Pular para o conteúdo

A ciência do Imperialismo

Por: Raquel Varela*, colunista do Esquerda Online
*Preservamos a língua de origem da autora, português de Portugal

Vivemos de ideias feitas. Todos nós. Nas nossas áreas conseguimos mais ou menos resistir à pressão do pré-conceito e do provincianismo, mas não é fácil. Desde logo é, em virtude do tempo limitado, impossível termos um sentido crítico sobre tudo. É assim que confiamos nas recomendações de saúde das revistas ou nas imagens de uma notícia, ou nas indicações que um transeunte nos dá na rua. Isso não me choca – nem o mais obsessivo conseguiria viver em permanente sentido critico. O que me incomoda, cada vez mais, é a determinação com que assumimos posições ou verdades sobre assuntos sobre os quais temos poucas evidências. Abraçamos hipóteses sem cautela, não as chamamos hipóteses mas verdades inquestionáveis, não vamos para um caminho onde nos enviaram com calma, porque pode estar errado, vamos com determinação.

Vem isto a propósito das minhas reflexões sobre a conferência de História Global e Mundial que teve lugar este fim de semana, na maravilhosa cidade Budapeste. Porque a conferência foi aberta por uma palestra inaugural do Tamás Krauz sobre Lénine.

Foi isso mesmo, a que é hoje a maior conferência do mundo sobre história global, financiada com dinheiro da ciência alemã, e na qual estavam investigadores de todas as áreas das maiores universidades do mundo teve na abertura o debate do seu livro sobre Lénine, que é hoje o livro mais debatido neste campo, premiado, e que deita por terra milhares de banalidades que se escreveram em décadas de liberalismo, entre elas a maior, Lénine teria, em pensamento e acção, sido uma espécie de Estaline inicial (pelo contrário, o seu combate político e – sublinho – intelectual, a Estaline é central); ou a que diz que Lénine era um dirigente da acção, quando estamos perante uma das reflexões mais densas que existem no campo da teoria.

Para estas ideias sem consistência contribuiu não só o liberalismo, mas a própria memória construída pelos Partidos Comunistas afectos à URSS, que apoiaram a contra revolução russa estalinista, e reduziram o pensamento de Lénine a umas frases descontextualizadas, embrulhadas nuns resumos para consumo interno, que hoje estão (e bem!) no caixote de lixo da historiografia.

A conferência é na realidade alemã, britânica e norte-americana e holandesa, foram eles que me trouxeram (financeiramente) aqui. É em Budapeste porque é a cidade mais bonita do mundo, calma, ampla, o Danúbio acompanha-nos para todo o lado, escuta-se música clássica ou jazz em qualquer canto, tem os cafés – de origem imperial – mais acolhedores do mundo, perdoem-me o exagero, mas Budapeste é tudo.

Sabem o que vi na conferência? Uma grande desgraça, consumada, que nos últimos anos já me tinha vindo a incomodar. A distância entre a ciência que se produz nos países centrais e periféricos é cada vez maior – a história global do trabalho é cada vez mais uma história realizada por quadros dos países centrais ou quadros dos países periféricos que são captados para as melhores universidades dos países ricos, e que fazem ciência de excelência, porque aí têm salários, reconhecimento e condições de trabalho dignas.

A globalização tem servido na verdade para sorver quadros da periferia, é assim que assisti a uma das melhores reflexões arrasadoras sobre a UE feita por um colega húngaro -József Böröcz – trabalhar nos EUA (em Portugal seria trucidado ao dizer que a UE é um projecto imperialista de captação de recursos periféricos – foi publicado pela Inglesa Routledge Press, e nos EUA tem um lugar permanente no quadro de professores e o dinheiro que quer e precisa para estudar e ensinar); uma sobre contornos da demografia mundial por um albanês radicado em Inglaterra, na LSE; outra sobre os fluxos migratórios mundiais realizado por uma equipa húngara num co-projecto alemão, e por aí fora, podia dar aqui uma dezena de exemplos.

Volto ao meu argumento inicial – não é que os países centrais captam quadros críticos a quem “lavam” o cérebro para se adaptarem aos cânones liberais (quem vive nos países pobres adora contar esta versão mítica), é que eles dão-lhes liberdade e dinheiro para produzirem trabalhos importantíssimos e sérios, críticos. É a famosa transferência de recursos.

Países como o Brasil, pela escala, têm resistido a isso porque, entre outras razões, durante duas décadas houve recursos públicos para pós-graduações mas também hoje o Brasil está numa deriva de cortes que a prazo vai fazer o que fez no sul da Europa ou na Europa de Leste – acenar-nos com financiamentos que nos obrigam a mudar de malas e bagagens rumo ao norte porque no sul os investigadores são mal pagos, carregados com burocracia, sem condições mínimas de trabalho (gabinetes decentes, com luz agradável, silêncio, temperatura acolhedora, etc), e às tantas temos que escolher entre chuva e má comida e tempo e condições para trabalhar a sério, e condições de trabalho ultrajantes.

E liberdade real de investigação, que, ao contrário do que acena o senso comum, é pouca nos países ricos, mas maior do que nos países periféricos, desde logo porque a escassez de recursos torna a competição no sul mais feroz e portanto é maior a selvajaria de luta por esses recursos, com degradação dos locais de trabalho também ao nível das relações pessoais.

Não são só os melhores operários, cirurgiões e enfermeiros que rumam ao norte, é também quem os ensina nas faculdades, os professores. E isso significa perder quadros hoje, já formados, mas também décadas de riqueza, ou seja, capacidade de formar novos quadros (é esse o papel de um professor). A pouco e pouco a mediocridade (e uns loucos que não conseguem viver sem goulash, moqueca e sardinhas) ficam no sul, e a excelência ruma ao norte.

Conheço o Tamás há alguns anos, foi ele – como director da Revista Consciência – que me trouxe pela primeira vez a Budapeste. Desde então temos estado juntos, em vários lugares e espaços de reflexão. Tornámo-nos amigos não só porque gostamos muito de conversar mas porque o Tamáz é uma pessoa deliciosa, de um grande humanismo – gosta de boa comida, tem um vigor extraordinário, aos 70 anos, em parte ganho no seu disciplinado exercício às 7 da manhã nos banhos do Danúbio, banhos (São ) Lukacs, a cuja diretora ele, com muita graça, pede para chamarem banhos György Lukács IL, em referência ao grande intelectual marxista húngaro.

É um intelectual radical, de origem judia, que abraçou um caminho que tem influências leninistas, trotskistas, auto-gestão da Jugoslávia (algo com peso na esquerda no Leste) e sistema-mundo de Wallerstein. Além de uma inspiração intelectual, e portanto para mim um professor também, ele é um crítico feroz do capitalismo, e o seu inglês, quando reflecte sobre a deriva burocrática e ditatorial do “socialismo” na URSS e na Hungria é sempre interrompido pelas palavras, não sei se russas se húngaras, “kaput”, “idiot” “absurd” e “katastrof”. Ontem disse-lhe que essas são as 4 palavras que ele mais diz – rimos, muito. Isto depois de termos entrado em 5 cafés e só no quinto ele ter dito, é aqui que ficamos, aqui o café é bom, e café tem que ser bom.

Eu vivi com entusiasmo a busca pelo melhor café, levo muito a sério pessoas que procuram o melhor da vida e não se contentam com qualquer porcaria, socialismo é abundância de liberdade, igualdade e qualidade de vida ou não é socialismo. Krauz é uma presença regular na TV Húngara e director do centro de história russa da Universidade de Budapeste. Estava a abrir uma conferência patrocinada pelo George Soros, um especulador financeiro mundial, que sabe que o Tamás é o caminho para captar quadros de esquerda para os países centrais.

Soros está disposto a pagar o preço de Lénine ter entrado na academia, pela mão de Tamás, porque com ele vêm recursos. Que não são todos domesticados na Academia, como se pensa, trabalham, pensam, ensinam, Soros sabe que o poder está nas empresas e no Estado e o poder suporta académicos radicais, desde que fiquem na Academia. A conclusão desta curta reflexão é, sem mediações, a seguinte: a médio prazo a austeridade na ciência vai esvair os países periféricos de recursos que levaram décadas a formar. Quem sai leva consigo o que sabe. Chamam-lhe globalização. Chama-se, explicou Lénine, imperialismo.