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EDITORIAL

Agravamento da tensão na península coreana

Por Waldo Mermelstein, São Paulo/SP

Os mais de cem dias de governo Trump foram marcados por intensa atividade diplomática e militar. Com relação à Ásia, a realidade mostrou que um enfrentamento imediato mais forte com a China era um caminho demasiado arriscado. Mesmo mantendo a estratégia de longo alcance da burguesia americana de conter a China em sua ascensão aos primeiros lugares na hierarquia mundial de estados, a tática se demonstrou mais mediada. Longe ficaram as ameaças de declarar a China uma nação manipuladora de sua moeda, a ameaça de reconhecer Taiwan como estado independente ou a menção de bloqueio naval às ilhas reivindicadas pela China no Mar do Sul da China.

O caminho inicial empreendido por Trump passou por vias mais tradicionais, ou seja, o reforço dos laços militares com o Japão e a Coreia do Sul (países que estão sob a “proteção” nuclear americana). Isso incluiu a antecipação da instalação do sistema de defesa antimísseis THAAD, que além de servir como proteção contra os misseis norte-coreanos tem, segundo comentaristas militares, teoricamente o poder de monitorar as principais instalações nucleares chinesas.

Além disso, incluiu também, o estimulo ao rearmamento agressivo do Japão, que participou de manobras navais de uma frota americana que continha o porta-aviões (o Carl Vince). O governo japonês também prepara a instalação de mísseis Tomahawk em seus navios para poder atingir os lançadores de misseis chineses e norte-coreanos.
Por outro lado, como anunciou o primeiro-ministro Abe, o governo japonês pretende aprovar a reforma da constituição do país até 2020, para o que precisará de dois terços dos votos nas duas câmaras do Parlamento e a aprovação em um referendo pelo voto popular.

 

Negociações e interesses em jogo

Em março, após um aumento das tensões, o Secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, visitou a China com o objetivo de abrir um diálogo oficial com presidente chinês, Xi Jin Ping.  Com isso, abria também o caminho para um encontro direto entre Beijing e Washington.

O primeiro encontro de Trump com Xi Jin Ping foi realizado no mês seguinte, em abril, na Flórida, num resort em Mar-a-Lago pertencente à Trump. Depois de dois dias de conversações, acordou-se um roteiro de negociações comerciais, baseado nas exigências americanas de maior acesso de produtos e investimentos no mercado chinês. Foi estipulado um prazo de 100 dias para sua conclusão, o que poderia coincidir com uma futura visita de Trump à China.

Outra contrapartida que os EUA exigiram da China no encontro da Flórida, foi a de exercer uma maior pressão sobre a Coreia do Norte, quanto ao desenvolvimento de mísseis de médio e longo alcance e também o de armas nucleares.

No decorrer do mês de abril, após o encontro, a Coréia do Norte intensificou ainda mais os testes de misseis, uma ameaça que exacerbou ainda mais a tensão na região, particularmente com a Coréia do Sul e o Japão.

 

A península coreana

 

Korean-Peninsular

A situação na península coreana remonta à divisão do país durante a Guerra Fria e consolidada após a Guerra da Coreia, entre 1950 e 1953. Uma guerra que foi fruto da tentativa americana de atacar a revolução chinesa de 1949 ou pelo menos evitar que a região norte da Coreia permanecesse nas mãos das tropas de Kim Il Sung, dirigente comunista e avô do atual líder da Coreia do Norte.

O resultado foi uma guerra sangrenta que resultou em cerca de 2 milhões de mortos, em sua esmagadora maioria norte-coreanos e chineses. Ao custo de imensas perdas e a utilização de centenas de milhares de soldados e perdas brutais, a China evitou que a parte Norte da península caísse em mãos americanas. A Coreia do Sul tornou-se quase um protetorado americano, com dezenas de milhares de soldados estacionados no paralelo 38, fronteira entre ambos os países, recebendo grande ajuda americana.

 

As razões da Coreia do Norte

Várias mudanças fundamentais ocorreram na Coreia do Norte após o final da Guerra Fria. Em um ritmo mais lento do que o que ocorreu na China e na ex-União Soviética, o regime começou a privatizar partes da economia; abriu regiões para empresas estrangeiras, ao estilo das zonas econômicas especiais na China dos anos 80; os camponeses foram autorizados a comercializar a produção das terras que cultivam;  os preços dos bens mais consumidos foram brutalmente aumentados com a retirada de subsídios, o que penalizou a população mais pobre. Como consequência, segundo o economista Michael Roberts, “cerca de 75% dos ingressos das famílias norte-coreanas agora provêm não do estado, mas de atividades econômicas privadas diversas – atividades que são tacitamente toleradas pelo governo”.

Mas a dinastia Kim não pretende perder o controle do país.
A sorte de outros regimes ditatoriais pelo mundo (Iraque, Líbia, por exemplo) fez com que o governo fosse cauteloso em abdicar das suas armas atômicas (qualquer que seja realmente o estado de desenvolvimento delas enquanto armas ofensivas) e seus projetos de mísseis de médio e longo alcance.

 

A crise na Coreia do Sul e as eleições de maio

Como se não bastasse o permanente conflito geopolítico com o Norte e seu agravamento com a pressão direta da administração Trump, o regime político sul-coreano está seriamente abalado desde a deposição da presidente direitista Park Geun Ye.

O declínio de suas exportações (que chegam a representar 50% do PIB), a queda acentuada na taxa de lucro dos capitalistas que levou a uma diminuição dos investimentos e a queda acentuada no aumento da produtividade, fizeram aumentar os ataques ao nível de vida dos trabalhadores.

As consequências sociais foram pesadas: aumento significativo na desigualdade social, no endividamento das famílias, no custo de vida, no desemprego, em particular entre os jovens (que chega a 12%), na precarização da mão de obra (que atingiu 34% dos trabalhadores em 2011) e no índice de pobreza, em particular entre os idosos (em que chega a 48%!). Essa situação levou a importantes mobilizações lideradas pelos sindicatos e pela central sindical KCTU, como, por exemplo, a greve inédita que paralisou a Hyundai em 2016.

O trágico acidente de um ferry que levou à morte de 250 estudantes em 2014, a incapacidade do governo em realizar seu resgate, aumentando as dimensões do desastre, e a violenta repressão contra os familiares das vítimas ajudaram a preparar o terreno para as gigantescas mobilizações contra a corrupção do governo.

Além da corrupção, o teor das mobilizações incluiu também outros temas como é o caso das demandas contra os monopólios que concentram boa parte do PIB local. Somente a Samsung, cujo presidente em exercício também está sendo processado, controla cerca de 20% de tudo o que se produz no país.

Outras reivindicações presentes das mobilizações se relacionavam aos direitos das mulheres, dos LGBTs e contra a instalação do sistema de mísseis THAAD. Aliás, a instalação desse sistema continua encontrando oposição ativa na população.

Mesmo que as organizações sindicais e políticas da classe trabalhadora tenham participado ativamente das mobilizações, durante os anos do governo de Park sofreram uma forte repressão. Para se ter uma ideia, o presidente da KCTU, Han Sang-gyun, foi preso e condenado a 3 anos de prisão por liderar um protesto em novembro de 2016.

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Prisão do dirigente da KCTU no ano passado. Foto: Reuters/News1

Nas eleições que se celebram até o dia 9 de maio – começaram na quinta-feira passada -, o líder é Moon Jae-in, do Partido Democrático da Coréia, que se declarou contra o sistema THAAD e prometeu submetê-lo a um referendo popular, além de ser favorável a uma política de concessões para a unificação da península sob a liderança do capital sul-coreano.

 

As incógnitas

Em primeiro lugar, Trump e seus secretários têm combinado chamados à negociação com ameaças e demonstrações de força em condições em que não haveria reação, como no caso dos bombardeios na Síria e no Afeganistão.

A última declaração pública de Tillerson, dada no dia 28 de abril, durante a reunião do Conselho de Segurança da ONU, foi ameaçadora. Afirmou que todas as opções – entenda-se militares, econômicas e diplomáticas – estavam sobre a mesa.

Entretanto, no terreno, até agora não se confirmou o anúncio do envio de uma frota para as costas coreanas. Tudo se concentrou na aceleração da instalação de parte do sistema THAAD, na realização de um dos maiores exercícios militares conjuntos entre forças armadas sul-coreanas e na chegada de um submarino nuclear no porto de Busan, na Coreia do Sul. Mesmo em relação à instalação do sistema antimísseis a situação não está completamente clara, pois houve declarações controversas sobre a exigência de pagamento de 1 bilhão de dólares ao país para sua instalação.

Apesar da gravidade das ameaças americanas contra a Coreia do Norte e as promessas chinesas de deter o programa nuclear de Kim, tampouco os chineses desejam ir muito longe nesse caminho. Por isso as sanções que adotaram contra o regime norte-coreano, por exigências dos EUA, foram limitadas à suspensão até o final do ano das importações de carvão, que representam 42% das vendas para a China, que, por sua vez, é o destino de 90% das vendas norte-coreanas. Além disso, foram suspensos os voos entre ambos os países. As razões da cautela chinesa são bem claras: se houver uma queda abrupta do regime de Pyongyang, pode haver um afluxo de milhões de refugiados, além do que a China pode se ver com tropas americanas em sua fronteira.

Ao mesmo tempo, mostrando a sua crescente influência na península, o regime chinês, principal parceiro comercial da Coréia do Sul, estabeleceu sanções econômicas ao país pela instalação do sistema antimísseis. Várias empresas coreanas, inclusive o grupo de supermercados Lotte, o 5º maior conglomerado sul-coreano, teve um grande número de suas lojas interditadas na China e o turismo dos chineses, que representam 50% do total, foi suspenso.

Também permanece inalterado o fato que, mesmo supondo que a Coreia do Norte não tenha capacidade nuclear real ou os americanos consigam aniquilá-los em um ataque preventivo, cerca de 10 mil peças de artilharia pesada estão na fronteira entre ambos os países. Em caso de algum ataque americano poderiam atingir a região metropolitana de Seul que fica a sessenta quilômetros e possui mais de 20 milhões de habitantes.

Finalmente, é preciso ver como atuará o novo presidente da Coreia do Sul a ser eleito na terça-feira dia 9 em relação aos vários temas. Se cumprir o que prometeu, dificilmente terá uma postura tão dura contra o vizinho do Norte, ainda mais com os abalos sofridos pelas manifestações do final do ano e pela renovação do movimento social no país. Nessa hipótese, provavelmente sofreria intensa pressão americana. A passagem de Tillerson por Seul após visita à Beijing em março, não foi casual. Ele realizou conversas com todos os candidatos que concorreram às eleições de 9 de maio próximo.

Como se vê, existe um conjunto de incertezas e de alternativas complexas no centro mais ostensivo da disputa entre Estados Unidos e China. Se a situação atual é de um impasse, o futuro das tensões na península sul coreana ainda é uma incógnita.