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As mobilizações de 1977 e a greve dos artistas

Por: Robson Corrêa de Camargo, de São Paulo

Memórias da luta pela anistia e pelas liberdades democráticas no Brasil

Em memória de Maria Cecília Nascimento Garcia, militante perene que compartiu comigo um importante pedaço da história da democracia brasileira.

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O texto aqui desenvolvido é resultante de um processo de exercício de memória proposto por uma das pesquisadoras da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo[1]. Daí se tratar de fatos pessoais, mas que também contam uma história desconhecida por muitos. Talvez a maioria dos que se interessam pelo processo de abertura brasileiro: o papel e a importante luta dos artistas de São Paulo pelas liberdades democráticas, durante o ano de 1977. Pessoas ligadas à classe teatral, à televisão e ao cinema, grande parte organizada em torno da oposição sindical, desempenharam um papel fundamental e de primeira linha na luta contra a ditadura e retomada do Estado de Direito.

A ditadura instalada após o golpe civil-militar,em 01 de abril de 1964, no Brasil,

[…]destruiu livros e documentos, invadiu campi universitários, proibiu leituras de obras e de autores considerados antifascistas, socialistas, comunistas entre outros. Censurou textos, livros, letras de músicas, peças de teatro e criou a função do censor em redações de jornais e em veículos de comunicação; legitimou a delação, a espionagem entre vizinhos, a escuta telefônica e criou um clima de suspeição, incômodo e de vigilância permanente [2].

Pessoas como Renato Consorte, Lélia Abramo, Claudio Mamberti, Paulo Autran, Ruthnéia de Moraes, ativistas de primeira linha que hoje, infelizmente, não se encontram mais entre nós, sofreram com os anos de desmandos e lutaram contra o autoritarismo. Merecem, portanto, um brado de todos os que participaram daquelas mobilizações e, ao mesmo tempo, para que todos relembrem, corrijam ou acrescentem mais ao mosaico dessas esparsas memórias e contribuam, de alguma forma, para a reconstrução dessa história, para que ela não se dissolva no vácuo do esquecimento. Muitos outros nomes merecem ser aqui lembrados, como Regina Duarte, por exemplo. Felizmente, foram inúmeras vozes contestatórias e, infelizmente, a memória também trai. Cometerei o pecado de não lembrar de todas.

Em 1976, ano em que me formei na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, entrei para a Liga Operária, uma pequena organização trotskista. Comecei a militância sem muito saber do que se tratava, embora já com um histórico de participação no movimento estudantil desde os anos do ginásio. Porém, a decisão de entrar em uma organização clandestina foi tão importante que meu codinome, nome de guerra para fugir da polícia, era Marco. E, sem dúvida, foi um marco: anos de militância no movimento secundarista, no movimento estudantil da ECA/USP e, depois, como artista profissional.

Minha primeira briga interna, logo após entrar na Liga Operária, foi tentar convencer os “operários” da organização que havia possibilidade de um grande trabalho entre os artistas e técnicos em São Paulo. Essenciais neste processo de iniciação em minha militância partidária foram o operário Celso Brambilla, que eu conheci em um festival de teatro em São Carlos e a estudante de História da USP Márcia Bassetto Paes, que eu conheceraainda no Colégio Alberto Levy, e que faria teatro comigo nos anos de estudos como diretor de teatro, na ECA/USP.

Minha briga começou, primeiramente, dentro da Liga Operária para fazermos um trabalho no Sindicato dos Artistas e Técnicos do Estado de São Paulo. Ganhei reforços com a entrada na organização, quase em seguida, da atriz Maria Cecília Garcia, a Cilinha. Eu já tinha dirigido uma peça profissional infantil, conhecia todo mundo no meio, que não era muito grande, e percebia que aquilo era um barril de pólvora. Havia muita gente consciente, muitas posições críticas.

No início dos anos 1970, teve uma corrente, também trotskista, chamada Tendência Sindical Arte Livre, que eu acompanhei através de algumas publicações e do jornal. Entre seus militantes, senão me engano, estavam Gabriela Rabelo, Francisco Solano e Douglas Franco. Pessoas com as quais eu havia tido contato nostempos do Grupo de Teatro Casarão[3] já não estavam em atividade político-sindical quando iniciei profissionalmente nesta vida.

Com muito custo conseguimos convencer a Liga Operária,           em fins de 1976, a ser um pouco menos operária, não sem alguns rangeres de dentes. Sim, os artistas de São Paulo, como foi comprovado no ano seguinte, foram grandes batalhadores pela democracia no Brasil. Ruth Escobar, Renato Consorte, Lélia Abramo, Claudio Mamberti, Gabriela Rabello, Francisco Solano, Claudia Alencar, Gésio Amadeu, Dulce Muniz, Ruthinéia de Moraes, entre outros. Conseguimos, com muito tato, impulsionar atividades conjuntas com todos, atividades que tiveram muita repercussão na imprensa, como veremos mais à frente. Nós éramos quase nada; não passávamos de inexpressivos militantes da Liga, mas com muita vontade de colocar fogo na panela de pressão da democracia.

Quando entrei na organização, comemorava-se o fato de termos chegados a 100 militantes. Um grande crescimento que eu olhava com certa incredulidade. Embora inexperientes,fomos os primeiros a tirar um sindicato das mãos dos pelegos no processo de  democratização. Apesar de ser o primeiro dirigente sindical trotskista da então Liga Operária, depois Convergência Socialista, vocês não acharão meu nome nos documentos que contam a história da organização. Eu não era, não fui e não sou operário. Mas a Liga Operária teve um papel no processo que eu passo a relatar.

Nesta época, eu e Maria Cecília fazíamos muitos trabalhos artísticos na periferia de São Paulo; como Vila Maria, Penha etc. Levamos Brecht, Boal, com a intenção de agitar culturalmente a periferia paulista. Uma atividade clandestina, naturalmente, desenvolvida em auditórios de paróquias e clubes. Havia muitos grupos de teatro semelhantes, alguns carregavam um discurso mais explícito sobre a tal da luta de classes, outros mais artísticos; muitos deles organizados por artistas que saíram do Teatro de Arena, da última fase. Outros comoo de Cesar Vieira e seu União e Olho Vivo. Íamos, inocentes e decididos, levar nossas verdades. Parei com o teatro popular em 1977, quando iniciei a militância. Em minha dissertação de mestrado, publicada como O Mundo é um Moinho, descrevo um pouco deste fenômeno do esgarçamento do agitprop brasileiro, a experiência de teatro popular no Brasil e o Teatro Popular do Sesi de Osmar Rodrigues Cruz.

Em 1977, a interseção arte e política começava a se esvair e a política voltava ao proscênio, mostrava-se outros lugares mais adequados ao discurso político. Foi quando organizamos a oposição ao Sindicato dos Artistas. Oposição de verdade, classista. Éramos nós e os bancários em São Paulo, dispostos a atuar nos movimentos. Começamos a participar do Comitê em Defesa dos Presos Políticos – que virou depois o Comitê pela Anistia, e se reunia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a PUC. Fomos a primeira oposição a ganhar um sindicato no ano seguinte, em 1978. Havia o Sindicato dos Jornalistas, que era bastante combativo na época, o Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias de Couro, dirigido por Paulo Skromov, e nós, que assumimos o Sindicato dos Artistas, tendo como presidente Lélia Abramo.

A greve dos dubladores foi, na arena sindical, o primeiro fato relevante em 1977. Uma greve longa, levada por um pequeno – e invisível – setor, cujo principal reivindicação era o aumento do salário. Embora suas lideranças tenham sofrido perseguições, pois não conseguiram trabalho facilmente depois de seu término, acabou vitoriosa para a categoria. O pagamento da dublagem passou a ser por hora trabalhada e não mais pelas pequenas cenas (loop), uma das importantes reivindicações da categoria.

O movimento dos dubladores cresce também em importância, na mesma proporção que foi apagada da história das mobilizações do período. Uma das razões é porque ocorreu por fora dos aparatos, dos partidos e dos sindicatos. Nós mesmos, da organização Liga Operária, apenas emprestávamos nosso apoio. No Rio de Janeiro, Jorgeh Ramos e em São Paulo Osmiro Campos, entre outros,f oram as principais lideranças durante os seis meses de paralização.

Chico José, um dos ativistas durante a greve, me criticava porque eu chamava a todos de ‘companheiros’ ao falar nasassembleias, termo não bem aceito, pois mostrava uma coloração comunista e eles não queriam ter identificações políticas, o que dava cadeia, tortura e até morte, na época. Entendemos, mudamos a nossa forma de chamá-los e ficamos muito amigos.

Esta greve foi feita com o apoio, mas com muita desconfiança, da direção do sindicato já então com Lélia Abramo na presidência. A principal razão residia no fato de os trabalhadores de dublagem serem independentes do sindicato. Mas eu e Maria Cecília, a Cilinha, achávamos que devíamos apoiá-los.

Em fins de abril de 1977, dias antes do feriado de primeiro de maio, ocorreram as prisões de ativistas sindicais que distribuíam um panfleto nas estações de trem do ABC, região operária de São Paulo, sobre o dia dos trabalhadores, fazendo alusão à sua origem, em Chicago. Vieram me falar das prisões, a Cilinha era a dirigente da célula que já contava com oito ou nove pessoas: Dulce Muniz, Cláudio Mamberti e vários outros. No período, enquanto oposição sindical, já reuníamos cerca de cem pessoas no teatro Ruth Escobar, teatro do meio. Foi quando aconteceram as prisões de Celso Brambilla, de Márcia Bassetto Paes e dos outros. O pessoal chegou para mim e falou: Olha precisamos fazer alguma coisa senão os caras vão morrer. Celso e Márcia eram dois grandes amigos e eu temia que a polícia viesse atrás de mim, pois certamente estava nos cadernos de telefones dos dois, pela antiga amizade.

Bem, eu e Cilinha éramos dois jovens imberbes, quer dizer, eu, no caso, e não mandávamos em nada no meio artístico. Então a nossa primeira opção foi procurar a Ruth Escobar, a mais combativa e porra-louca para os padrões da época. Diziam as más línguas que ela podia ser radical porque era amante de um general. Mas isso era fofoca, porque ela era muito de enfrentar, talvez por ser portuguesa, dirigir um festival internacional, procuravam é achar formas de justificar a extrema atividade dela e a inação da maioria, cheia de um justificável medo. De qualquer forma, ela tinha base, costas quentes, nome internacional e nós não. Nós fomos falar com a Ruth com muito cuidado, porque na época ninguém sabia se alguém poderia ser um policial ou não. Mas a gente já a conhecia do movimento sindical, fomos ao teatro Ruth Escobar e falamos:

Ruth aconteceu o seguinte, tem uns companheiros nossos que foram presos, provavelmente estão sendo muito torturados e precisamos fazer alguma coisa para parar isso.

E ela responde o seguinte, depois de refletir um pouco:

Concordo, temos que fazer alguma coisa, mas não adianta eu propor nada. Ninguém vai dar bola. Sou conhecida como radical e não vai adiantar.

Isso era muito verdade. Aí ela pegou um papelzinho e escreveu um bilhetinho assim:

Paulo Autran: tenho alguns amigos de confiança que estão com um problema muito grave. Veja o que você pode fazer.

O Paulo Autran estava ali na Rua Paim, no teatro Maria Della Costa, fazendo A Morte de um Caixeiro Viajante; a Ruth havia avisado que tinha de ir bem antes do início do espetáculo. Chegamos às 6 horas [18 horas] por sorte ele estava lá; mandamos o bilhete, ele pediu para esperar e depois para nós entrarmos no camarim. Aqueles dois moleques, eu e a Cilinha. Os dois morrendo de medo, imagina, naquela época, o que era pedir para alguém fazer alguma coisa contra a ditadura, não é? Com gente presa, censura na rádio, na TV. Entregamos o bilhetinho da Ruth, provavelmente eles já haviam se falado por telefone. Mas explicamos a situação e ele falou: Olha, eu vou ver o que eu posso fazer. Nós vamos fazer alguma coisa, não se preocupem. E ponto. Fomos embora esperando que acontecesse algo. Hoje eu me emociono,  vejam como é importante o papel do individuo na História.

Um tempo depois, uma assembleia de toda a categoria foi convocada, por ele, Paulo Autran e outros artistas de renome. Logicamente ele não apareceu na frente. Ele foi procurar os grandes nomes e se articularam, para não aparecer o nome da Ruth Escobar. Mas a assembleia sim, seria no teatro Ruth Escobar depois da uma hora da manhã. Porque a peça que mais fazia sucesso na época era Gota D’Água [4], espetáculo que durava quatro horas, em um teatro enorme, com mais de 800 lugares. A Bibi Ferreira não foi à assembleia; nenhum dos medalhões foi, mas a assembleia tinha a “benção” deles. Mas a pessoa principal nesse processo é Renato Consorte e eu vou contar porquê.

À assembleia compareceu toda a arraia miúda. Estava todo mundo lá. Aqueles que não são Paulo Autran, mas só com eles não adiantava fazer nada. Podíamos pintar e bordar com os nossos teatros pouco cheios. A gente precisava de algo que unisse as estrelas e a arraia miúda, que desse manchete para os jornais, sem ser provocativa. A primeira proposta que apareceu, a nossa foi fazer uma greve, seguindo os velhos padrões sindicais. Então entra a Ruth Escobar e diz:

Gente, uma greve de teatro não vai servir para nada. Vamos fechar os teatros e é isso que eles querem. Nós temos que mudar. Temos que abrir os teatros gratuitamente para toda a população e em cada um ler uma nota.

Essa ideia foi genial. Porque significava fazer uma assembleia em cada teatro, com o público, desde aquele teatrinho para 30 pessoas até no Gota D’Água. Só que surgiu um impasse, o pessoal da arraia miúda deixar de ganhar um dia não era nada, mas para uma peça do porte de Gota D’Água que recém estreara, com cerca de 30 atores, era um impacto, sobretudo para os produtores. Financeiramente pegava pesado. Ficaram vai, não vai, aquela coisa enrolada. Olha a grana que estava envolvida. A assembleia toda é a favor. Tinha muita gente a favor, só depois de muito enrosca ficou na mão dos produtores, tinha o problema da grana da bilheteria a ser arrecadada, os caches dos atores, que logo abriram mão. Os produtores de Gota titubeavam. Aí aparece o ator Renato Consorte que pede a palavra. Curto e grosso afirma:

Se não for assim eu não faço. 

O Renato Consorte, que fazia o papel de Creonte na montagem paulista, um nome hoje um pouco apagado como militante, mas muito importante na luta pela anistia desde então, e um ator de renome, inclusive na televisão. O pessoal um pouco desconsidera ele porque ele gostava de uma bebidinha, né? Um chopinho… às vezes passava da conta. Uma grande Alma. Mas a atitude dele decidiu a assembleia, porque ele fazia um dos papeis principais. E ele disse, ou faz assim ou não tem a peça neste dia. Todos acabaram concordando. Foi um sucesso. A proposta foi aprovada e foi também tirado um manifesto para ser lido nos teatros.

Eu e Cilinha fomos distribuir esse manifesto justamente na Gota D’Água, em frente ao teatro, mas quando estávamos começando a distribuir encheu de polícia e a gente foi embora. Agora imagina o que foi esse dia. Todos os teatros ficaram lotados, todos, todos, todos, talvez não o do teatro Itália, conhecido como um teatro da alta classe. O espetáculo Gota D’Água, de quatro horas, teve que fazer uma outra apresentação às duas da manhã, porque o pessoal, o público que estava lá fora ficou esperando a outra seção. Deu manchete de capa da Folha Ilustrada: Teatro Grátis, e na matéria de meia página a transcrição do manifesto e o relato de que em muitas casas de espetáculo, ao final da leitura, os atores foram aplaudidos de pé. Os jornais puderam, de alguma forma, divulgar. Saiu em alguma primeira página, como a Folha de S. Paulo, que o teatro aquele dia estava de graça. Na matéria explicavam porque, alguns mais detalhadamente, outros menos.

Foi feito, na verdade, uma grande mobilização pela anistia e com repercussão internacional. Talvez tenha sido o ato político mais importante nesse processo, pois foi aquele com maior repercussão.

A oposição ao sindicato então se fortaleceu muito, nessa época ainda não tínhamos ganhado o sindicato. E o sindicato dos artistas estava omisso em tudo isto. A diretoria estava, de uma certa maneira, sob a influência do PC, que não fazia nada. A presidência era do Juca de Oliveira que só assinava. Quem trabalhava era um secretário que não fazia nada e nem queria fazer, Maranhão. Quando fomos para as eleições o Maranhão nos denunciou junto ao Ministério do Trabalho, fazendo umas acusações políticas. A denúncia pegou muito mal, porque era coisa de dedo-duro. Todas as denúncias foram feitas através de cartas assinadas pelo Juca de Oliveira, que logo foi à público dizer que não foi ele etc, etc, etc. Que ele, Juca, apenas deixara uns papéis em branco assinados e que foram indevidamente preenchidos. Nós acabamos ganhando estas eleições por uma margem muito pequena, porque o aparato sindical era muito forte.

O fato é que este apoio e, principalmente, da forma inteligente como foi levado, aliado às manifestações estudantis desencadeadas a partir da USP, mobilizou milhares de pessoas em todo o país e fez eco em noticiários de jornais estrangeiros sensibilizando, inclusive, a Anistia Internacional. Celso e Márcia relatam o fato de terem sentido diminuir as bárbaras torturas a que estavam sendo submetidos até então. Na ocasião, como ficaram incomunicáveis por 20 dias, não tiveram acesso às notícias, razão pela qual muitos desses acontecimentos até agora, depois de 40 anos, eram desconhecidos. As intensas mobilizações influenciaram, também, no relaxamento de suas prisões preventivas e no tempo record do processo de julgamento, um dos mais rápidos em toda a história da ditadura civil-militar brasileira. Em São Paulo, foram os últimos presos políticos a serem torturados. Das mobilizações estudantis há um filme de 25 minutos, o Apito da panela de pressão, de 1977, feito pelos DCE da USP e da PUC, pode ser visto no youtube[5].

Este processo de elaboração da memória apresenta um aparente paradoxo, já que o termo anistia vem do grego e do latim tardio. Remete à amnésia, ao “esquecimento das infrações cometidas”. O testemunho dos sobreviventes das arbitrariedades sofridas sob o terrorismo de Estado, como foi o caso da ditadura no Brasil, é a ruptura do silêncio.

Considero esse meu testemunho muito mais do que uma narrativa histórica e acredito que sua importância, hoje, vai além da própria tentativa de estabelecer um relato memorial dos fatos. O processo ajuda a construção de um plano tridimensional de sustentação simbólica. Principalmente em um país onde as frágeis estruturas democráticas sequer conseguem transpor a justiça de transição básica, do Estado burguês.

Só se pode entender a veracidade de um testemunho se ele for escutado por um outro, por um grupo, ecoado por uma sociedade. Esse tributo eu devo a Maria Cecília Garcia e àqueles artistas, tantos os desconhecidos do grande público como os então consagrados que arriscaram suas vidas e carreiras, naquele momento de vital importância para o término da ditadura instalada há anos. Neste contexto, considero o resgate destas memórias deste meu tempo envelhecido, como um grito de sobrevivência psíquica. Afirma-se aqui, também, um compromisso de transmissão da experiência no espaço social, coletivo. Há que se entender também o fim da ditadura por ato de muitos, nas ruas.

Assim se iniciou meu primeiro de maio militante, há quase quarenta anos atrás.

22 de abril de 2017

[1]Este artigo/memória iniciou-se como um depoimento à Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo, pesquisa apoiada pela FAPESP, agradeço a Márcia Bassetto Paes o registro do depoimento. Os anexos, recortes dos jornais da época, são um achado dela.

[2] ARANTES, Maria Auxiliadora de A. C.  Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013, p. 129.

[3]O Grupo de Teatro Casarão surgiu em 1967, como um desmembramento do grupo Os Entusiastas, da Federação de Teatro Amador. Entre seus fundadores estão Hélio Muniz, Waldemar Sillas, Lígia de Paula, Walter Rocha e Douglas Franco. Funcionou em uma casa alugada no início  da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, altura do número 180, região central de São Paulo, batizada de Casarão. Um centro aglutinador de ideias e de pessoas ligadas ao movimento de contracultura e interessadas em novas formas de teatro popular. Um deles foi César Vieira, nome artístico do advogado de presos políticos IdibalPiveta, líder do futuro grupo União e Olho Vivo, que participou como dramaturgo e diretor de espetáculos.

[4] Peça de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes, adaptado de Medeia, de Eurípedes. Estreou em São Paulo em 29 de abril de 1977, no teatro Aquarius, rua Ruy Barbosa, 266. Para ser liberada pela censura, a peça precisou sofrer cortes. Alcançou sucesso de público e de crítica; foi premiada com o Prêmio Molière, recusado pelos autores que recusaram o premio em sinal de protesto contra a proibição de O abajur lilás, de Plínio Marcos e Rasga coração, de Oduvaldo Vianna filho. No prefácio do livro, escrito em 1975, os autores registram: O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro. Esta é a segunda preocupação de Gota d’Água. Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira.

[5]https://www.youtube.com/watch?v=DuGZABQ0L5c

 

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Folha de S.Paulo, caderno Folha Ilustrada, de 18 de junho de 1977.

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Folha de S.Paulo, caderno Folha Ilustrada, de 17 de junho de 1977, p. 43

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arte / Ditadura Militar