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BRASIL

OPINIÃO | Que fazer? Nota sobre desânimo generalizado diante dos atuais acontecimentos

Por: Bel Keppler, militante da Liberdade, Socialismo e Revolução (LSR/CIT-PSOL)

“Parece-me que em tais condições, prolongadas durante anos, com tais experiências psicológicas, um homem deveria alcançar o grau máximo de serenidade estóica e adquirir a convicção profunda de que tem em si mesmo a fonte das próprias forças morais, de que tudo depende dele, de sua energia, de sua vontade, da férrea coerência dos fins que se propõe e dos meios que emprega para realizá-los – a ponto de jamais desesperar e não cair mais naqueles estados de espírito vulgares e banais que se chamam pessimismo e otimismo. Meu estado de espírito sintetiza esses dois sentimentos e os supera: sou pessimista com a inteligência, mas otimista com a vontade. Em cada circunstância, penso na hipótese pior, para pôr em movimento todas as reservas de vontade e ser capaz de abater o obstáculo. Nunca tive ilusões e nunca sofri desilusões. Em especial, sempre me armei com uma paciência ilimitada, não passiva, inerte, mas animada de perseverança.” – Cartas do Cárcere, Gramsci

Reforma Trabalhista, Reforma da Previdência, retirada da discussão de gênero nas escolas, liminar que permite psicólogo realizar tratamento para “curar” gay, PEC da terceirização, do Teto dos Gastos, lei antiterrorismo, veto à auditoria da dívida. A lista é imensa. Sem falar na violência cotidiana e das mais diversas formas de opressão. Os bolsomitos e outros tantos que reproduzem o ódio às mulheres, à população LGBT, aos negros e negras. Censuram as artes e tentam aplicar o Escola Sem Partido.

O compartilhamento frenético nas redes sociais, nas trocas de mensagem com as três palavras terríveis – “viu isso aqui?” -, que acompanham um link sobre algum novo ataque aos nossos direitos ou a algum caso de mais um estupro coletivo, ou mais um caso de transfobia, ou qualquer coisa do tipo, têm provocado um desânimo extremo, acompanhado de uma ansiedade social generalizada.

Como chegamos até aqui? Para onde vamos? Que fazer? Essas perguntas perturbam o sono de muitas pessoas, que postam diariamente suas angústias nas redes sociais, ou conversam com familiares, amigos, colegas de trabalho e estudo, vizinhas e vizinhos sobre a sensação de pequenez diante de uma enxurrada de ataques ao direito de trabalhar, comer, morar, existir. Aqui, algumas reflexões sobre esse mal-estar social, e a defesa da necessidade de mudar nossa postura diante dos fatos. Aqui, um apelo para resgatarmos o otimismo da vontade, e não nos limitarmos ao pessimismo da razão.

O conservadorismo e o avanço da direita: um raio em céu aberto?
De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa em Agropecuária (Embrapa), a quantidade de alimento desperdiçado no Brasil, quarto maior produtor de alimento no mundo, era capaz de alimentar mais de 19 milhões de pessoas. O cenário nacional acompanha o mundial, em que o montante chega a 2 bilhões de toneladas de alimento desperdiçados, enquanto 1 a cada 8 pessoas no mundo passam fome, segundo relatório da ONU. Em termos de moradia, segundo o Censo, temos 6,097 milhões de unidades vagas. Enquanto isso, estima-se que o déficit habitacional seja de 5,43 milhões de residências. Ou seja, especula-se que há mais casa sem gente do que gente sem casa.

A cada 15 segundos um trabalhador morre por doença de trabalho ou acidente, no mundo, e 115 são vítimas de acidente, segundo relatório da OIT. Para ter uma ideia, isso significa, a cada ano ter 20 Guerras do Iraque, ou quatro Guerras Civis Espanholas, em termos de números de mortos. São mais de dois milhões por ano que têm suas vidas ceifadas enquanto exercem alguma atividade que garante o mundo girar – comida, moradia, serviços, transporte, educação – mas também, o lucro de alguns.

Sobre o lucro de alguns: o tão assustador dado da Oxfam, fortemente divulgado recentemente, afirma que em 2016 os 1% da população mundial detém riqueza equivalente ao total de riqueza dos 99% restantes da população mundial. No Brasil, dados recentes do World Wealth and Income Database, apontam que a riqueza dos 10 e do 1% mais ricos aumentou nos últimos 15 anos. Para se ter uma ideia, a riqueza dos 1% mais ricos do Brasil é superior que a riqueza dos 1% mais ricos da França. Isso mesmo, enquanto estão votando uma série de medidas e cortes em serviços como saúde e educação pública com o argumento da crise, os ricos não param de enriquecer, se apropriando cada vez mais da riqueza produzida.

Todas essas informações para dizer que: Trump, Temer, e outros atuais inimigos nossos a quem direcionamos nosso ódio e nossa revolta, não caíram de paraquedas para dominar o mundo. Eles fazem parte de um sistema pautado na manutenção da concentração de riqueza desses 1%. E que às custas disso existe a fome, a miséria, vidas interditadas prematuramente, para enriquecer os ricos.

Quem detém riqueza, detém poder. O escândalo deste ano envolvendo a JBS, da carne de papelão e dos milhões investidos nas campanhas eleitorais, mostrou a relação promíscua entre economia e política no sistema capitalista, e o impacto ambiental, social e humanitário às custas disso. É dada uma centralidade equivocada para a corrupção, pois ela não é causa dos problemas, mas apenas mais uma expressão do modo de operar o sistema capitalista.

A mesma pesquisa do World Wealth and Income Database apontam que, da mesma forma que os 1% mais ricos tiveram um aumento de sua renda, a participação da riqueza dos 50% mais pobres também tiveram um crescimento, de 11,2% para 12,3%. Apesar de ínfimo, isso impacta na consciência de muitas e muitos trabalhadores, que tiveram a sensação de que a vida estava finalmente prosperando. A faixa intermediária de 40% da população foi quem sofreu uma queda na renda. O que pode ajudar a entender, em parte, o crescimento do fenômeno dos “coxinhas”, classe média que sentiu um grau de piora em suas vidas.

Tais dados nos ajudam a explicar como se formam as bases para a barbárie. De um lado, os setores mais pobres sentiram uma pequena melhora em suas vidas, que não é o suficiente para uma vida digna e um trabalho decente que garanta estabilidade, mas talvez a medida precisa para não apostar em saídas coletivas, e sim individuais. Dessa forma, investe-se o tempo e energia em trabalhos autônomos, os famosos “bicos”, com a ajuda de algum programa de renda. Embora não sejam alternativas antagônicas, na prática por vezes acabaram sendo. O medo da repressão, ou de colocar o emprego em risco são elementos também que justificam a aposta em saídas individuais e nas eleições, no “mal menor”.

Por outro lado, uma classe média composta por setores conservadores, que carregam uma herança de um país mal resolvido com suas mazelas do passado, como a escravidão e a ditadura – fruto de uma educação acrítica, que tende a se acirrar se vingar a “Escola sem Partido”, e que se viu prejudicada nos últimos governos. A redistribuição de renda entre os assalariados como aponta a pesquisa, da classe média para os mais pobres, durante os governos do PT ajudaram a direcionar o ódio para o elo mais fraco.

Com a ajuda da imprensa manipuladora e de intelectuais de direita construiu-se uma falsa narrativa de que suas vidas estavam piorando porque o governo estava tirando dinheiro de quem trabalhou muito a vida toda – setores privilegiados que puderam cursar ensino superior em universidade pública e serem aprovado em um concurso público com estabilidade no emprego, terem casa própria, plano de saúde etc – para dar para pessoas mais pobres que queriam viver às custas de bolsas destinadas à população de baixa renda. Identificando o PT como “esquerdista” ou “esquerdopata”, ainda propagaram que esse era o modelo que os socialistas defendem. Enquanto isso, os verdadeiros ricos permaneceram lucrando, com os baixos impostos – segundo estudos, a taxação de grandes fortunas poderia render até 100 bilhões por ano.

Pois bem, com isso, pretende-se dialogar com esse sentimento de derrota que pesam nos ombros de tantas pessoas que lutam diariamente – e não só coletivamente, mas aquelas e aqueles que labutam no dia a dia horas e horas no transporte público espremido, depois horas e horas em um trabalho por vezes sem sentido, sem prazer, sofrendo assédio moral, pessoas desempregadas, pessoas oprimidas pelo simples fato de existirem na condição de mulheres, LGBTs, negros e negras. Àqueles que estão rendidos ao discurso de “onda conservadora”, ou prestes a render, fica a questão: o que esperar dessa classe dominante? Fica mais explícito que as instituições do Estado – judiciário, legislativo, executivo – estão a serviço da manutenção da ordem desse sistema. Resta-nos então, olhar para o outro lado – esse lado gigante em termos quantitativos: o que nós estamos fazendo para mudar isso?

É possível mudar o mundo?
“Não acredito na revolução” – dizem alguns, e as justificativas são várias. “Olha só, a experiência soviética, por exemplo!”. Estamos em 2017, ano em que se comemora o centenário da Revolução Russa. Muitos resumem com a conclusão de que se tratou de uma experiência comunista em que falhou e, portanto, mostrou que o Comunismo não é viável. Ora, com tudo que foi apresentado até agora, podemos constatar que o Capitalismo é?

É fato, temos muitas lições para tirar desse processo, sobre como os cursos que tomou. Agora, devemos também tirar lições do que foi, em um dos países mais pobres do mundo, com o desafio de toda sua extensão geográfica, conseguir, após a revolução de Outubro abolir radicalmente a propriedade privada da terra dos meios de produção, e com isso garantir em um curto momento diversos avanços em termos de direitos sociais. Em cerca de vinte anos o analfabetismo foi erradicado – o Brasil, hoje, com suas centenas de anos de experiência capitalista, possui ainda mais de 12,9 milhões de analfabetos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo IBGE.

O país se desenvolveu exponencialmente em termos industriais, econômicos, culturais. A vida das mulheres foi impactada positivamente, com a criação de creches e restaurantes públicos, com o direito ao divórcio e outras iniciativas. O mesmo com a população LGBT, em que a Rússia destacou-se em relação aos demais países da Europa na época a descriminalizar a homossexualidade, reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo e realizar cirurgias de redesignação sexual – isso em um país com condições semi-feudais.

Em poucas décadas fez-se o que em centenas de anos capitalistas conquistamos com muita luta, e que por vezes significou a perda de lutadoras e lutadores valiosos no combate, diante da repressão do Estado. Esse é o legado da Revolução Russa que precisamos trazer para os dias de hoje.

É evidente que faz-se necessário tirarmos lições da experiência por completo, perdeu-se boa parte dessas conquistas com a tomada de poder da burocracia stalinista e o isolamento com a revolução em um só país, sem se desenvolver em países desenvolvidos industrialmente, como o caso da Alemanha. No entanto, isso não anulou todas as conquistas e o fato de que a Revolução de Outubro mostrou o potencial de mudança social.

E se perguntam se é possível mudar o mundo, a resposta pode oscilar conforme o humor. Tem vezes que parece impossível, diante de tanta notícia ruim e desgraça acontecendo ao nosso redor. No entanto, especialmente nesses momentos é que se destaca que, a despeito das dificuldades, mudar o mundo é preciso. Esse sistema já se mostrou inviável, injusto e, a longo prazo, insustentável em termos inclusive ambientais. Estão acabando com o nosso planeta!

Então, que fazer?
Primeiro, é preciso desmontar o argumento de que está tudo dominado. Desde junho de 2013, no Brasil, um novo momento abriu-se na conjuntura, de polarização social. Milhares nas ruas, especialmente jovens, conseguiram revogar aumento da tarifa do transporte em capitais do Brasil, mesmo com até a véspera da vitória, governantes alegando que seria irreversível. Antes disso, em 2012, houve mais greves do que no período de ascensão do movimento operário no fim da década de 70 e início de 80. Todo dia temos notícias de ações localizadas ou nacionais. Toda semana são dois ou três atos acontecendo nas grandes cidades.

Coletivos de cultura se organizam, com atos de rua, protestos, até ocupação da FUNARTE, em São Paulo, com o movimento “É hora de perder a paciência”, em 2011, e mais recentemente a ocupação, em vários Estados do Brasil, de prédios públicos ligados ao Ministério da Cultura. Mais recentemente, no início de setembro, eram 500 famílias em uma ação ocupando um terreno em São Bernardo do Campo, em São Paulo. Duas semanas depois, eram quase 7 mil famílias ocupando o terreno. Tambem nesse mês, os Guarani ocuparam o Pico do Jaraguá, em São Paulo, e em uma ação radicalizada cortaram sinais de TV e internet, como forma de protesto contra a redução de uma reserva indígena.

Se há um aumento do conservadorismo, é também uma reação desses setores retrógrados a algumas conquistas. Rompemos o silêncio do machismo, materializado em casos de estupros, relacionamentos abusivos, violência doméstica. Em todo canto hoje fala-se sobre o tema. A luta dos negros e negras manifesta-se das mais diversas formas e ganha espaço na esquerda de conjunto. E se o mercado tenta capitalizar essas pautas – com discurso feminista em filmes comerciais ou vendendo cosméticos específicos para cabelos crespos – é porque milhares disputaram e disputam essas pautas na sociedade, com as pessoas ao redor e organizando coletivamente.

Foi também, em meio a análises de onda conservadora, que o Brasil vivenciou a maior greve geral das últimas décadas, com estimativa de adesão de 40 milhões de trabalhadores, que foi combinada com grandes manifestações de rua. Antes dessa data histórica já vinha um crescente de lutas, com um 8 de março classista, pautando o impacto da Reforma da Previdência na vida das mulheres e internacionalista, com um chamado mundial “se nossas vidas não importam, que produzam sem nós”. Em seguida, dias nacionais de luta como o 15 e 31 de março. Infelizmente, algumas centrais como a Força Sindical, tentando fechar um acordão por cima para garantir o imposto sindical, e a CUT, priorizando a mobilização contra o julgamento de Lula em Curitiba, cumpriram um papel desarticulador em um momento crucial.

Estão acontecendo coisas. Basta olhar ao redor. São iniciativas incipientes e certamente aquém do que é necessário, mas estão acontecendo. É preciso começar de algum lugar, e isso não é fácil. Muitos quando se propõe tentar fazer algo, desanimam-se tempo depois ao deparar-se com uma esquerda fragmentada, que por vezes se perde em brigas, intrigas e disputas fraticidas. Alguns tentam formar seus próprios coletivos, mas não é preciso passar muito tempo para o coletivo se desarticular frente às demandas cotidianas – seja trabalho, estudo ou mesmo a necessidade de um pouco de lazer e descanso diante da rotina estafante.

O que é possível observar também é que, muitos bem-intencionados, pessoas justas e que concordam que é preciso fazer alguma coisa, quando se deparam com algumas práticas de setores da esquerda dignas de organizações de direita, acabam se afastando e indo cuidar da própria vida. Vontade legítima, mas que enfraquece a luta coletiva, em que as pessoas sensíveis, honestas, por vezes de setores que já carregam um histórico de opressão, poderiam contribuir substancialmente para um projeto de sociedade diferente construído no próprio processo, mas não encontram forças para isso entre suas fileiras.

É preciso ânimo e vontade para fazer algo, mas não podemos nos pautar apenas pelo nosso humor, mas sim pelo concreto, e a realidade objetiva demanda fazer algo. Estudar e conhecer as experiências históricas, como a Revolução de Outubro citada, e exemplos internacionais, podem servir de inspiração e também nos ensinar para, no limite, não repetirmos erros já cometidos. E se leu até agora pensando em encontrar alguma resposta inovadora, não há. Esse texto é um apelo para resgatar o otimismo da vontade, esmiuçando o horrível e nefasto mundo capitalista. Como no poema do Brecht, “Aos Vacilantes”,

Você diz:
nossa causa vai mal.
As trevas aumentam. Nossas forças diminuem.
Depois de termos lutado tantos anos, estamos numa situação pior do que a do começo.
E o inimigo está mais forte do que nunca.
(…)
Cometemos erros, não se pode negar.
Nosso efetivo está reduzido.
Nosso discurso está confuso; e uma parte das nossas palavras
foi distorcida pelo adversário até se tornar irreconhecível.
O que é que está errado no que nós dissemos?
Alguns pontos? Ou tudo?
Com quem devemos contar, ainda?
Somos apenas os restos de um naufrágio que o rio deixou nas margens, abandonados, antes de continuar sua viagem?
Estamos ultrapassados? Não compreendemos mais nada e ninguém nos compreende?
Precisamos ter sorte?
É o que você pergunta. Mas não espere resposta
a não ser de você mesmo.

Não temos hoje um instrumento forte capaz de concentrar e direcionar nossas forças, como em outros momentos representou a CUT, ou a UNE, ou mesmo o PT. Estamos fragmentados, com algumas iniciativas que, muito possivelmente não serão elas, por si só, da forma que se apresentam hoje, essa tal alternativa, mas por certo passará por elas. É preciso construir uma Frente de Esquerda Socialista com todas essas iniciativas: PSOL, PCB, PSTU, CSP Conlutas, Intersindical, MTST, Terra Livre, movimentos feministas, LGBTs, a juventude de junho, secundaristas.
E não restam dúvidas: haverá problemas e contradições. Dificilmente sairá conforme as expectativas individuais de cada um ou de cada coletivo que se engajar nesse projeto. Mas é preciso ter consequência e coerência em defesa dessa alternativa. Superar vaidades. De forma alguma trata-se de deixar de lado as diferenças, mas é urgente que a esquerda aprenda a trabalhar as diferenças. Com disputa fratricida, com uma autoconstrução com métodos que sacrificam um projeto unitário, com debates desqualificados e personalistas atrasamos ou criamos obstáculos para essa alternativa. Mas, com um bom combate de ideias, podemos avançar juntos, elevar as ideias revolucionárias e mudar o mundo.

Esse é um apelo para cada um e cada uma assumir um passo à frente na luta coletiva. Se não por acreditar que é possível, pela convicção de que é necessário e urgente.

Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão,
haveríamos de ficar tristes?

O mar da história é agitado.
As ameaças
e as guerras,
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.
Maiakóvski

*O texto reflete a opinião da autoria e, não necessariamente, a linha editorial do Esquerda Online