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EDITORIAL

Primeiro turno na França: abalo e reorganização do sistema partidário-eleitoral

Por: Renato Fernandes, de Campinas, SP

No último domingo, 23, ocorreram as eleições francesas. Como previam muitos analistas, essas eleições foram altamente polarizadas: a diferença entre o primeiro candidato, Emmanuel Macron (24,01%), e o quarto, Jean-Luc Mélenchon (19,58%), foi de apenas 4,43% dos votos. Porém, para além dessa polarização, há um verdadeiro abalo do sistema político e uma recomposição do mesmo: os dois principais partidos que tinham elegido todos os presidentes da V República, fundada em 1958, estão fora do segundo turno. Os Republicanos (LR em francês) ficaram com o terceiro lugar, com François Fillon (20,01%) e o Partido Socialista (PS) ficou com o quinto lugar – pior resultado da história do partido, com Benoît Hamon com 6,36% dos votos.

Uma análise mais detalhada dos votos revela alguns dados interessantes. Por exemplo, Le Pen, que teve no total 21,30%, obteve votações muito fracas em grandes cidades (Paris 4,99% e Lyon 8,86%), com exceção de Marselha (23,66%). Entretanto, ganhou em diversos territórios do interior da França e também nas colônias francesas, considerando todos os territórios: 21,9% para Le Pen, contra 20,8% de Mélenchon, 20,7% Fillon e 20,4% de Macron. Ao mesmo tempo, a abstenção nas colônias foi bastante alta (53%).

Outro elemento interessante foi a votação de Mélenchon, que ganhou em dois departamentos, Dordogne (22,97%) e Ariège (26,77%) e em algumas cidades, como Marselha, na qual ficou em primeiro com 24,82% dos votos. Em Lyon (22,84%) e Paris (19,56%) ficou em terceiro, mas teve uma boa votação. Além disso, ganhou em duas colônias: na Guiana Francesa, com 24,72%, ficando pouco à frente de Le Pen (24,29%) – Philippe  Poutou teve também uma boa votação na Guiana, 5,24%. Mélenchon ganhou também na Ilha da Reunião, na costa africana, ficando com 24,53% contra 23,46% de Le Pen.

Considerando o espectro político em centro (Macron), direita (Fillon, Le Pen e outros) e esquerda (Hamon, Mélenchon, Poutou e Arthaud), podemos dizer que há uma queda muito grande da esquerda em comparação com 2012: 27,7% agora contra 43,8% cinco anos atrás. Isso demonstra que a falência do governo do PS, com seu programa neoliberal, afetou de conjunto a esquerda e abriu espaço, principalmente, para o centro (23,8% – em 2012, 9,1%), enquanto a direita se manteve estável (48,3%, 2012 46,9%). Porém, é no interior de cada espectro político que houve um processo de reorganização.

Reorganização do sistema político
O fator inusitado deste segundo turno está justamente no deslocamento e na recomposição política entre os partidos. Macron e seu movimento En Marche (Em Marcha) podem ser classificados no espectro político como um movimento de centro que tem o apoio de setores do PS e setores dos LR. De fato, ele assumiu o lugar que havia sido ocupado pelo deputado e também político de centro François Bayrou, do Movimento Democrata (MoDem): em 2007, Bayrou obteve 18,57% dos votos nas presidenciais, enquanto em 2012, tinha ficado com apenas 9,13%. Bayrou já foi ministro em governos da direita, LR, e, nessas eleições, foi um dos principais cabos eleitorais de Macron, depois que seu candidato Alain Juppé perdeu as primárias da direita para François Fillon. Provavelmente, Bayrou será um homem forte do governo de Macron. Parece-nos que a crise dos grandes partidos está se desdobrando numa recomposição, ao menos nas presidenciais, pelos partidos de centro.

De acordo com alguns analistas, foi a presidência de Nicolas Sarkozy (2007-2012) que abriu espaço para esse “centro” político: Sarkozy, assim como Fillon, representavam as alas mais conservadoras em termos de imigração, identidade nacional e segurança na direita tradicional. Seus discursos se aproximaram bastante da extrema direita e se afastaram dos eleitores de centro. Dessa forma, abriu espaço para esse centro que defende uma política mais “democrática”, ainda que um programa econômico neoliberal muito semelhante a essa direita.

Na direita, o fato inédito foi a vitória da Frente Nacional (FN) de Marine Le Pen sobre a direita tradicional. É a segunda vez que a FN vai para o segundo turno, repetindo o feito de 2002, quando o pai de Marine, Jean-Marie Le Pen ficou em segundo, atrás do direitista Jacques Chirac. Apesar de passar para o segundo turno, Marine teve uma conquista amarga, já que no início da campanha todas as projeções a colocavam como a grande vitoriosa do primeiro turno. Aos poucos, Macron foi crescendo e ocupou o primeiro lugar. O deslocamento de Sarkozy-Fillon para temas comuns com a extrema direita acabou por favorecer esse setor, principalmente após os golpes que Fillon sofreu com os casos de corrupção. Le Pen também foi afetada por denúncias de corrupção, porém isso não abalou muito sua campanha.

Porém, é importante localizar que o crescimento de Le Pen não é um fenômeno apenas “francês”: tem suas particularidades francesas, mas é parte do crescimento dos setores da extrema direita nacionalista, autárquica e protecionista, aos quais poderíamos incluir facilmente Donald Trump nos EUA e Geert Wilders na Holanda, entre outros. Le Pen é a materialização de um projeto de setores chauvinistas da burguesia imperialista para construir outra saída para a crise e a decadência econômica que atravessa a França. Infelizmente, este projeto está tendo o apoio eleitoral de setores proletários e pequeno-burgueses que sofrem as consequências de anos de políticas neoliberais.

Na esquerda, o processo de recomposição política é ainda mais forte. Assim como na direita, foi a primeira vez que o PS perdeu para outro partido da esquerda, a França Insubmissa de Mélenchon. Porém, se considerarmos todas as eleições desde 1969, esta foi a eleição na qual a esquerda como um todo (do PS até a LO) teve o menor índice de votação, 27,7%. Só para ter uma ideia: nas eleições de 2012, François Hollande, do PS, obteve 28,63%, o que significa uma votação maior do que os quatro candidatos de esquerda deste ano.

É ainda muito cedo para prevermos a reorganização que se dará na esquerda, porém, existem algumas hipóteses. Com a provável vitória de Macron, existe uma grande chance do PS ser o principal partido da base aliada, já que boa parte dos apoios de Macron saíram deste partido. O PS disputará essa base aliada com os LR que, apesar da derrota, devem sair muito menos divididos que o PS. Já o espectro à esquerda fora do PS, sem dúvida nenhuma, terá em Mélenchon a grande figura política. Isso indica também que está aberta uma grande chance para a esquerda se reorganizar perante os ataques que vão seguir contra a classe trabalhadora.

Um segundo turno inédito
Esse abalo no sistema político terá seu próximo capítulo no segundo turno das presidenciais que ocorrerá no dia 7 de maio. Na disputa entre o ex-banqueiro Macron e a líder da extrema direita, Marine Le Pen, estará em jogo uma disputa entre dois projetos diferentes da burguesia francesa: o primeiro é pró-União Europeia (UE) e de continuidade neoliberal e, o segundo, de um nacionalismo autárquico, protecionista e xenófobo anti-UE. Ao que tudo indica, a maioria da burguesia apoia acentuar a ofensiva neoliberal realizada pela direita clássica (LR) e pela esquerda do sistema (PS). As primeiras pesquisas dão uma alta diferença entre os dois: Macron 62,8% contra 37,2% de Le Pen.

Entre os candidatos derrotados, François Fillon foi um dos primeiros a declarar voto em Macron, já no domingo. Hamon, do PS, também chamou o voto em Macron, assim como o atual presidente François Hollande (PS). Entre os principais candidatos, a diferença está em Jean-Luc Mélenchon: ao invés de já se posicionar sobre o voto, preferiu fazer uma consulta ao seu próprio movimento para determinar qual será sua posição no segundo turno. As possíveis posições são voto em Macron, nulo/branco ou abstenção.

A esquerda anticapitalista teve como candidatos Philippe Poutou pelo Novo Partido Anticapitalista (NPA) com 1,09% (8º) e Nathalie Artaud do Luta Operária (LO) com 0,64% (10º). O NPA está chamando “contra a extrema direita e os políticos liberais”, enquanto a LO está chamando voto em branco para “rejeitar Le Pen sem apoiar Macron”.

As duas principais centrais sindicais também já se posicionaram. A CFDT está chamando voto em Macron, enquanto a CGT (maior central) chama voto para “barrar a extrema direita” o que significa, indiretamente, votar em Macron.

Sem dúvida alguma, após o segundo turno das eleições presidenciais, todo o sistema político francês tentará se reorganizar para dar o mínimo de estabilidade governamental. Essa estabilização dependerá do processo de alianças que se realizará para as eleições legislativas em junho de 2017 que demonstrará sobre quais blocos políticos governará o próximo presidente francês. Para a esquerda radical, será importante acompanhar até onde as forças eleitorais da esquerda fora do PS conseguirão chegar enquanto uma alternativa política ao decadente sistema político francês e a um dos seus principais defensores no último período, o PS.

Imagem: AFP