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EDITORIAL

A noventa anos do suicídio de Adolf Joffé, dirigente da Oposição de Esquerda na antiga URSS

Por: Editoria Internacional

Nesta semana, no dia 16, cumpriram-se 90 anos do suicídio de, Adolf Joffé,  um dos mais notáveis dirigentes do partido bolchevique e da revolução russa e depois da Oposição de Esquerda ligada a Leon Trotsky. Impedido por Stalin de fazer um tratamento de grave doença no exterior, o que o condenaria à morte lenta e terrível, resolveu fazer um gesto supremo unindo o sacrifício pessoal a um grito de alerta sobre a degeneração galopante da revolução russa que agora completa 100 anos. A pessoa, as ideias, a dedicação e inteligência de Joffe e seu último grito de angústia merecem ser conhecidos pelas gerações mais jovens que lutam contra o capital.

Publicamos, abaixo, uma nota de Charles Udry, publicada no site Alencontre. Na publicação do site suíço constam dois textos de Joffé, dos quais divulgamos o segundo, a sua carta de despedida a Leon Trotsky antes de seu suicídio:

 

Adolf Abramovitch Joffé nasceu em 10 de outubro de 1883 em Sebastopol, na Criméia, no Império russo. Já na escola secundária, adere aos social-democratas russos e, formalmente ao Partido operário social-democrata russo (POSDR, criado em 1898) em 1903.  Em 1904, é enviado a Baku no Azerbaijão, uma região petrolífera tornada capital operária. Caçado pela Okhrana, a polícia tsarista, Joffé foge e retorna a Moscou e em seguida parte no exílio. Retorna a Moscou nos inícios da revolução de 1905 para logo retornar ao exílio. Em 1906, é forçado pelas autoridades alemãs a partir do território e vai assim à Áustria  onde estuda medicina e se liga a Alfred Adler, um dos pioneiros da psicanálise. Colabora com Trotsky entre 1908 e 1912 para editar o jornal Pravda e ajudá-lo financeiramente, graças à sua família que dispunha de recursos.

Seu nome de guerra, obrigatório diante da repressão do regime tsarista, se refere à sua origem: “O Crimeano” (V. Krimski). Em 1912, é preso durante 10 meses quando em visita a Odessa e em seguida “enviado” à Sibéria. O perfil de Joffé constitui exemplo da trajetória e da formação de uma “diáspora revolucionária” que se opunha, pela sua experiência e conhecimentos, à massa dos militantes da IIª Internacional, mesmo se seus militantes eram pouco numerosos e enfrentaram problemas complexos e numerosas dificuldades à partir de fevereiro 1917.

Liberado, Joffé vai à Criméia de onde é enviado pelos social-democratas a Petrogrado. Durante o processo sociopolítico de radicalização, adere inicialmente à corrente de Trotsky, denominada Mezhraiontsy (interdistrital) – uma pequena corrente formada em 1913 que reunia, entre outros, militantes como Anatoly Lunacharski, Moisei Uritski, David Riazanov, V. Volodarski, Dmitry Manuilski e Sergey Ezhov (Tsederbaum). Entre maio e junho 1917, constituem um bloco com os bolcheviques com quem se fundem.

Em Outubro de 1917, Joffé apoia a posição de Lenine frente às “hesitações” de Kamenev e de Zinoviev a respeito da questão do poder e do governo, quando era patente o vazio do poder institucional (governo provisório) e os efeitos negativos da guerra na tropa (camponesa) eram negativos, ao passo que a dialética revolução – contrarrevolução (interna e internacional) retomava todo o seu vigor.

Joffé assume a presidência do Comitê Militar Revolucionário de Petrogrado. Após 25-26 de outubro, compartilhará as posições de Lenin e Trotsky. Na questão da assinatura da paz de Brest-Litovski, não era favorável em fevereiro 1918 a um “tratado de paz permanente”, mas somente tinha voz consultiva. A discussão que manteve durante as negociações com o representante do Império Austro-húngaro vacilante, Ottokar Theobald Otto Maria, comte de Czernin von und zu Chudenitz, ministro das Relações Estrangeiras de 1916 de 1918, é bem reveladora. Em suas memórias, após insistir em que Joffé era judeu, o conde lhe atribui grande inteligência e uma atitude de gentleman. Joffé havia-lhe declarado, com extrema elegância: “Espero muito que sejamos capazes de estimular a revolução em seu país!”.

Quando o governo dos “Comissários do Povo” se transferiu de Petrogrado a Moscou, Joffé permaneceu em Petrogrado. Assumiu de abril a novembro de 1918 uma função de representação diplomática na Alemanha, cujo idioma dominava, e assim assinou o tratado complementar de paz entre a Alemanha e a “Rússia dos Soviets” em agosto de 1918.

Foi novamente expulso da Alemanha na véspera do levante de novembro 1918, acusado de organizar “um levante comunista”. Em março de 1919 não foi reeleito para o Comitê Central quando do VIII Congresso do Partido Comunista da União Soviética. Após ter ocupado um posto de “comissário” na Ucrânia, assume funções diplomáticas e assina uma série de tratados de paz que deveriam, em resumo, assegurar ao “recente poder soviético” uma certa estabilidade geopolítica diante de uma ofensiva adversária tanto interna quanto internacional, num contexto de ampla crise socioeconômica.

Ele pode examinar os mecanismos das ditas conferências de paz, como ilustrado pela Conferência de Genova em abril-maio 1922, cujo propósito para as potências dominantes consistia em “reconstruir” a Europa Central e do Leste e, dentro deste quadro, “regulamentar” as relações com o “poder bolchevique”. Publicou a este respeito um pequeno livro muito instrutivo.

Em 1923, patrocinou um acordo entre o PC chinês e “a força nacionalista” representada pelo Kumintang, cujo dirigente indiscutível era Sun Yat Tsen. Dedicou-se em seguida a um acordo entre a URSS (formalmente criada em 1922) e o Japão, que não vingou. A doença o afetava cada vez mais intensamente. Apesar disto, em 1924 representou o governo da URSS no Reino Unido e entre 1924 e 1926, na Áustria. Sua saúde periclitante e suas divergências de fundo com a fração dominante da direção do Partido e do governo o obrigarão a renunciar a suas tarefas.

Quando de sua criação em 1923, Joffé se filiou à oposição de esquerda, que Trotsky animava.

A direção estalinizada do PCUS impediu que, gravemente enfermo, Joffé fosse tratado no estrangeiro. Nestas circunstâncias desoladoras, envia a Trotsky uma “carta de adeus” antes de por fim a seus dias. Esta “carta de adeus” foi capturada pela polícia política. Extratos “seletivos” foram utilizados pelos stalinistas para desacreditarem Joffé e Trotsky. Este último pronunciou seu derradeiro discurso público na URSS quando do funeral. Maria Joffé, sua esposa, foi condenada, enviada à prisão e mais tarde a um campo. Ela sobreviveu.

Após sua liberação, redigiu suas memórias, um texto repleto de emoção, intitulado “Uma longa noite: uma história verdadeira”. (Ed. New Park Publications, 1978). Sua filha Nadezhda A. Joffé reuniu suas recordações num livro também emocionante: “As memórias de Nadezhda A. Joffé, publicado em inglês pela Labor Publication em 1994. Quem quer que conheça esta história e apreenda sua trágica dimensão histórica e pessoal deve, durante a presente cerimônia de homenagem a “um dos nossos”,  manter decência e discrição ao se referir ao drama complexo de Adolph Joffé. Não fazê-lo transforma este “traço” em vulgaridade. Infelizmente é assim, pois a bandidagem intelectual é frequente.

C.A. Udry

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“A Leon Trotsky

Caro Leon Davidovitch:

Em toda minha vida sempre pensei que o homem político deve saber ir embora a tempo, como um ator deixa a cena, e que é melhor fazê-lo cedo demais do que tarde demais.

Adolescente, ainda verde, defendi a correção da conduta de Paul Lafargue, e sua mulher Laura Marx, quando suicidaram-se, o que tanto barulho fez nos partidos socialistas. E me lembro que repliquei asperamente a Augusto Bebel, muito revoltado por este suicídio, que só é admissível discutir-se, a idade escolhida pelos Lafargue (pois não se trata aqui dos anos mas da utilidade possível do indivíduo), não se pode em caso nenhum contestar o princípio, para um homem público de deixar a vida no momento em que tem consciência de não poder ser mais útil à causa que seria.

Há mais de trinta anos que fiz minha esta filosofia de que a vida humana só tem sentido na medida e enquanto está a serviço de um infinito que para nós é a humanidade, porque, sendo o resto limitado, trabalhar pelo resto é desprovido de sentido.

Se mesmo a humanidade deve ter um fim, este sobreviverá então uma época tal que, para nós, a humanidade pode ser considerada um infinito absoluto. E se tem como eu, fé no progresso, pode-se muito bem conceber que, mesmo em caso de perdição de nosso planeta, a humanidade encontre os meios de habitar outros mais jovens e prolongue por conseguinte sua existência; e então, tudo que for feito em seu bem em nosso tempo se refletirá também nos séculos longínquos, quer dizer dará a nossa existência a única significação possível.

É nisto, e nisto somente, que sempre vi o sentido da vida; e agora, abarcando com o olhar a minha vida passada, dos quais 27 anos nas fileiras do nosso Partido, parece que tenho o direito de dizer que durante toda a minha vida consciente, permaneci fiel a esta filosofia, isto é, vivi segundo este sentido da vida; o trabalho e a luta pelo bem da humanidade.

Mesmo os anos de prisão e de cárcere quando o homem é afastado da participação direta na luta a serviço da humanidade, não podem ser riscados da vida, com um sentido, pois, sendo anos de preparação cultural e de autodidática, contribuíram para o melhoramento do trabalho ulterior; e por esta razão podem ser confundidos com os anos de trabalho a serviço da humanidade, tendo, portanto um sentido. Creio ter o direito de afirmar que nesta acepção, nem um só dia de minha vida foi desprovido de sentido.

Mas agora parece, chegou a hora, em que a minha vida perde o seu sentido e, por conseguinte, surge a obrigação de deixá-la, de lhe dar um termo.

Há vários anos que a direção atual de nosso Partido, de conformidade com o seu método geral de não dar trabalho aos comunistas da oposição, não me designa nem trabalho político nem trabalho soviético, cuja envergadura e caráter me permitissem ser útil no máximo de minhas forças. No último ano, você o sabe, o Bureau Político me pôs, como oposicionista, completamente de lado de qualquer trabalho político.

Por outro lado, provavelmente em parte devido a minha doença e em parte devido a razões melhor conhecidas de você do que de mim – não pude, este ano, participar praticamente do trabalho e da luta da oposição. Foi com um forte combate interior e, no começo, a contragosto, que me resignei a esta forma de atividade que só esperei suportar tornando-me completamente inválido: o trabalho literário, cultural e pedagógico. Embora no começo achasse penoso, me entreguei decididamente a esta tarefa, esperando que ela continuasse a dar a minha vida a necessidade e utilidade de que falei acima; só elas a meu juízo podem justificar minha existência.

Porém minha saúde vem piorando cada vez mais. Por volta de 20 de setembro, por motivo de mim desconhecidos, a Comissão Médica do Comitê Central me convocou para um exame de professores especialistas e estes diagnosticaram um processo tuberculoso ativo nos dois pulmões, uma miocardite, uma inflação crônica da vesícula biliar, uma colite crônica, apendicite e polinevrite crônica (inflamação múltipla dos nervos). Eles me disseram que meu estado de saúde era bem pior do que eu imaginava, e que nem devia pensar em prosseguir até o fim nos meus cursos nos estabelecimentos superiores (a Universidade de Moscou e o Instituto de Orientalismo). Acrescentaram que pelo contrário seria mais razoável renunciar as estes planos e não ficar inutilmente nem um dia mais em Moscou e nem mais um hora sem tratamento e partir imediatamente para o estrangeiro, com destino a um sanatório apropriado. Como esta viagem não podia ser preparada em dois dias, me prescreveram certos remédios e tratamento. Para obtê-los tinha que ir à Policlínica do Kremlin durante algum tempo, até a minha partida.

A minha pergunta direta: “Que possibilidade tenho de cura no estrangeiro e posso me tratar aqui na Rússia sem abandonar meu trabalho?”, os professores e os assistentes, o médico do Com. Central, camarada Abrossov, um outro médico comunista e o deão do hospital do Kremlin, A. Konseil, responderam claramente os sanatórios russos não podiam de nenhum modo curar-me e que eu devia contar com um tratamento no Ocidente, pois até então nunca me tratara mais de 2 ou 3 meses no estrangeiro; mas que agora eles insistiam justamente para que eu fizesse uma estadia de seis meses no mínimo, sem fixar o máximo. Acrescentaram que, conformando-me as prescrições deles, não duvidavam que se não me curasse radicalmente, ao menos me seria dado trabalhador por um período maior.

Durante dois meses mais ou menos, nenhuma medida foi tomada pela Comissão médica do Comitê Central (foi ela entretanto que por sua própria iniciativa convocou a consulta em questão) relativo não somente a minha estadia no estrangeiro como do meu tratamento aqui. Ao contrário, a farmácia do Kremlin que sempre me fornecera remédios pelas receitas, ficou interdita de fazê-lo e eu fiquei, de fato, privado, de auxílio gratuito dos medicamentos que sempre usara. Fui obrigado a comprar os remédios indispensáveis nas farmácias da cidade (parece que isto se deu no momento em que o grupo dirigente do Partido começou a recorrer com os camaradas da oposição, à aplicação do método: “ferir a oposição no ventre”).

Enquanto era suficientemente válido para trabalhar, quase não prestava atenção para isto, mas como o meu estado não parou de piorar, minha mulher começou a trabalhar junto à Comissão Médica do C. Central, pela minha ida para o estrangeiro, e pessoalmente junto a N. Semachko, que sempre publicamente quebrou lanças para realizar a sua fórmula “salvaguardar a velha guarda”. A questão era entretanto constantemente protelada e tudo o que pode obter minha mulher foi um resumo da decisão do conselho dos médicos. Neste resumo, minhas doenças crônicas eram enumerados e ficava constatado que o Conselho insistia pela minha partida para o estrangeiro “num sanatório do tipo prof. Friedlander” e por um prazo podendo se prolongar até um ano.

No entanto, há nove dias me deitei definitivamente, devido à acuidade e à agravação (como é sempre o caso) de todas as minhas doenças crônicas e sobretudo, o mais terrível, da polinevrite inveterada que tomou de novo uma forma aguda, me constrangendo a autar um padecimento infernal, absolutamente intolerável e me tirando até a possibilidade de andar. Com efeito, há nove dias que estou privado de qualquer tratamento e a questão de minha viagem ao estrangeiro não foi examinada. Nem um só dos médicos do Com. Central me veio ver. O prof. Davidenko e o dr. Levine, chamados à minha cabeceira, me prescreveram algumas insignificâncias que não puderam me aliviar em coisa alguma; reconheceu-se então “que não se podia fazer nada” e que a viagem ao estrangeiro era indispensável e urgente.

O dr. Levine disse a minha mulher que o negócio não andava porque a Comissão Médica pensava naturalmente que minha mulher haveria de querer fazer a viagem comigo e que “assim ficava muito caro”. (Quando os camaradas que não são da oposição ficam doentes, são enviados ao estrangeiro, e muitas vezes até com a família, acompanhados de nossos médicos ou professores, eu mesmo sei de muitos destes casos e até reconheço que quando foi de minha primeira crise de polinevrite aguda, fui mandado ao estrangeiro, em companhia de minha família, mulher e filho, e do prof. Konabi; então ainda não existiam os costumes atualmente instaurados no Partido.)

Minha mulher respondeu que apesar do triste estado em que me encontrava ela não pretendia absolutamente que eu devesse ser acompanhado por ela ou por alguém. Então o dr. Levine garantiu que nestas condições a questão seria resolvida rapidamente.

Meu estado foi se agravando e meus sofrimentos se tornaram tão terríveis que reclamei enfim aos médicos que dessem ao menos um alívio qualquer. O dr. Levine me repetiu hoje que os médicos nada podiam fazer e que a única porta de salvação era a partida imediata para o estrangeiro.

Ora, à noite, o médico do C. Central, camarada Potiomkine, avisou à minha mulher que a Com. Médica decidira não me enviar ao estrangeiro e de me tratar mesmo na Rússia.

A razão era que os professores especialistas insistiam por um tratamento prolongado no estrangeiro, julgando uma certa estadia inútil e que o Com. Central só consentia em me dar para a minha cura uma soma máxima de 1000 dólares (2000 rublos) dizendo ser impossível dar mais.

Como você sabe, dei no passado a nosso Partido outra coisa que um milhar de dólares, em todo o caso, mais do que custei ao Partido, desde que a revolução me privou de todos os meios e que não posso mais me tratar às minhas custas.

Mais de uma vez, editores anglo-americanos me propuseram, por pagamentos de “minhas memórias” (à minha escolha, com a única exigência que dissessem respeito ao período das negociações importantes) somas que subiam até a 20.000 dólares. O Bureau Político sabe perfeitamente que sou bastante experimentado como jornalista e como diplomata, para publicar uma só palavra sequer prejudicial ao nosso Partido e ao nosso Estado.

Ele não ignora tampouco que fui muitas vezes censor no Comissariado dos Negócios Estrangeiros e que na qualidade de embaixador também o fui para todas as obras russas editadas nos países onde servia. Há alguns anos pedia ao Bureau Político a permissão para editar esta memórias, tomando o compromisso de entregar ao Partido todos os honorários, pois me custa aceitar do Partido dinheiro para me tratar. Em resposta, fui prevenido por uma decisão do Com. Central, nos termos da qual “é formalmente proibido aos diplomatas ou aos camaradas tendo tomado parte no estrangeiro publicar no estrangeiro suas reminiscências ou fragmentos de memórias sem exame prévio dos manuscritos pelo colégio do Comissariado dos Negócios Estrangeiros e o Bureau Político do Comitê Central”.

Sabendo das irregularidades e dos atrasos que seriam ocasionados por esta dupla censura, resolvi em 1924 declinar de qualquer proposta. Encontrando-me recentemente no estrangeiro, recebi uma nova oferta garantindo-me 20.000 dólares de honorários.

Sabendo, porém, como entre nós se falsifica a história de nosso Partido e da Revolução, não julguei possível emprestar o meu concurso a uma tal falsificação, não tendo dúvida de que toda a censura do Bureau Político (e os editores fazem questão do caráter pessoal das reminiscências, isto é sobre a caracterização dos personagens que nela desempenharam algum papel) consiste em não admitir uma justa apreciação dos personagens e de seus atos, nem destes nem daqueles, isto é nem dos chefes autênticos da Revolução, nem dos dirigentes atuais elevados a esta dignidade. Eu não acho possível editar memórias sem chocar de frente o Bureau Político e por conseguinte não vejo meio de me tratar sem receber dinheiro do Com. Central que, por todo o meu trabalho revolucionário de vinte e sete anos, acha razoável calcular a minha vida e a minha saúde numa soma não passando de 2.000 rublos.

No estado em que acho atualmente me é evidentemente impossível realizar um trabalho qualquer. Se, a despeito de sofrimentos infernais, tivesse a força de continuar a série de meus cursos, uma situação desta ordem exigiria sérios cuidados, seria preciso me transportar por toda parte em “padiola”, me ajudar a procurar nas bibliotecas e nos arquivos os livros e materiais necessários, etc…

No decorrer de minha última doença, tive a minha disposição todo o pessoal de uma embaixada: agora, segundo minha “categoria”, não tenho nem mesmo o direito a um secretário particular. Além disso, a desatenção para comigo de que se tem dado provas nestes últimos tempos, por ocasião, das minhas doenças (como agora; em que estou há dias praticamente sem socorro e em que o tratamento elétrico prescrito pelo prof. Davidenko não me é aplicado), mostra que não posso contar nem mesmo com uma coisa tão elementar como um transporte em padiola.

Mesmo se fosse tratado, se fosse mandado ao estrangeiro, para a estadia indispensável, minha situação continuaria crítica no mais alto ponto: a última vez passei mais ou menos dois anos num estado de polinevrite aguda, sem fazer um movimento; não tinha então outra doença a não ser esta e no entanto todas as outras que contraí depois são consequências desta; agora já me descobriram seis. Mesmo se pudesse daqui por diante consagrar o tempo necessário ao tratamento, é duvidoso que possa contar com uma prolongação útil de minha vida. Agora então que se considera impossível tratar-me seriamente (pois o tratamento na Rússia e, segundo os médicos, sem esperança, e o tratamento no estrangeiro só por 2 meses também o sendo) minha vida perde todo o seu sentido, mesmo sem que se leve em conta minha filosofia esboçada acima. É duvidoso que se possa admitir como necessária uma vida passada em padecimentos incríveis, estando-se pregado numa cama sem movimento e sem possibilidade de realizar um trabalho qualquer.

É por isto que digo que o momento chegou em que é indispensável por um termo a esta vida.

Conheço a opinião geral do partido, contrária ao suicídio, mas suponho que todos aqueles que ficarem sabendo de minha situação não me condenarão por isto.

Além do mais, o professor Davidenko acha que a causa da repetição da minha polinevrite aguda a emoção destes últimos tempos… Se estivesse com saúde teria achado em mim a força e a energia suficientes para lutar contra a situação criada no Partido, mas no meu estado atual, reputo insuportável uma situação em que o Partido tolera silenciosamente a sua exclusão de suas fileiras, apesar de estar absolutamente persuadido de que, cedo ou tarde, haverá no Partido uma crise que o obrigará a rejeitar aqueles que o conduziram a uma tal vergonha… Neste sentido, minha morte é um protesto contra aqueles que levaram o Partido a uma situação tal que ele não possa de nenhum modo reagir contra este opróbrio.

Se me é permitido comparar o que é grande com o que é pequeno, direi que a importância do acontecimento histórico que é a sua exclusão e a de Zinoviev, expulsão que há de abrir inevitavelmente um período termidoriano na nossa Revolução, e o fato que me reduzem depois de 27 anos de trabalho revolucionário nos postos responsáveis do Partido, a uma situação em que nada mais me resta a fazer do que me meter uma bala na cabeça, estes 2 fatos, torno a dizer, ilustram um só e único regime do Partido.

Talvez que os dois acontecimentos, o pequeno e o grande juntos, produzirão o abalo que acordará o Partido e o fará parar no caminho que vai dar em Termidor.

Sentir-me-ia feliz, se pudesse acreditar, que assim será, pois saberia então que não iria morrer em vão; entretanto, mesmo tendo a firme convicção de que a hora do despertar do Partido virá, não posso estar convencido de que ela já tenha soado agora… Entretanto, não duvido apesar de tudo de que a minha morte hoje seja mais útil que do que a prolongação de minha vida.

Caro Leon Davidovitch, estamos ligados por 10 anos de trabalho comum e, ouso, esperá-lo de amizade pessoal, e isso me dá direito de lhe dizer no momento do adeus, o que em você me parece ser fraqueza.

Nunca duvidei da justeza do caminho traçado por você, que sabe que durante mais de 20 anos marchei com você, desde a “revolução permanente”. Mas sempre pensei que faltavam a inflexibilidade, a intransigência de Lênin sua resolução de ficar, sendo preciso, sozinho no caminho que reconheceu como certo, na previsão da maioria futura, no reconhecimento futuro, por parte de todos da exatidão desse caminho. Você sempre teve razão politicamente, a começar por 1905, e muitas vezes lhe contei ter ouvido, com os meus próprios ouvidos,  Lênin reconhecer que em 1905 não fora ele mas você que tivera razão.

Defronte da morte não se mente e o repito agora de novo…

No entanto muitas vezes renunciou você a sua retidão em favor de um acordo, de um compromisso que sobre-estimava. É um erro. Eu o repito, politicamente sempre você teve razão e agora mais do que nunca. Um dia, o Partido o compreenderá e a História há de reconhecê-lo.

Assim, não receie hoje se alguém se separar de você, nem sobretudo se muitos não vêm para o seu lado tão depressa quanto nos todos o desejávamos. Você tem razão, mas a condição da vitória de sua verdade está precisamente numa estreita intransigência na mais severa rigidez, no repúdio de todo compromisso, exatamente como isto foi sempre o segredo da vítima de Illitch.

Por diversas vezes tive vontade de lhe dizer isto, mas só agora me decide a fazê-lo na hora do adeus.

Duas palavras pessoais. Atrás de mim ficam uma mulher, uma filha doente e um rapazola mal adaptados a uma vida independente. Sei que nada pode você fazer agora por eles. Sob este ponto não posso contar em coisa nenhuma com a direção atual do Partido.

Mas não tenho dúvidas de que o dia não está longe em que você há de retomar o lugar que lhe é devido. Então, não se esqueça dos meus. Eu lhe desejo energia uma valentia iguais às de que tem dado provas até o presente, e a mais rápida vitória. Eu o abraço fortemente. Adeus.

Moscou, 16 de novembro de 1927.

A. Joffe

Carta publicada na internet no site marxists.org, a partir da publicação feita pelo  Jornal Luta de Classe, órgão da Oposição da Esquerda no Brasil  nº 2, ano 1, junho de 1930.

Há um pós-escrito de Jofee que somente consta do site Alencontre em que está escrito:
” Escrevi esta carta na noite entre 15 e 16, e, hoje 16 de novembro, Maria Mikhailovna foi à comissão médica para insistir que me enviassem ao exterior, ainda que fosse por um ou dois meses. Responderam-lhe que, segundo os especialistas, uma curta estadia no exterior seria totalmente inútil ; e lhe informaram que a comissão havia decidido me transferir imediatamente ao hospital do Kremlin. Assim eles me negaram inclusive uma curta viagem ao exterior para melhorar minha saúde, ao passo que os médicos estavam de acordo que uma cura na Rússia é inútil.
Adeus, querido Leon Davidovitch, seja forte, é preciso sê-lo, é preciso também ser perseverante, e não guarde rancor de mim.