Pular para o conteúdo
TEORIA

Carlos Nelson Coutinho (1943-2012)

Alvaro Bianchi

Acabo de receber a triste notícia do falecimento de Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), um intelectual marxista polêmico e sempre aberto ao debate democrático de ideias. Muito jovem, Carlos Nelson entrou em contato com a obra de Georg Lukacs, chegando a se corresponder com ele, e Antonio Gramsci escrevendo sob a inspiração desses autores alguns ensaios notáveis de crítica cultural. Mais tarde foi um dos responsáveis pela tradução e publicação da primeira edição da obra de Gramsci no Brasil, a partir de meados dos anos 1960, e pela nova edição, que ele chamava de “crítico-temática”, a partir do final dos anos 1990. O reconhecimento desses textos foi eclipsado pela enorme repercussão de seu ensaio sobre a democracia como valor universal, provavelmente, o texto mais discutido do marxismo brasileiro.

Encontrei pela primeira vez pessoalmente Carlos Nelson em um seminário organizado por Marcos Del Roio, realizado no campus de Marília da Universidade Estadual Paulista, creio que em 2007. Surpreendeu-me o fato dele e Edmundo Fernandes Dias, os quais tinham importante polêmica sobre a recepção de Gramsci no Brasil, conversarem fraternal e animadamente durante todo o seminário. Percebi depois que isso era um traço importante da personalidade de ambos.

Alguns meses depois entrei em contato com Carlos em busca de alguns artigos para uma coletânea sobre os estudos gramscianos no Brasil, a qual seria publicada na Itália. Mais tarde, quando meu livro O laboratório de Gramsci (São Paulo: Alameda, 2008), foi publicado, Carlos Nelson tomou a iniciativa de me escrever, dizendo-me que o havia lido rapidamente e gostado dele, mas que queria defender sua edição dos Cadernos do cárcere de Gramsci das críticas que eu havia feito e questionar em alguns pontos minha interpretação. Mantivemos desde então correspondência da qual, infelizmente, perdi recentemente a maior parte do registro.

Minhas pesquisas sobre a obra de Gramsci tiveram como impulso inicial a insatisfação com a leitura, de matriz eurocomunista, que ele havia exposto em seu livro Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999). Não estranhei, assim, que ele não concordasse com muitas das coisas que havia escrito. Mas o que me surpreendeu foi sua atitude aberta e fraterna para discutir as evidentes diferenças. Mesmo sabendo de nossos desacordos teóricos e políticos, Carlos Nelson aceitou ir até o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, em fevereiro de 2009, para discutir meu livro sobre Gramsci e discutir com jovens pesquisadores da pós-graduação seus projetos de pesquisa.

Em uma quente tarde de fevereiro o auditório do IFCH ficou lotado para o debate, com estudantes e professores de pé ao fundo e gente sentada no corredor. Carlos Nelson foi de uma generosidade sem limites e começou dizendo que meu livro sobre Gramsci era “o segundo melhor publicado no Brasil” e que a “modéstia impedia que dissesse qual era o primeiro”. Sempre que nossas discussões ficam mais intensas Carlos tirava essa da cartola fazendo rir a todos. Como era de seu hábito destacou na discussão aquilo que nos unia, particularmente a crítica à interpretação liberal que Norberto Bobbio havia feito do marxista sardo. Mas também não deixou de apresentar suas diferenças: criticou o que considerava ser uma excessiva ênfase da minha parte no conceito de guerra de movimento e a aproximação que eu fazia entre a obra de Gramsci e a de Leon Trotsky. Também não perdeu a oportunidade para defender sua concepção de “reformismo revolucionário”.

Como sempre, Carlos Nelson proferiu candidamente palavras duras, de um jeito que provavelmente só baianos de nascimento e cariocas por adoção são capazes de fazer. Ouviu também a crítica forte a suas ideias, as quais já esperava, enquanto mexia no bigode e olhava para um horizonte imaginário. Seu reformismo revolucionário, é bom que se diga, não abandonava formalmente a ideia de revolução, como muitos apressadamente interpretaram, mas condicionava esta a um longo processo de gradual acúmulo de forças – reformas –, o qual afastava a ruptura da ordem para as calendas gregas. No fundo essa é uma concepção kaustkiana, argumentei, sem que ele rejeitasse a ideia.

A conversa continuou ao final do debate e mais tarde se prolongou no jantar. Carlos Nelson nunca foi um dirigente partidário, mas passou pelo PCB e pelo PT, até chegar ao PSOL. Em 2009, a ressaca eleitoral do fracasso eleitoral de seu partido em 2008 era grande, assim, como sua insatisfação com má qualidade do debate político no PSOL e com as disputas fratricidas instaladas em seu interior. Como muitos, comparava a trajetória de seu partido com a do PT para chegar a conclusões pouco otimistas a respeito. Tinha mais dúvidas que certezas, mas ao contrário de muitos intelectuais que veem o aprtidarismo como um bom negócio, Carlos Nelson sempre esteve num partido e assim ficou.

Nos últimos anos, Carlos Nelson tornou-se um dos principais críticos dos governos petistas, caracterizando-os como governos de contrarreforma, uma analogia com a reacionária contraofensiva da Igreja católica aos movimentos protestantes do século XVI. Retomava e reelaborava, desse modo um conceito de seu querido Gramsci, para explicar a ausência de reformas sociais significativas e o empobrecimento da vida política que haviam caracterizado o governo Lula. Carlos não fazia concessões ao senso comum petista e disparava firme recusando qualquer apoio a um partido no qual até pouco tempo atrás havia depositado grandes esperanças.

O Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, liderado por Chico de Oliveira e Ruy Braga, na época, organizou uma série de discussões sobre o governo Lula, as quais culminaram em um seminário internacional, chamado Hegemonia às avessas e um livro com o mesmo nome do qual Carlos Nelson era um dos autores mais destacados (São Paulo: Boitempo, 2010). A radicalização política de Carlos Nelson era notável e para muitos surpreendente. Até mesmo para ele. Uma vez me perguntou: “você acha que hoje eu estou mais à esquerda? Tenho a impressão de que sempre estive no mesmo lugar”. “É que os outros se mexeram para a direita, Carlos”, brinquei. E relembrando uma piada que Valério Arcary contava sobre as mudanças de partido de Carlos Nelson completei: “mas nem pense em entrar no PSTU. Sempre que você entra num partido ele vai para a direita. Você é um tremendo pé frio!”

Nosso último encontro foi em 2011, de novo em Marília. Desta vez quem fez a defesa do reformismo revolucionário foi Raúl Burgos um amigo argentino que está muito longo de ser confundido com um sotero-carioca. Burgos questionou enfaticamente que uma ruptura revolucionária fosse possível, fez as menções de praxo ao mito do assalto ao palácio de inverno – como se a revolução bolchevique tivesse sido apenas isso – e apresentou como alternativa o reformismo revolucionário. Argumentei fortemente que não havia sentido em trocar uma experiência histórica bem sucedida por uma mal sucedida. Entre o sucesso dos bolcheviques e o fracasso da social-democracia alemã é melhor ficar com os primeiros.

Mas não se tratava apenas de uma discussão sobre as alternativas do passado e sim sobre as do presente. Aonde o reformismo revolucionário havia levado a esquerda brasileira? Carlos Nelson interveio no debate argumentando que o PT por um breve tempo, após a derrota eleitoral de 1989, havia se movido na direção do reformismo revolucionário, mas depois sucumbiu ao simples eleitoralismo. Mas meu amigo havia, a meu ver, lido mal a realidade. A derrota de Lula não abriu o caminho para qualquer perspectiva revolucionária, ainda que fosse uma reformista, como ele queria. A eleição de Collor aplainou a estrada para a perseguição aos dissidentes, o cru eleitoralismo e o domínio dos gabinetes sobre o partido. 1989 não havia sido o fim do começo e sim o começo do fim. O breve interregno reformista revolucionário não havia, senão, preparado o caminho para esse fim. O reformismo revolucionário não deixava, por isso, de ser parte dessa trajetória.

A discussão tornou-se áspera e no dia seguinte Carlos Nelson aproveitou sua conferência para voltar ao tema e, desta vez, questionar a aproximação que eu tinha feito entre as ideias de Gramsci e as de Trotsky. E mais faíscas voaram, perante o olhar estupefacto dos convidados italianos que não entendiam o que estava acontecendo. Nunca afirmei que Gramsci foi trotskista, mas escrevi repetidamente que o marxista sardo não havia fechado “a questão Trotsky” em seus Cadernos do cárceree que as últimas notas que escreveu na prisão dão a entender uma importante mudança de opinião antes mesmos dos processos de Moscou. De todo modo o importante era destacar que Gramsci nunca foi stalinista, e isso fica claro em qualquer leitura feita com olhos abertos, e que nunca abandonou a estratégia revolucionária ou a ideia de insurreição, o que também fica claro quando não se recorta o texto gramsciano ao bel prazer.

Essa foi a última vez que nos vimos. Depois mantivemos a troca de e-mails de sempre. Na última delas eu lhe mandei um abraço e os parabéns pelo título de professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e avisei que, infelizmente, não poderia ir ao rio assistir a cerimônia. Na rápida resposta ele comentou que havia recebido e gostado do livro sobre os estudos gramscianos no Brasil, motivo de nossa primeira correspondência, que finalmente havia sido publicado na Itália. Amigos comuns já me haviam dito que se encontrava doente e lutava bravamente pela vida. Ainda lhe escrevi, há poucos dias, comentando o lançamento da edição inglesa de seu livro, mas desta vez quem respondeu foi sua companheira, informando sobre o tratamento o qual lhe deixava muito cansado. E ontem recebi a notícia de que o fim se aproximava e hoje de manhã que ele havia chegado.

As diferenças de Carlos Nelson com o PSTU eram notáveis. Ele nunca as escondeu, nem o PSTU as ocultou. Mas também deixou claro que reconhecia a importância de nosso partido na vida política brasileira, seu destacado papel nas lutas dos trabalhadores e sua intransigência nos princípios. O firme compromisso com o socialismo fazia com que Carlos Nelson se sentisse um vizinho; incômodo e incomodado, às vezes, mas ainda assim disposto a não mudar sequer de calçada. E por isso sempre que nos encontrávamos lá pelas tantas fazia a pergunta: “será que desta vez nossos partidos vão estar juntos?”

Esquecer as diferenças que tivemos seria desrespeitar sua memória e uma ofensa a alguém que sempre disse o que pensava. Os mais próximos o lembrarão como uma personalidade exuberante e amigo fraterno. Mas é preciso não esquecer que Carlos Nelson Coutinho foi durante 50 anos um comunista e sempre se definiu desse modo. Mudou de siglas, mas não de lado. Em um país no qual o transformismo virou um fenômeno político de massas, quantos poderão ao final de sua vida dizer a mesma coisa?