os setores mais organizados dos trabalhadores (em especial sobre o movimento sindical), o que acaba por contribuir para um processo de “apassivamento” dos setores subalternos da sociedade. Face aos movimentos sociais e organizações políticas que se opõem frontalmente ao projeto contrarreformista, o regime democrático-liberal blindado responde com a marginalização político-institucional e a criação/aplicação de diplomas legais (formulados de modo totalmente casuístico) que restringem cada vez mais as liberdades de manifestação popular.

É esse tipo de regime, uma democracia burguesa blindada, que comumente executa, com a tranquilidade de um passeio vespertino, a transferência de segundos eleitorais dos candidatos dos trabalhadores para os candidatos da ordem, tal como ocorreu quarta-feira na propaganda eleitoral do Rio de Janeiro. Se aos últimos tudo parece ser permitido, aos primeiros o regime endereça suas múltiplas armas. O “crime eleitoral” de Cyro Garcia foi o de evidenciar, nos seus parcos segundos, a própria natureza do regime democrático atual, expondo aos eleitores o caráter de classe de um dos candidatos da ordem e queixando-se do fato dele, Cyro, não ter sua campanha coberta pela imprensa e nem acesso aos debates de TV. Ao puni-lo, o TRE não fez senão atestar a veracidade das palavras de Cyro. Não satisfeitos com uma legislação eleitoral que impele os candidatos a realizarem o maior número de alianças possível – em busca de um maior tempo de televisão – e que é descaradamente formatada para reproduzir o quadro parlamentar vigente – já que é o número de parlamentares da coligação partidária o critério central tanto para a definição do tempo de propaganda televisiva a que terão direitos os candidatos, quanto para obrigar os canais de TV a convidá-los para os debates –, o que os juízes do TRE exigiram de Cyro foi o silêncio acerca dos princípios absurdamente antidemocráticos que vertebram as eleições nas democracias burguesas contemporâneas. Nitidamente, o recado dado pelos juízes do TRE a Cyro Garcia é de que se pode até, com a devida moderação, criticar as “propostas” de um ou outro adversário do “jogo democrático”, mas jamais as regras deste jogo. Não é de “bom alvitre” retirar o véu dos candidatos da ordem e mostrar a classe social que se encontra por detrás deles; em hipótese alguma, é permitido dizer que é esta classe que apita o jogo. Em um ordinário gesto, o regime deixou claro que não tolera nem sequer alguns poucos segundos dedicados a desvendar a sua própria natureza.