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Especiais
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Como me tornei um marxista

Carlos Zacarias de Sena Júnior, Professor do Departamento de História da UFBA

Há 200 anos, na região da Renânia, sul da Prússia, nascia o homem que viria a ser um do pensadores mais importantes da história da humanidade: Karl Heinrich Marx (1818-1883). Tive contato pela primeira vez com a obra de Marx em 1988. Antes disso, contudo, havia surgido em mim um sentimento de indignação contra as injustiças, algo que me permitiu ir ao encontro daquele que pautou a sua vida na construção de uma obra radialmente emancipatória. Como muitos sabem, qualquer sentimento contra as injustiças do mundo, quando compartilhado com outras pessoas, mais do que um importante elemento de autoconhecimento, é um primeiro passo no caminho da organização política, porque não se luta contra por justiça, sem consciência coletiva, sem consciência de classe.

Era meados da década de 1980, o Brasil atravessava um momento turbulento em sua história. Era a época da transição da ditadura à democracia, mas o primeiro presidente civil depois de duas décadas de generais-presidentes não despertava muita confiança, afinal José Sarney, vice-presidente de Tancredo Neves, não apenas tinha vindo do partido da ditadura, como havia sido líder do PDS, sucedâneo da ARENA no período da redemocratização e da pluripartidarização, iniciada em 1980.

Se havia turbulência na política, dado que Sarney tomou posse em substituição a Tancredo Neves que havia morrido antes de ganhar a faixa presidencial após ter sido eleito no Colégio Eleitoral do Congresso, no terreno social a coisa era ainda mais grave. Era época de hiperinflação, havia muitas lutas e as greves que espocavam a todo instante após duas décadas de sufocamento. Entre os 16 a 17 anos de idade, aquilo tudo me impactava, e muito embora eu não compreendesse quase nada, tinha muita curiosidade para aprender.

No plano político, o processo de abertura tinha trazido a novidade do Partido dos Trabalhadores (PT), muito embora os partidos comunistas ainda permanecessem proibidos. A novidade do PT, frente ao pouco que eu compreendia naqueles anos, ao tempo em que me despertava a curiosidade, provocava em mim uma sensação de estranhamento. Afinal de contas eram novos personagens que entravam em cena: homens vindos do movimento operário e de organizações que haviam lutado contra a ditadura, e de mulheres que eram protagonistas, todos muito diferentes dos austeros homens-brancos-engravatados dos tempos da ditadura. Mas havia também outras novidades: um orgulhoso movimento negro dava o ar da graça, muitas mulheres dirigiam lutas contra a carestia e começavam a levantar pautas feministas e os homossexuais começavam a ganhar alguma visibilidade através dos primeiros movimentos que se organizavam, como o Grupo Gay da Bahia (GGB), dirigido pelo antropólogo e professor da UFBA Luiz Mott.

Entre 1985 e 1986, ainda antes de conhecer Marx, tomei contato com obras de autores influenciados pelo marxismo, como Eduardo Galeano e Leo Huberman, entre outros. Por indicação do professor de Geografia, Zilton Rocha, um dos grandes mestres que tive na vida, uma nova página no caminho do conhecimento e da minha transformação em marxista começava a ser escrita em minha vida. Foi, contudo, depois da experiência de prestar o serviço militar obrigatório que a vontade de lutar contra as injustiças cresceu em mim. A atmosfera fortemente anticomunista presente nas Forças Armadas foi um fator de grande influência. Enquanto servi no 19º BC, um batalhão de infantaria na capital da Bahia, fiz amizade com pessoas que compartilhavam comigo daquela indignação frente às injustiças do mundo, então busquei obras que iam me pondo em contato com a realidade brasileira. Lembro que li, na época, Brasil, nunca mais e Olga, dois livros que me apesentaram um país desconhecido, como outros personagens, muitas lutas e uma imensa violência e injustiça perpetuada por décadas.

Durante os meus anos de juventude fui sempre um leitor voraz, especialmente de livros de literatura. Como era um adolescente tímido, usava uma parte do meu tempo livre para ler livros, obviamente que sem nenhum critério de qualidade. Havia lido de Agatha Christie à Sidney Sheldon, dos clássicos da coleção Vaga Lume a George Orwell, de Aldous Huxley a Júlio Verne, entre muitos outros autores. Quando saí do Exército e fui cursar o terceiro ano do ensino médio, minha vontade de aprender era algo irrefreável e um jovem espírito rebelde procurava algo de sistematicidade ao incipiente conhecimento que vinha, aos poucos, adquirindo. Foi do encontro de três ex-soldados do Exército, amigos que vieram comigo estudar no Colégio Águia em Salvador, com um jovem militante do PT, que surgiu o Grupo de Estudos Revolucionários da Bahia (GERBA). Através do GERBA, que não teve uma vida muito longa nem muita sistematicidade, tive contato, pela primeira vez, com a obra de Marx e Engels. Foi naquele ano de 1988 que li, pela primeira vez, o Manifesto Comunista. Diante de mim um novo mundo começava a ser desvelado. Enfim eu me encontrava com a melhor explicação do mundo e um efusivo e irrecusável convite de luta contra as injustiças.

Contudo não me tornei marxista apenas porque li Marx. Como diz Pierre Vilar, “Jamais alguém se torna marxista lendo Marx; ou, pelo menos, apenas o lendo; mas olhando a realidade em volta de si, seguindo o andamento dos debates, observando a realidade e julgando-a: criticamente”. Tornei-me marxista por observar a realidade e, mais do que isso, por sentir na pele um pouco das injustiças que havia no mundo. Por isso, também, tornei-me historiador, completando o vaticínio de Vilar que concluía sua ideia sobre de como alguém se torna marxista dizendo: “É assim também que alguém se torna historiador. E foi assim que Marx se tornou”.  (1) Mas apenas ser um historiador e marxista, ou um historiador marxista, não era suficiente.

Visto que era de uma família de classe média baixa que durante algum tempo empobreceu, as oscilações no nível da renda familiar me puseram em contato com realidades ainda mais duras do que a nossa, de modo que a diferença entre a pobreza experimentada pela minha família e a pobreza estrutural que envolvia e ainda envolve as grandes cidades brasileiras foi, para mim, um imenso fator de aprendizagem. Da convivência no meio de pessoas muito pobres e das transições abruptas que experimentei na vida, muito especialmente quando com uma bolsa fui cursar o primeiro e o segundo anos do ensino médio num colégio burguês de Salvador, que entendi uma parte das injustiças do mundo.  (2) Faltava, contudo, o engajamento e a sistematicidade, e estes vieram com o aprofundamento dos estudos e com a experiência na luta de classes.

Entrei no PT ainda em 1988. Fiz campanha para vereador para Geracina Aguiar e para prefeito para Zezéu Ribeiro, ambos do PT. No anos seguintes, entrei para o curso de História na Ucsal e para o curso de Ciências Sociais na UFBA. Queria ser sociólogo ainda mais do que queria ser historiador. Fiz grandes amizades nos dois cursos, especialmente no curso de História, de onde trouxe os amigos de toda a vida e terminei abandonando o curso de Ciências Sociais. A universidade não é um antro de esquerdistas como muitos julgam. Houve muitas greves na UFBA nas décadas de 1980 e 1990, mas as greves são feitas pelos trabalhadores e não por marxistas. Não obstante, os docentes organizados em partidos e aqueles que reivindicam o marxismo, são quase sempre os dirigentes das greves. Esse dado da realidade é uma demonstração de que o elemento consciente faz a diferença na luta de classes.

O fato, entretanto, é que, ao contrário do que se pensa, os marxistas são uma ínfima minoria na universidade. Nos cursos de ciências humanas, conhecidos por abrigar uma importante reserva crítica da sociedade, apesar da incontornável presença do marxismo, nunca houve redutos de marxistas, muito ao contrário. Na maior parte dos casos, os marxistas são figuras raras e bastante isoladas do conjunto do corpo docente. É verdade que há alguns marxistas que quase que só fazem militância na academia, mas há, também, principalmente, os que se reivindicam marxistas que não fazem militância alguma. Entre uns e outros, estão aqueles que buscam combinar a irrefreável tarefa de interpretar o mundo com a necessidade de transformá-lo e estes são, do meu ponto de vista, o que de melhor existe na universidade. Mas todos os marxistas não formam, em nenhuma hipótese, uma maioria como pensam os liberais e direitistas.

Foi com a disposição de aliar teoria e prática que me tornei docente da universidade. Primeiro da Uneb em 1994, depois da UFBA em 2010. Como marxista e alguém engajado politicamente, participei de todas as mobilizações que ocorreram neste período na categoria de trabalhadores a qual pertenço. Como militante marxista, dirigi muitas greves na Uneb (2000, 2002, 2003, 2007), ao lado de companheiros e companheiras muito valiosos. (3) Em duas circunstâncias (2000-2002; 2007-2009) fui dirigente da Associação de Docentes da UNEB (ADUNEB) e ainda participei de uma gestão da Regional Nordeste III do ANDES-SN (2000-2002). Neste período, nunca deixei de seguir estudando, porque um dos maiores ensinamentos de Marx é que devíamos duvidar de tudo e porque, como disse Lenin, não é possível prática revolucionária sem teoria.

Em 2000, rompi com o PT. No ano seguinte, ingressei no PSTU. Do ponto de vista da minha trajetória militante, a transição do PT para uma organização trotskista cumpriu um papel importante na minha formação. Como militante do PSTU, fui candidato a governador em 2002, única circunstância em que assumi uma candidatura a cargo eletivo. Nos anos seguintes, tive uma militância que oscilou entre um maior engajamento e algum afastamento para realização de estudos, especialmente do doutorado, cursado entre 2003 e 2007 na UFPE. Quando ingressei na UFBA em 2010, apesar de me manter vinculado ao movimento docente e ter participado do Comando de Greve em 2012 e 2015, e de ter integrado a chapa para a direção da Apub em 2012, optei por me manter afastado da militância sindical. Por isso, participei das equipes do blog Convergência e, posteriormente, do blog do Esquerda Online quando da ruptura que gerou o MAIS em 2016. Em 2017 o MAIS ingressou no PSOL e no ano seguinte, fundiu-se com a NOS para dar origem a Resistência. Neste percurso, nunca deixei de dedicar o melhor da minha atividade intelectual ao estudo da história, tendo o marxismo como escopo teórico fundamental. Também refinei meu gosto literário, sempre buscando combinar as leituras mais diretamente relacionadas ao trabalho, com os clássicos da literatura brasileira e universal, além de outras áreas de interesse.

Em 2005, Marx foi escolhido pelos internautas que navegavam no site da BBC de Londres, como o “maior filósofo de todos os tempos” (4). Para surpresa de muitos, após ser tantas vezes dado como morto e em tantas circunstâncias ser dito como obsoleto e anacrônico, o pensamento marxiano e o marxismo, por assim dizer, seguem sendo, como disse Sartre, a “insuperável filosofia do nosso tempo” (5). Há 200 anos do seu nascimento Marx permanecerá ensinando aos homens e às mulheres trabalhadores(as) do mundo que a libertação dos(as) trabalhadores(as) será obra deles próprios. Com esta lição, Marx seguirá assombrando as classes dominantes, enquanto o marxismo permanecerá como algo incontornável nos estudos universitários. Como o grande espectro que ronda o planeta, Marx se mantém vivo, como espectro da sociedade futura, como espectro da humanidade emancipada de toda exploração e opressão, como o espectro do socialismo.

NOTAS

1 – VILAR, Pierre. “Marx e a história”. HOBSBAWM, Eric. “Marx, Engels e o socialismo pré-marxiano”. In: História do Marxismo. O marxismo no tempo de Marx. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 97.
2 – Contei algo dessa história em artigo que publiquei no jornal A Tarde em setembro de 2016 SENA JUNIOR, Carlos Zacarias de. “Galeano e um velho Conga nas lições de um mestre”, A Tarde, Salvador, p. A2, 30 de setembro de 2016.
3 – Além das greves relacionadas acima, entre 2000 e 2010 houve, também, duas outras greves das quais não participei: em 2005, porque estava no doutorado e de 2010, em que estava de saída da Uneb.
4 – SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias de. “Entre a necessidade e a vontade: ou de como Marx se tornou o maior filósofo da história e o marxismo a filosofia do nosso tempo”. In: PINHEIRO, Milton; FERREIRA, Muniz; MORENO, Ricardo. Marx: intérprete da contemporaneidade. Salvador: Quarteto, 2009, p. 23-45.
5 – SARTRE, Jean-Paul. Crítica da razão dialética: precedido por Questões de método. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 36.

Confira outros textos do Especial Marx 200:

1) Marx, o incendiário. Por Valério Arcary

2) A atualidade de Marx em seu aniversário de 200 anos: A classe trabalhadora. Por Marcelo Badaró

3) Educação e formação humana em Marx e Engels. Por Artemis Martins

4) 200 anos de Marx: Reflexões sobre a luta antirracista Por Matheus Gomes

5) A exceção contida na regra: Marx e a dialética da democracia liberal. Por Felipe Demier

6) Karl Marx: seu nome viverá através de séculos. Por Henrique Canary 

7) Parabéns, Karl. Por Ivan Dias Martins

8) Estudar Marx fora e dentro das universidades. Por Demian Melo

9) Marx: 200 anos de crítica ao capitalismo. Por Guilherme Leite

10) O encontro de Marx com a economia política. Por Macello Musto

11) Karl Marx e o capital: O detetive que queria desvendar a suprema intriga. Por Francisco Louçã

12) Marx e o caso Vogt: Apontamentos para uma biografia intelectual (1860-1861). Por Marcello Musto