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EDITORIAL

Notas introdutórias sobre a questão curda

Por Diego Correia, Rio de Janeiro/RJ

Nos últimos anos, um forte destaque na mídia internacional tem sido dado aos conflitos decorrentes da guerra civil síria, em especial a resistência de diversos setores contra o autodenominado Estado Islâmico (EI). Sem dúvida, um dos papéis de destaque nessa luta, tem sido desempenhado pelos curdos sírios. Entre outubro de 2014 e janeiro de 2015, a heroica resistência na cidade de Kobane, no norte sírio, cercada pelo EI, realizada pelas Unidades de Proteção Popular (YPG) – forças militares organizadas pelo Partido da União Democrática (PYD) – fizeram os holofotes de todo o mundo, e especialmente de várias organizações e indivíduos, se voltarem aos curdos e sua luta na Síria.

O PYD e as YPG começaram a ganhar destaque internacional, não só por ser uma das forças terrestres mais bem-sucedidas contra o EI (chegando a conquistar a maior parte do território norte sírio), mas também pelo fato de parte das YPG possuírem unidades exclusivamente femininas (conhecida como YPJ) e que reivindicam o feminismo, ganhando ainda mais destaque e simpatia internacional de diversas militantes e organizações. Atualmente as YPG são as principais forças que constituem as Forças Democráticas da Síria (SDF), uma coalizão militar com diferentes organizações regionais e com apoio de algumas outras internacionais, com o principal objetivo de combater o EI, sobretudo na região do norte sírio.

O discurso protagonizado pelo PYD em Rojava, é o da construção de uma sociedade democrática com direitos iguais para mulheres, liberdade para o convívio de diferentes etnias e religiões e uma estrutura política social organizada por conselhos autônomos. Ainda segundo esta organização, Rojava é fruto de uma revolução única, inspirada pelas ideias de Abdullah Ocalan[1]. Há muitas contradições sobre a natureza de Estado de Rojava, nas quais tentaremos abordar, esta e outras questões mais específicas, em documentos posteriores.

Este é o primeiro artigo de uma série, que visa abordar alguns fatos marcantes do movimento curdo sírio até o início da guerra civil, por volta de 2011, assim como perspectivas de importantes acontecimentos da conjuntura do período. O papel dos curdos durante e depois da explosão da guerra civil será abordado em artigos conseguintes.

Quem são os curdos?

Atualmente, entre 25 à 35 milhões de curdos ocupam regiões montanhosas nas fronteiras de 5 países: Turquia, Iraque, Síria, Irã e Armênia. São o quarto maior grupo étnico do Oriente Médio e jamais tiveram um Estado-nação. São originários da população indígena que ocupava as planícies e planaltos da Mesopotâmia na região que hoje pertence ao sudeste turco, nordeste sírio e iraniano, além do sudoeste armênio. Apesar de a maioria religiosa ser de muçulmanos sunitas, há diversas outras religiões e credos entre os curdos. Há uma forte unidade cultural através da raça, cultura e linguagem, mesmo não havendo um dialeto padrão.

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Em destaque na figura as regiões em que os curdos habitam. Fonte da imagem: BBC

Na Síria, o grande número de partidos curdos ativos (mais de 15) é consideravelmente maior do que no restante dos países da região, em que os curdos têm presença significativa. A maior parte destas organizações tiveram origem no Partido do Curdistão da Síria (PDKS), fundado em 1957. Em pouco tempo, o partido já constituía tendências mais à “esquerda” e à “direita” que se separaram em diferentes organizações por volta de 1965. Havia forte referência pelos partidos curdos iraquianos e muitas das disputas fracionais nas organizações curdas sírias seguiam as mesmas polêmicas teóricas e políticas. O aprofundamento de diversos debates, como a relação com o regime sírio, o papel das atividades clandestinas, entre outras, fez com que rachas continuassem nos anos subsequentes. A questão curda, obviamente, tinha papel de destaque na política destes partidos, como o reconhecimento de direitos culturais, idioma e cidadania, além de reconhecimento constitucional dos curdos como minoria étnica. Apesar de intensas polêmicas, um fato que merece destaque é que a política para a constituição de um Estado autônomo praticamente não foi levantada pela grande maioria das organizações até 2011. Diferente do direito à cidadania, que era uma questão central para a maioria curda.

Para além dos partidos que tiveram origem do PDKS (onde parte destas viriam a se reagrupar, durante a década de 90[2]), o de maior destaque é o PYD (“partido-irmão” do PKK), fundado em 2003. O nascimento relativamente recente do PYD se deve ao fato de a questão curda na Síria não ter feito parte da agenda do PKK. De fato, o interesse político pela região mudou quando houve alteração nas relações entre a principal liderança do PKK, Abdullah Ocalan, e sua respectiva organização com o regime sírio. O PKK apoiava o regime sírio (se apoiando na “rivalidade” regional entre Síria e Turquia e o fato de serem oposição ao governo turco) até o final da década de 90, inclusive possuindo “bases” instaladas em solo sírio desde o início da década de 80.

A Intifada curda

Um evento chave para entendermos o papel dos curdos na guerra síria é a revolta de Qamishli (cidade no nordeste sírio, fronteiriça com a Turquia) de 2004, também conhecida como a “Intifada Curda”. Durante uma partida de futebol, houve um confronto entre nacionalistas árabes (apoiadores do partido de Assad, o Baath, que governa há várias décadas a Síria) e curdos. A repressão brutal da polícia sobre estes últimos desencadeou protestos com milhares nas ruas demandando direitos à cidadania (uma vez que a grande maioria dos curdos sírios não são reconhecidos constitucionalmente como cidadãos da Síria) e afirmando a identidade curda. As mobilizações rapidamente se espalharam e radicalizaram, durando cerca de 10 dias e alcançando importantes cidades como Aleppo e Damasco, tendo estátuas de Hafez Al-Assad[3] derrubadas, assim como ataques a estações de polícia, prédios públicos e centros do partido Baath. Apesar desta forte demonstração de força, o governo se mostrou irredutível perante as demandas apresentadas.

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Mapa da Síria, com destaque as cidades de Qamishli, Damasco e Aleppo. Fonte: Agence France-Presse (AFP)

A Intifada Curda teve como vanguarda uma juventude curda radical, que tomou o protagonismo das ações de forma independente dos partidos curdos tradicionais. Os partidos que conseguiram dirigir politicamente essas mobilizações foram o PYD e o “Partido da União Curda da Síria (“Yekiti”)”, sendo referência para esta juventude. A “Roj TV”, dirigida pelo PKK, chamava abertamente a uma insurreição. O pacifismo dos partidos tradicionais se chocou frontalmente com a radicalidade da juventude (incluindo algumas concepções de luta armada, apesar de não ser o mais comum). Novas organizações políticas surgiram imediatamente após a intifada curda, principalmente compostas por essa juventude mais radicalizada. A luta pela autonomia curda ia ganhando cada vez mais espaço, ocupando o lugar da principal demanda anterior, que era pela conquista de direitos iguais à cidadania, defendida pela Aliança (“Hevbendi”) e pela Frente (“Eniya”).

Antes da explosão da guerra civil síria

 A intifada curda deixou profundas marcas não só na consciência do movimento, especialmente dos mais jovens, mas também em relação à mobilização e à organização dos mesmos. Em 2011, voltaram a explodir fortes manifestações espontâneas e novamente no nordeste sírio. O presidente sírio Bashar Al-Assad tentou controlar a situação aceitando a condição de ceder aos curdos sírios o estatuto de “estrangeiro”, o que permitia alguns direitos à cidadania, mas se mostravam completamente distantes e insuficientes aos anseios da juventude curda. Foi então que começaram a ser fundados em todo o país comitês populares, responsáveis pela mobilização e organização, tendo um papel de destaque nesse processo o Movimento Juvenil Curdo (TCK).

O papel desempenhado pelo governo de Bashar Al-Assad é crucial para entender a situação síria. Assad foi responsável pela implementação de duras reformas neoliberais, junto com medidas de brutal repressão para conter manifestações, além de negociações e favorecimentos à específicos setores sociais (como por exemplo, algumas frações das classes médias) que eram utilizados como “moeda de troca”, sobretudo com o intuito de desmobilizar as crescentes manifestações. A vida da classe trabalhadora síria já sofria mudanças significativas em pouco tempo de seu governo, sobretudo em relação às privatizações e ao aumento da exploração e miséria. O Estado sírio oferecia menos serviços e estes eram cada vez mais caros, junto com um maior deslocamento de recursos para investimento no aparato repressor. O destino das privatizações era certo: apesar do discurso de um suposto mercado, eram entregues diretamente a pessoas ligadas ao aparato estatal. O exemplo mais emblemático era de Rami Makhlouf, dono de duas companhias telefônicas de celulares da Síria e quatro bancos nacionais. Rami é primo de Assad.

Os grandes ataques à classe trabalhadora síria, evidentemente, afetaram as frações da classe mais exploradas e oprimidas, como os curdos por exemplo. Não à toa tiveram um papel protagonista nas mobilizações e na organização da resistência contra o regime de Assad antes da guerra civil. Para além das demandas particulares e específicas étnicas, setores curdos desempenharam um importante papel na unificação e organização de diferentes grupos étnicos. Iniciativas como a formação de comitês populares, entre árabes e curdos, foram fundamentais não só na resistência contra o regime de Assad, mas também posteriormente, já durante a guerra civil, no combate ao EI.

Apesar destes episódios de solidariedade e unidade, Assad conseguiu manobrar diversas vezes de forma perspicaz, criando ou aprofundando conflitos entre ativistas, organizações e diferentes etnias sírias. Assassinatos e confrontos entre diferentes setores sociais impossibilitaram a unificação na luta entre árabes e curdos. Um dos casos mais relevantes para este fato foi o assassinato de Michel Temo, em outubro de 2011. Temo era uma das principais lideranças do “Movimento do Futuro” (ligado ao “Partido Futuro Curdo”) e estava desempenhando um papel importante no diálogo entre as oposições sírias e curdas ao regime. Michel Temo e sua organização, junto com o Yekiti e o Partido da Liberdade Curda (“Azadi”), participaram desde o início, das ondas de mobilizações que explodiram em março de 2011. Outras organizações só vieram a se juntar às manifestações apenas no verão. O funeral de Temo desencadeou massivas mobilizações em Qamishli. Esta conjuntura, contando também com a influência de Barzani, impulsionou o reagrupamento das correntes curdas originárias do PDKS, nas quais o Yekiti e Azadi também se juntaram, fundando o Conselho Nacional Curdo da Síria (ENKS). Em nível de reorganização política, esse foi um dos maiores acontecimentos no movimento nacional curdo. Apenas duas organizações de influência relevante na realidade ficaram fora deste processo de unificação: a que era liderada por Temo (após seu assassinato, sua organização política passou por crises internas, ocasionando rachas) e o PYD.

Importante ressaltar que nas mobilizações que tiveram início no ano de 2011 – e que agitaram não só as regiões curdas, mas também todo o país – o PYD teve uma participação muito pequena. Fundaram em setembro daquele ano uma coordenação de partidos de diferentes composições étnicas: partidos árabes da esquerda baathista (do partido Baath de Assad) e um partido aramaico cristão. A principal orientação política do PYD era a de priorizar a negociação com o regime, visando conquistas democráticas, mas sem nenhuma perspectiva de derrubar o regime, pois segundo os mesmos, este caminho poderia levar para uma guerra civil.

Uma das principais críticas do PYD feitas ao ENKS era devido às relações com a Turquia (inimigo declarado do PKK), sobretudo devido à proximidade de Barzani a este. Através do “Movimento para uma Sociedade Democrática” (“Tev-Dem”), um organismo que reunia os partidos e outras entidades ligados ao PYD, foi fundado o Conselho Popular do Curdistão Ocidental. Este viria a se tornar a principal estrutura administrativa de Rojava, com a tomada da mesma pelo PYD e YPG, após a retirada das tropas de Assad da região.

Conclusões iniciais

 Pelo breve relato introdutório da complexa questão curda na Síria, fica evidente um papel de grande destaque na vida política e sobretudo conjuntural dos últimos anos que os curdos e suas organizações tiveram. A sangrenta guerra civil que já dura mais de 6 anos, com milhões de refugiados e centenas de milhares de mortos, grande número de organizações e conflitos étnicos e políticos envolvidos, assim como o envolvimento posterior de outras potências imperialistas regionais e mundiais no conflito, mostram um pouco da complexidade que este tema representa e vai dar novos contornos ao tema curdo na Síria.

Uma das questões que tornam ainda mais difícil a análise dos acontecimentos realizada aqui em terras brasileiras, é a distância geográfica e também cultural, sobretudo em relação ao idioma. Mesmo as organizações políticas internacionais da esquerda presentes aqui no Brasil, praticamente nenhuma tem qualquer atuação, nem que seja mínima na Síria, dificultando ainda mais o acesso à informação.

Apesar de todas essas dificuldades, é inegável a fascinação que a chamada “revolução síria” (sobretudo o papel desempenhado pelo PYD) desempenhou na consciência de milhares de ativistas e militantes em todo o mundo. Não é à toa, que a questão curda se tornou debate em vários círculos da esquerda mundial, assim como a discussão sobre a natureza político-econômica do território ocupado – com direção política principalmente dos curdos do PYD – no norte sírio. Mais do que debate, as fileiras do YPG contam com vários voluntários de diversos países, inclusive europeus. Alguns setores reivindicam a experiência de Rojava de caráter anarquista, outros como autonomista e outros até como socialista, indicando a urgência de debates mais profundos sobre o tema, que fujam das superficialidades e imprecisões que, infelizmente, são comuns. A realidade é muito mais complexa, não só se analisarmos a natureza de classe do Estado de Rojava (afinal, a propriedade privada de fato foi abolida? Temos uma economia planificada? Houve expropriação da burguesia?), como diversas contradições observadas, sobretudo durante importantes ações no período da guerra civil. Temas que abordaremos futuramente.

Nesse sentido, entendendo as limitações impostas pelas dificuldades já apresentadas, estaremos realizando uma série de artigos, como dito anteriormente, que pretendem contribuir com os debates sobre a Síria, e de forma mais específica sobre o papel dos curdos (em especial o PYD) no atual confronto.

REFERÊNCIAS

http://www.bbc.com/news/world-middle-east-29702440

http://www.revistadiaspora.org/2016/12/21/decifrando-a-grande-tragedia-siria/

http://www.internationalviewpoint.org/spip.php?article3914

http://www.internationalviewpoint.org/spip.php?article4805

http://www.internationalviewpoint.org/spip.php?article3685

 

 

[1] Uma das principais lideranças do Partido dos Trabalhadores Curdos(PKK). Está preso desde 1999 na Turquia, e mesmo nesta condição continua sendo a principal figura política e teórica do PKK.

[2]Os partidos mais próximos às correntes dos curdos iraquianos de Jalal Talabani (político curdo e iraquiano, ex-presidente do Iraque) organizaram a Aliança Democrática Curda da Síria (“Hevbendi”). Já os mais próximos à Mesut Barzani (atual presidente do Curdistão Iraquiano, zona semiautônoma do Iraque) formaram a (Frente Democrática Curda da Síria) “Eniya”.

[3]Ex-presidente da Síria, pai de Bashar Al-Assad, atual presidente sírio. Permaneceu no cargo da presidência por quase 3 décadas, só saindo do cargo ao falecer, no ano de 2000. Um pouco mais de 1 mês após sua morte, seu filho assume a presidência.