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EDITORIAL

Aumentam as tensões econômicas e políticas na China

Por Waldo Mermelstein, de São Paulo, SP

 

Com a janela de dois meses aberta pela transição na presidência americana, vários focos de instabilidade surgiram ou se tornaram mais agudos no mundo.
A Ásia, pela sua importância econômica e geopolítica, é uma dessas áreas. Na campanha, Trump reiterou que a preocupação fundamental dos EUA deveria ser com seus assuntos internos e prometeu revisar ou repudiar diversos tratados de livre comércio assinados pelo país. Eleito, confirmou sua negativa em assinar o Tratado Trans-Pacífico. Além disso, prometeu represálias contra as importações chinesas, acusando o país asiático de manipular o câmbio para torná-las mais competitivas.

A eleição de Trump acentuou as incertezas entre as principais potências econômicas do mundo, em particular sobre a possibilidade de uma guerra comercial entre China e EUA.

A diminuição no ritmo de crescimento do comércio mundial é uma realidade que foi potencializada pelo triunfo de várias alternativas protecionistas, em especial o chamado Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia), o fortalecimento dos populismos de direita na Europa e, em especial, a vitória de Trump nas eleições americanas.

 

Mudanças e contradições estruturais na economia chinesa

 

A China teve uma evolução particular depois do auge da crise econômica mundial deflagrada em 2008. Ao contrário dos países centrais mais poderosos como os EUA, Reino Unido, Alemanha e França, a China, por meio de uma política de estímulos governamentais escapou das consequências mais duras da crise e manteve seu crescimento em altos níveis.

No entanto, várias contradições tem se acumulado, diminuindo seu ritmo de crescimento e aumentando suas contradições.

Entre elas:

–  A crise ambiental na China atinge proporções dramáticas e causa grandes custos extras e sofrimento extraordinário para a população. Sinteticamente, 40% dos rios do país estão tão poluídos que não podem ser utilizados para o consumo humano, e 57% das águas subterrâneas têm qualidade ruim ou péssima; 20% das terras aráveis chinesas foram inutilizadas pela poluição industrial; a poluição atmosférica conhece níveis cada vez mais drásticos, tornando o ar quase irrespirável, causando a paralisação de atividades econômicas em cidades como Beijing e cerca de 1,6 milhões de mortes anuais por essa causa.

– A diminuição no ritmo de migração do campo para as cidades e o aparecimento de uma relativa escassez de mão de obra em alguns setores se somaram a um fator central: a crescente onda de greves. Com isso, o salário mínimo no país (que é o que ganham quase todos os cerca de 270 milhões de trabalhadores migrantes) subiu cerca de 4 vezes, segundo a OIT, tornando seus salários bem mais altos do que os de países vizinhos como Vietnam e Bangladesh, por exemplo.

Por outro lado, a taxa de lucro no país caiu de forma marcante depois do pico nos anos 1990, o que diminui o incentivo aos investimentos externos e mesmo chineses. Vários autores marxistas assim o assinalaram[1], utilizando várias formas de análise e de cálculo. Por exemplo, dois marxistas chineses encontraram uma taxa de lucro média excepcional de 25% a 30% nos anos 90 e no início dos anos 2000 (o dobro da média dos EUA, usando a mesma metodologia), e uma queda para 17% em 2013.

 

Uma conjuntura econômica instável na China

 

Há várias manifestações conjunturais desse novo momento da economia chinesa, como as desproporções no crescimento regional, as bolhas especulativas, o excesso de capacidade produtiva em vários setores e as instabilidades crescentes de uma economia que segue crescendo a 6,8% ao ano, mais do que quase todas no planeta (e na dimensão chinesa só a Índia pode servir de comparação), mas menos do que a própria China nos últimos dez anos.

Ha dois anos começou uma expressiva fuga de capitais. Depois de acumular um gigantesco saldo de 3,9 trilhões de dólares em 2014, esse montante se reduziu a cerca de 3,1 trilhões neste ano.  As incertezas com a diminuição do crescimento do país, a paulatina elevação dos juros praticados pelo Tesouro americano que tornam as aplicações nos EUA mais vantajosas e a campanha contra a corrupção desfechada pelo novo primeiro-ministro Xi Jin Ping atemorizaram a nova burguesia chinesa. Buscaram o refúgio em aplicações em paraísos fiscais, em imóveis, clubes esportivos ou estúdios de cinema. Em novembro, com as incertezas quanto à futura relação com os EUA, a fuga de capitais chegou a incríveis 70 bilhões de dólares.

A partir deste momento, as autoridades monetárias chinesas ampliaram o discreto controle de capitais que já exerciam. Segundo o jornal South China Morning Post, em sua edição de 9/12,  várias medidas foram adotadas. Entre elas, a necessidade de autorização para remessas de mais de 5 milhões de dólares ao exterior, a proibição de investimentos externos acima de 10 bilhões de dólares e de fusões e aquisições acima de 1 bilhão de dólares em áreas sem relação com a atuação central da empresa ou em imóveis. É preciso ressaltar que a restrição aos investimentos externos, em princípio, não atinge a aquisição de empresas no exterior (como a Pirelli) e os investimentos apoiados pelo regime, como na nova Rota da Seda.

A moeda chinesa desvalorizou-se em até 15%, o menor nível desde a crise de 2008. Essa queda pode ajudar a recuperar a perda de competividade de seus produtos, mas uma desvalorização abrupta pode aumentar mais ainda a fuga de capitais.

 

As incertezas na transição para a “era Trump”

 

 

Por outro lado, a atenção na Ásia se volta para a nova política americana para a região durante a próxima presidência, que ainda não foi globalmente anunciada. Se alguns apressadamente interpretaram o abandono do Tratado Transpacífico como uma via livre para a influência chinesa em toda aquela área, em especial nos países menores e mais próximos, os fatos subsequentes indicam que a realidade é bem mais complexa.

A entrevista pessoal entre Trump e o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe já tinha indicado que os EUA procurarão manter o seu sistema de alianças econômicas e geopolíticas para conter a China.

Mas o telefonema da presidente de Taiwan para Trump marcou um claro sinal de que essa interpretação era equivocada. A comunicação com a liderança de Taiwan, apesar de seu conteúdo não ter sido revelado, é um marco diplomático inédito desde 1979. Desde então, apesar de todos os governos americanos terem continuado entregando bilhões de dólares em armamento ao regime taiwanês, uma regra não escrita é que nenhum contato oficial público entre ambos governos seria feito. A China trata o tema como altamente sensível, pois a ilha é considerada como parte do seu território, além de ter sido o lugar onde se refugiaram os restos do regime nacionalista derrotado na guerra civil de 1945 a 1949, quando a revolução chinesa triunfou. O porta-voz do Ministério das relações exteriores da China advertiu nesta semana que a mudança de posição em relação a Taiwan atingirá pesadamente a relação entre ambos os países.

Várias outras regiões se enfrentam ao controle despótico de Beijing, como o Tibete e Xinjiang, a imensa província ocidental de maioria muçulmana. Em Hong Kong, em 2014 ocorreu a chamada “revolução dos guarda-chuvas quando, por várias semanas, dezenas de milhares de habitantes se enfrentaram nas ruas às forças repressivas. O motivo foi a decisão anti-democrática do governo central de que as eleições para o governo da cidade, que goza de relativa autonomia, seriam feitas a partir de uma lista aprovada por Beijing. Foi a maior contestação ao poder central desde o massacre da Praça Tian An’men em 1989. No mês passado, em mais um ataque, a Assembleia Nacional, o parlamento chinês, decidiu que os parlamentares de Hong Kong que reivindicassem algum grau de autodeterminação para a cidade não poderiam assumir seus cargos. Dois deles foram impedidos de tomar posse e mais quatro estão sendo processados. Essas tensões se dão no marco de uma ofensiva contra as pequenas margens conquistadas por ONGs e personalidades defensoras de direitos humanos e na repressão de conflitos laborais, desde o começo do governo de Xi Jin Ping.

A ameaça de uma política americana mais dura em relação à China torna a situação mais tensa e aumenta a instabilidade em toda a região, em particular nos próximos 40 dias até a posse de Trump.

 

[1] Esses estudos podem ser encontrados nos trabalhos de Mylene Gaulard ( https://www.contretemps.eu/crise-capitalisme-chinois/), ou no de Esteban Ezequiel Maito (http://gesd.free.fr/maito14.pdf)