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OPRESSÕES

OPINIÃO | Parem de nos matar

Rio de Janeiro – Mães e familiares de jovens negros mortos por policiais protestam contra a violência com ativistas da Anistia Internacional em frente à Igreja da Candelária (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Numa semana movida a ovos e muito sangue, a pergunta que não cala é: Até quando contaremos com a esperança?

Por: Manuela Nascimento[i], de Salvador, BA
*Manuela Nascimento é professora Ms. em História, feminista negra, socialista e do conjunto de mulheres de luta do PSOL

As notícias da semana que passou deixaram mais um rastro de sangue: 31 pessoas assassinadas em Salvador e Região metropolitana, segundo dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA), no último final de semana, de 4 a 6 de agosto. Quatro mulheres e 27 homens. Seis quilombolas foram assassinados na comunidade de Iuna, município de Lençóis no domingo (06). Como diz a Ouvidora Geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia, a socióloga Vilma Reis, “Estamos na linha de tiro”. Tiros esses que não são de ovos, como os que foram jogados no atual prefeito da cidade de São Paulo, João Doria (PSDB), na segunda-feira, dia 07 de agosto, na ocasião em que foi receber o título de cidadão soteropolitano, concedido pelo atual prefeito da cidade de Salvador, ACM Neto (DEM), e por seus correligionários, na Câmara Municipal da cidade.

No mesmo dia em que Doria foi literalmente “ovacionado” na cidade, soubemos de mais uma chacina na comunidade quilombola de Iuna, que já tinha tido outra liderança assassinada no dia 16 de julho desse ano. O senhor Lindomar Fernandes Martins foi assassinado em circunstâncias ainda não esclarecidas pela polícia.

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Território Quilombola de Iúna fica no distrito de Tanquinho, em Lençóis (Foto: Incra/ Divulgação)

Esses assassinatos no campo somam-se a outros que têm ocorrido na Bahia e em outros estados do país, como o do dia 14 de julho de José Raimundo Mota de Souza, liderança da comunidade quilombola de Jiboia, município de Antônio Gonçalves, no Sul da Bahia. Também, o do assassinato de dez sem-terra na chacina de Pau d’Arco, no dia 24 de maio, no estado do Pará. Os treze policiais militares acusados de envolvimento na chacina que estavam sob prisão preventiva foram soltos na madrugada dessa quarta-feira (09).

Ainda, duas chacinas já ocorreram nesse ano em Colniza (MT), uma em 19 de abril, onde nove trabalhadores foram mortos e outra em 20 de maio, quando pelo menos dez pessoas foram assassinadas por pistoleiros. O ano de 2017 também já viu uma barbárie contra os indígenas Gamela, no Maranhão, no dia 30 de abril, quando ao menos treze indígenas foram feridos, dois tiveram as mãos decepadas e cinco foram baleados. A certeza da impunidade arrancou o freio dos mandatários desses crimes, que se multiplicam nesse ano trágico e contam com a cumplicidade de uma série de portarias e decretos que têm retirado o direito à terra e esmagado as comunidades quilombolas, os territórios indígenas e os sem-terra.

Estamos sendo massacradas e massacrados e ainda há quem pense que jogar ovos no Doria seja uma “ação violenta”, ou que a recepção soteropolitana ao prefeito que coordena ações violentas sobre a cracolândia, que autoriza derrubada de prédio com gente dentro e sem aviso prévio e que acorda a população de rua com jatos de água fria no inverno, seja quase a grande e única notícia da semana que já começou jorrando sangue.

Não pretendo criar aqui uma hierarquia de relevância de assuntos, acredito que não podemos conceder a “paz social” que tanto desejam o Governo Federal ilegítimo, que saqueia o país, e o conjunto de políticos que descaradamente escolhem que crime querem enxergar ou esconder, ao vivo, em horário nobre e em rede nacional. Eles não podem ter paz. Também incomoda, e muito, aquela velha tática, que Malcolm X já nos alertava, de confundir a reação dos oprimidos com a violência do opressor, ainda mais num Estado que tem nos violentado de maneira perversa.

Mas, nada tem sido mais urgente no Brasil e digno de muito estardalhaço, do que os mortos que essa República produz ano após ano. Só em 2015, segundo os dados do último mapa da violência, foram mais de 59 mil jovens mortos no Brasil e isso parece não nos incomodar.

Como podemos continuar vivendo com um modelo de justiça que nega pela segunda vez um pedido de habeas corpus a Rafael Braga, o único preso e condenado político das manifestações de 2013 por porte de pinho sol e novamente condenado por “tráfico de drogas” por conta de, supostamente, portar 0,6g de maconha e 9,6g de cocaína e faz vista grossa a Breno Fernando Solon Borges, preso carregando 129kg de maconha, uma pistola nove milímetros e 199 munições de fuzil calibre 7,62, de uso exclusivo das forças armadas e retirado da cadeia por sua mãe, a desembargadora Tânia Garcia Freitas Borges, no Mato Grosso do Sul?

Como podemos continuar fechando os olhos ao racismo estruturante dessa justiça e sociedade brasileiras que conseguem banalizar o fato de que a cada cem pessoas mortas no Brasil 71 são negras? Como não nos incomodamos com o fato de que jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra” no país? Como uma taxa de homicídios que já era alta em 2007, cerca de 48 mil mortes, salta para quase 60 mil em 2015 e agimos como se o aumento da violência fosse um fenômeno de 2017? Como ficarmos tranquilas com índices alarmantes de morte de mulheres que de 2005 a 2015 caiu 7,4% para mulheres não-negras e cresceu 22% para as negras?

Mães de jovens mortos protestam contra violência policial, no Rio | Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil (22/02/2017)
Mães de jovens mortos protestam contra violência policial, no Rio | Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil (22/02/2017)

Como pode no estado da Bahia, que já tem registrados só de janeiro a maio desse ano quinze casos de feminicídio, constar nos dados estatísticos da Secretaria de Segurança Pública, liberados no dia 12 de julho, feminicídio zero? Como não sabermos que o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, mais de 600 mil presos em um sistema que oferece hoje 370 mil vagas, e que tem uma política de “guerra às drogas” que alimenta esse sistema com jovens e mulheres em sua maioria negr@s em condição de vulnerabilidade social absurda? E que ainda somos o país que mais mata travestis e transexuais no mundo? É ensandecedor.

Já faz tempo que estamos ultrapassando os limites de justiça e dignidade humanas. As  reformas e leis sancionadas pelo governo ilegítimo de Michel Temer (PMDB), como a PEC 55, que congela os gastos públicos por até 20 anos e libera nosso orçamento para o pagamento do maior esquema de corrupção que temos hoje; a dívida pública, a Reforma do Ensino Médio, que abre espaço para a privatização do ensino público no país; a terceirização, que já não era novidade no país agora liberada para atividades fins; a Reforma trabalhista, que pulveriza os direitos dos/das trabalhadoras quando prevê que o “acordado” valerá sobre o “legislado”, dentre outros absurdos; e a Reforma da Previdência, que é tratada na grande mídia como a salvação para a geração de milhões de empregos no país, atingirão com violência a população pobre, negra e indígena do país que depende das garantias dos direitos públicos, como o acesso a saúde, educação, aposentadoria, seguridade social e uma série de outros direitos duramente conquistados.

No primeiro sopro da crise, nos deparamos com uma miséria tão profunda que, na verdade, nunca deixou de existir. Conseguimos mitigar muita coisa nos últimos anos. Só que quando essa gente que nunca deixou de mandar no país, mas que parece que foi apresentada no trágico 17 de abril de 2016, resolveu que estava na hora de acabar com a “mordomia”, estamos nós aqui, bestificad@s com uma guinada arrasadora à direita no Brasil. Temos uma burguesia colonial, parasita, conservadora, rentista e antinacional, que não tem qualquer pudor para manter sua taxa de lucratividade em alta e deixar que esperemos mais um pouco para que possamos “crescer”.

Sempre nos disseram, e a grande mídia golpista do Brasil é especialista nisso, que devemos acreditar no futuro, que as “projeções” são de melhora da vida do brasileiro. Foi assim, inclusive, com o desmanche da escravidão no século XIX, O que mais tivemos foram legislações que apostavam no futuro, de que lá a escravidão acabaria pacificamente. Se as populações negras escravizadas tivessem esperado e depositado suas esperanças nas mãos dos brancos “bem-intencionados”, era bem provável que a escravidão, que caiu de madura e pela rebeldia, desobediência e insubordinação dos escravizados, livres e libertos, durasse mais um pouco. Como “boa intenção” era inclusive nome de navio negreiro, não podemos fiar nossas expectativas na boa vontade do outro: a esperança joga contra nós.

Em um momento de violência escancarada e enquanto temos uma Câmara de Deputados que disse que é necessário manter o Temer, que é o primeiro presidente denunciado por corrupção no exercício do cargo, para manter a estabilidade que só eles veem, e que começam e aprovar em suas comissões o chamado “distritão” de uma reforma política nefasta e que pode ser a cereja do bolo para o fim da oposição e da “democracia” no país, esperar por um milagre em 2018 pode ser tarde demais. Mais do que isso, manter suas bases militantes e sindicais silenciadas e fazer campanha eleitoral pra 2018 com um conjunto de golpistas que já demonstraram que não estão dispostos a largar o osso tão cedo é leviano.

A esperança está jogando contra nós, e já nos deu muitos sinais de que não pretende fazer tudo diferente e reverter a tragédia que foi instaurada no país.

E aí? Vão continuar a acreditar e esperar ou vamos tomar as nossas vidas nas mãos e OCUPAR E RESISTIR?

FOGO NOS CANAVIAIS E OVO “GORO” NA CARA DOS CANALHAS!! 

[i]Mini Biografia:

Manuela Santana Nascimento

Natural de Santo Antônio de Jesus, cidade localizada no Recôncavo Sul da Bahia e atualmente residindo em Salvador-BA, é professora de História licenciada pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB/ Campus V e mestra em História Regional e Local pela mesma universidade. Desenvolveu pesquisas sobre populações negras, manifestações de fé e práticas de cura e atualmente pesquisa o movimento negro contemporâneo na Bahia. Foi professora substituta no IFBA-Campus Salvador (2015-2017) e filiou-se ao PSOL em março de 2017 por acreditar que precisamos garantir a existência de um partido de esquerda que tenha o socialismo como horizonte político e entenda que o combate ao racismo, machismo, lgbttfobia e o racismo religioso são fundamentais para uma revolução no Brasil.

Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil (22/02/2017)

*O texto reflete a opinião do autor e, não necessariamente, a linha editorial do Esquerda Online.