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OPRESSÕES

A abolição do grito de ‘bicha’ e a LGBTfobia no futebol

Por: Isabel Fuchs, de Campinas, SP

Nesta semana, a ESPN noticiou que a Mancha Verde, maior organizada do Palmeiras, decidiu por abolir o grito “bicha” das arquibancadas. Algumas horas após a notícia ser veiculada, a página oficial da torcida no Facebook desmentiu a história, dizendo “como vamos pedir para abolir um grito que nunca gritamos, ou puxamos?”. Em seguida, ao final da nota, ainda afirmam que “a Mancha não se envolve em assuntos políticos, religiosos e muito menos de orientação sexual”.

O que poderia ser considerada uma atitude progressiva de uma das maiores torcidas do estado de São Paulo acabou se tornando um episódio certamente lamentável. O grito de “bicha” quando os goleiros se posicionam para bater o tiro de meta, segundo a nota da torcida, é um legado do futebol moderno, que chegou ao Brasil com a Copa do Mundo.

Afirmar que a torcida nunca se utilizou do grito “bicha” nos estádios é uma inverdade, talvez não utilize o grito na hora que os goleiros se posicionam para bater o tiro de meta, mas gritos homofóbicos são entoados por diversas torcidas, inclusive a Mancha Verde. Um dos maiores rivais do Palmeiras, o São Paulo é alvo de provocações homofóbicas constantemente.

Além disso, é importante lembrar de um episódio na história da Mancha, quando se iniciaram boatos de que a diretoria palmeirense estava negociando a contratação de Richarlyson, meia que sofre com perseguição homofóbica dentro do futebol. Neste período, a organizada do Palmeiras realizou um protesto no CT do time, erguendo uma faixa com os dizeres “a homofobia veste verde”. Além disso. houve ainda um episódio em que José Cyrillo Júnior, então diretor administrativo do Palmeiras, foi processado pelo meia, por ter insinuado que o mesmo era homossexual. Bizarramente, o juiz que julgou o processo não considerou o diretor administrativo como culpado, afirmando que “futebol é coisa para macho”.

Exemplos de homofobia no futebol e, principalmente, entre as torcidas são intermináveis. Infelizmente, o futebol é visto como um esporte para machos, o que exclui de antemão as mulheres e os LGBTs.

Talvez, de fato, a Mancha não gritasse “bicha” nos tiros de meta, o que não significa que a torcida nunca proferiu ofensas homofóbicas. É inclusive sintomático que a torcida tenha, tão rapidamente, se disposto a negar o conteúdo da matéria, sem afirmar que não gritava “bicha” por qualquer comprometimento com a luta anti-homofobia, mas simplesmente por querer fazer transparecer a ideia de que o centro da torcida é o apoio ao time e não proferir ofensas contra adversários.

A realidade dos estádios de futebol é bem diferente, quem é LGBT e já passou pela experiência de ir aos campos de futebol assistir ao seu time sabe que o ambiente não é convidativo para nós, muito pelo contrário. Está ainda muito viva na minha memória a lembrança do selinho que Emerson Sheik, ex-jogador do Corinthians, deu em um amigo e a repercussão que o ato tomou. Na época, torcedores de algumas organizadas foram ao CT do clube, protestar contra o jogador, afirmando que o timão é “lugar de homem”.

mancha

Recentemente, a FIFA decidiu começar a punir os gritos de “bicha” nos estádios. Este grito é um marco das torcidas, que entoam por todos os cantos do estádio estes dizeres homofóbicos. A CBF foi multada mais de uma vez por conta disso, agora a questão mais bizarra nessa história é que a Conmebol tentou justificar os gritos homofóbicos e queria que a FIFA revisse as punições e não as aplicasse mais contra os times sul-americanos, sob a justificativa de que o grito é cultural e não tem conteúdo anti-gay.

Mas a homofobia não é monopólio dos sul-americanos, há casos escandalosos de homofobia por toda a Europa. Um episódio emblemático foi quando um torcedor sueco foi atacado por neonazistas, ele foi esfaqueado e acabou sendo internado em estado grave. Além disso, recentemente, assim como no caso de Richarlyson, torcedores de um time russo encaminharam um manifesto à diretoria do Zenit, pedindo que o clube não contratasse atletas negros e gays.

A realidade dos LGBTs no futebol é chocante, não são aceitos nos estádios e não são aceitos dentro de campo. São pouquíssimos os atletas que se assumem publicamente como LGBT’s e há um caso muito emblemático na Inglaterra, quando em 1990 Justin Fashanu se assumiu gay ao jornal The Sun, a carreira do atleta declinou e ele se suicidou alguns anos depois. O irmão de Justin também era jogador de futebol e na época se colocou contra o próprio irmão.

Por conta desta realidade nefasta, não podemos secundarizar a atitude da Mancha, que tão rapidamente fez questão de não assumir um papel importante na luta contra a homofobia.

Mas, a realidade não é de total desesperança, a torcida Banda Alma Celeste, do Paysandu, recentemente decidiu abolir qualquer tipo de grito ou música que remeta à ofensas racistas ou LGBTfóbicas, chegando inclusive a levantar um bandeirão LGBT no estádio.

Assim como a atitude da torcida do Paysandu nos faz ter esperança, o fato de a FIFA começar a punir os gritos homofóbicos também é sinal positivo. Porém não nos enganemos, apesar desta medida mínima e necessária a FIFA nada mais faz para combater a homofobia. Um grande exemplo disto é a realização da Copa do Mundo de 2018 na Rússia. As leis de Putin contra os LGBT’s geraram protestos em todo mundo, mas a FIFA parece pouco se importar com o fato quando aceita a candidatura do país e não revoga seu direito de ser o país sede.

Quando das Olimpíadas de Inverno, que foram realizadas na Rússia em 2014, diversos protestos foram realizados em todo mundo contra a realização do grande evento no país, exatamente por conta da legislação antiLGBT que vigora no país. Diversos atletas LGBTs assumidos estavam com medo de sofrerem retaliações no país e consideravam não participar das Olimpíadas. Mesmo sob uma intensa onda de protestos o COI (Comitê Olímpico Internacional) decidiu manter as Olimpíadas no país, o que marca o grande retrocesso e falta de comprometimento real da entidade com o combate à lgbtfobia.

Curiosamente, os mesmos protestos não ocorrem com tanta intensidade com a realização da Copa do Mundo, isto porque o universo do futebol é extremamente antiLGBT, o que já não acontece com tanta força nas modalidades das Olimpíadas de Inverno, que tem alguns atletas olímpicos assumidamente LGBTs.

Seja como for, a luta contra a LGBTfobia no futebol dá pequenos passos no Brasil, todavia sem o apoio efetivo dos clubes e das entidades que gerem o futebol este avanço tem limites concretos. É preciso que se fortaleça um combate efetivo, a questão da masculinidade atrelada à violência e ao esporte tem traços fortíssimos, que precisam ser combatidos. Sem este combate é impossível que o futebol deixe de ser um ambiente hostil aos LGBTs e às mulheres.