Pular para o conteúdo
Especiais
array(1) { [0]=> object(WP_Term)#21000 (10) { ["term_id"]=> int(3483) ["name"]=> string(9) "Lava Jato" ["slug"]=> string(9) "lava-jato" ["term_group"]=> int(0) ["term_taxonomy_id"]=> int(3483) ["taxonomy"]=> string(9) "especiais" ["description"]=> string(0) "" ["parent"]=> int(0) ["count"]=> int(17) ["filter"]=> string(3) "raw" } }

Os fins da Lava Jato

Alex Hochuli, Tradução por Wilma Olmo Côrrea
Lula Marques/AGPT

Os enormes escândalos de corrupção do Brasil transformaram a política do país em um espectáculo

Por volta das 18h do dia 11 de abril, os plenários da Câmara e do Senado do Brasil estavam vazios. Um holocausto político há muito prometido havia chegado. O juiz do Supremo Tribunal de Justiça, Edson Fachin, havia acabado de autorizar investigações de corrupção de quase um terço do gabinete do presidente interino Temer, e de uma proporção similar de senadores. A lista a ser investigada totaliza 108 líderes políticos.

Para se ter uma noção de escala, note-se que isso inclui apenas aqueles que se beneficiam do foro privilegiado, e assim só podem ser investigados pelo Supremo Tribunal Federal. O próprio presidente Temer também é citado, mas goza de imunidade temporária. Os três ex-presidentes do Brasil também estão incluídos, assim como nove governadores estaduais no exercício de seus mandatos, que serão investigados por tribunais inferiores. Este é o último ato na investigação titânica anticorrupção conhecida como Lava Jato, que está ameaçando explodir a estrutura política do Brasil. Mais revelações ainda estão por vir.

A operação Lava Jato começou quando Sergio Moro, um juiz pouco conhecido de uma capital de um estado na região sul do Brasil, começou a descobrir suborno, propinas, financiamento ilícito de partidos e pilhagem de bens públicos em escala gigantesca, todos centrados na gigante Petrobras e seus empreiteiros, principalmente na indústria da construção. As quantias que teriam sido saqueadas alcançam a casa das dezenas de bilhões de dólares.

Continua a ser um equívoco fora do Brasil, no entanto, o entendimento de que a Lava Jato tenha causado o impeachment da presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT). Ela foi cassada por motivos frívolos de violação de leis orçamentárias. Nenhuma evidência foi produzida até agora para ligá-la ao escândalo de corrupção. Michel Temer, ex-vice-presidente de Rousseff, agora é presidente. Seu partido, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) é um partido ideologicamente amorfo, que atua mais como um veículo para se chegar ao poder, e como o sustentador do conservadorismo popular não militante, não filiado a partidos e não radical, na estrutura de poder no Brasil. Seu partido agora governa em uma coalizão de fato com o neoliberal Partido da Social-democracia Brasileiro (PSDB).

No ano passado, as gravações vazadas envolvendo aliados de Temer revelaram os verdadeiros motivos para afastar Dilma Rousseff: sua hesitação em proteger os principais políticos investigados. Ao mesmo tempo, tendo perdido a presidência, o PT espera que Lula, seu porta-voz, possa retornar nas eleições presidenciais de 2018 – um resultado provável, de acordo com a maioria das pesquisas recentes. No entanto, Lula permanece diretamente na mira da Lava Jato. Ele é o troféu dourado de Moro. Se ele for acusado e considerado culpado, não poderá concorrer nas eleições presidenciais de 2018, uma vez que ficará inelegível a qualquer cargo público por oito anos.

Um juiz de primeira instância foi transformado em rei no Brasil. Pode-se argumentar que tal juiz, Sérgio Moro, é hoje o homem mais poderoso do país.

No entanto, apesar da bomba da noite do dia 11 de abril, os objetivos e o caráter político da Lava Jato permanecem indefinidos. É um projeto partidário, como muitos defensores do PT reivindicam? Trata-se de uma iniciativa limitada, que vai parar após atingir seus alvos principais? Ou é uma profunda e completa cruzada anticorrupção, capaz de aniquilar toda a classe política?

Até o final de 2016, as principais figuras envolvidas em investigações eram do PT. Em março daquele ano, Lula, o ex-presidente da ala esquerda, foi detido de forma sensacionalista pela Polícia Federal, sem condenação. Além disso, a mídia que torce pela Lava Jato e orquestra protestos anticorrupção tem como alvo a esquerda. O Juiz Moro encorajou isso com movimentos deliberados e relações públicas, como o vazamento (ilegal) de gravações (obtidas ilegalmente) de Lula e da então presidente Dilma Rousseff. Isso levantou polêmica por privilegiar o espetáculo sobre o devido processo, e surgiram dúvidas preexistentes sobre a neutralidade da Justiça.

Os brasileiros estão acostumados a ver a corrupção política punida de forma branda, de modo que o novo entusiasmo do Judiciário – embora potencialmente bem-vindo – parecia se aplicar principalmente e apenas às figuras do Partido dos Trabalhadores. De fato, até mesmo a Ordem dos Advogados do Brasil – Regional do Estado do Rio de Janeiro, criticou Moro por seu vazamento seletivo. Sua defesa intrigante e egoísta era de que aqueles não eram vazamentos, mas publicações deliberadas. Lula foi então acusado de ser o mentor intelectual de todo o esquema de corrupção relacionados com a Petrobras, sem qualquer evidência.

Em seguida, no mês passado, o blogueiro Eduardo Guimarães, que preventivamente revelou a prisão de Lula, antes de ela acontecer, foi detido e interrogado, a fim de forçá-lo a revelar sua fonte. O sigilo das fontes é protegido pela Constituição Brasileira; e, como vimos, Moro, como principal juiz da Lava Jato e autor da detenção de Guimarães, tem sido promíscuo em fazer uso próprio dos vazamentos para fins de relações públicas.

Esses acontecimentos aprofundaram a teoria – realizada pela presidente cassada, Dilma Rousseff, entre outros – de que o Brasil está vivendo um estado de exceção.

Por pior que possa parecer essa parcialidade, não está evidente que a alternativa – a destruição da maior parte da classe política – seria preferível. Agora Temer tem nove ministros sob investigação. O candidato presidencial de direita, Aécio Neves, derrotado em 2014, do PSDB, é o político mais citado na lista do ministro Fachin. O esperado candidato presidencial do PSDB em 2018, o governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, também deve ser investigado. Mais amplamente, cerca de 60% das duas Casas do Congresso estão sob investigação por crimes graves, alguns dos quais se enquadram na Lava Jato.

Uma situação em que todos os principais políticos caem sob o martelo do juiz poderia estabelecer um novo precedente no Brasil e acabar com a impunidade da elite, como seus defensores reivindicam. Mas como eu discutirei mais tarde, não vai “acabar com a corrupção”, isto só irá transformá-la. E, pior ainda, isso provavelmente levaria a um vácuo político semelhante ao que a Itália experimentou em 1994. Isso abriu o caminho para o longo mandato de Silvio Berlusconi. Teme-se que no Brasil esse cenário possa acabar sendo ainda pior.

Da Itália para o Brasil

O escândalo italiano de corrupção do início da década de 1990, conhecido como Tangentopoli, e as consequentes investigações extensas da operação Mãos Limpas são extremamente instrutivas para a compreensão da política de corrupção no Brasil de hoje. Na verdade, o próprio Moro, que começou a planejar a Lava Jato há aproximadamente uma década, afirmou modelar sua investigação na operação Mãos Limpas.

A Itália, no início da década de 1990, muito parecida com o Brasil de hoje, estava envolta em uma crise de modo algum redutível ao escândalo da corrupção.

O abrangente contexto global internacional dos primeiros anos da década de 1990 na Itália foi o fim da Guerra Fria e, portanto, o fim do anticomunismo como uma estratégia coerente entre os partidos burgueses – algo que não está presente no Brasil de hoje. Mas há outros fatores que se assemelham ao Brasil de hoje. Como explica Paul Ginsborg em sua excelente história da Itália dos anos 1980 e 1990, o país, abalado pela recessão de 1992, tomou medidas desesperadas para atender aos critérios de Maastricht para a União Monetária Europeia.

Assim, iniciou-se um período de desregulamentação, privatização e uma tentativa de reduzir o déficit fiscal e a dívida pública. O contexto deste processo foi um Estado ineficiente, a degradação do partido do governo, a corrupção generalizada e a impunidade da elite. Foi nesse contexto que nasceu um novo ator social: uma minoria dentro do Estado, concentrada no Judiciário, cujo zelo pela eficiência e o Estado de Direito se uniram à raiva popular causada pela corrupção.

Boa parte disso deve soar familiar aos ouvidos dos brasileiros. Desnecessário dizer que hoje não há nenhuma ameaça comunista, nem as consequências de sua derrota (como eu expliquei aqui, se o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe, não o foi para depor um “regime de esquerda”). Mas na abertura da economia há uma similaridade contextual. Na Itália, a integração regional na Comunidade Europeia levou a reformas, enquanto no Brasil há uma confluência de uma agenda neoliberal de “transparência” com os interesses financeiros internacionais. A recessão do Brasil, um estado decrépito, a raiva popular e a nova cruzada do Judiciário é uma imagem espelhada da Itália do início dos anos 1990.

Assim, quando a Lava Jato começou a acuar os culpados que estavam por trás de um dos maiores esquemas de corrupção já descobertos, muitos se alegraram. Ginsborg observou o seguinte sobre a Mãos Limpas:

Um clima festivo permeava muitas partes da Itália, como sempre acontece quando a ordem habitual de uma sociedade é subitamente posta em questão.”

Mas na Itália, assim como no Brasil, por trás da celebração estavam motivações divergentes, refletindo diferenças de classe e cultura. Para o trabalhador médio, ver empresários e políticos serem levados algemados pode parecer o fim da impunidade da classe alta e – finalmente! – a aplicação imparcial da Justiça. Para o pequeno empresário, pode sinalizar o fim do uso da influência política para o lucro privado – negado a ele, mas disponível para o grande empresário. Para a grande burguesia, isso representa a queda de um partido político inconveniente.

Mas nem todo mundo estava comemorando, porque as investigações pareciam estar alvejando os partidos de centro-esquerda – no poder por uma década, embora pela primeira vez desde o golpe de 1964.

O aparecimento do partidarismo fornece a diferença crucial entre as investigações italianas e brasileiras. Como disse o estimado jurista Boaventura de Sousa Santos:

Por um lado, os magistrados italianos sempre mantiveram um respeito escrupuloso pelo processo penal e, no máximo, não fizeram nada a não ser aplicar as regras que tinham sido estrategicamente ignoradas por um sistema judicial que não só era conformista, mas também cúmplice dos privilégios da elite política italiana no poder desde o pós-guerra na Itália. Por outro lado, procuravam aplicar o mesmo zelo invariável na investigação dos crimes cometidos pelos líderes dos vários partidos políticos que governavam. Eles assumiram uma posição politicamente neutra precisamente para defender o sistema judicial dos ataques a que certamente seria submetido por aqueles que eram alvo de suas investigações e acusações. Essa é a própria antítese do triste espetáculo oferecido atualmente ao mundo por um setor do sistema judicial brasileiro.”

Moro pode ter modelado sua investigação na operação Mãos Limpas, mas não conseguiu projetar a neutralidade do exemplo italiano. Para legitimar as investigações, ele recorreu à mídia oligárquica, criando um espetáculo midiático em que o PT estava no centro da maioria dos vazamentos, das insinuações e das alegações, enquanto os representantes preferidos da elite eram tratados com atenção e delicadeza.

Se alguém liga a politização da Lava Jato aos outros fatores que levaram à derrubada de Dilma Rousseff, poderá ver um cenário terrivelmente conspiratório. O presidente Temer foi flagrado afirmando que Rousseff foi deposta porque não adotou o plano neoliberal do PMDB Ponte para o Futuro. Seu governo, pouco legítimo, que perdeu seis ministros em seus primeiros seis meses, já aprovou uma emenda constitucional, EC 55, que congela os gastos públicos por vinte anos. Seguiram-se a reformas drástica da Previdência, a legalização da terceirização “ilimitada” e a venda de ativos estatais.

O Judiciário pró-mercado

O governo escandaloso de Temer é aceito pela elite, na falta de um melhor. Os movimentos de direita que pediram a expulsão de Dilma Rousseff como parte de uma campanha para acabar com a corrupção são altamente reticentes para criticar Temer. Toda a conversa anticorrupção era pura hipocrisia?

Primeiro, precisamos perceber que é impossível acabar com a corrupção. Mesmo os sistemas políticos mais limpos do mundo são corruptos, e muitas vezes aparecem assim porque sua corrupção é legalizada.

O conceito de corrupção no mundo moderno baseia-se na separação de interesses públicos e privados. Enquanto os interesses privados na sociedade de mercado são normais e de fato constitutivos dessa sociedade, a intrusão de interesses privados no domínio público do Estado e do governo é considerada patológica. Essa é a definição moderna de corrupção política. Mas, na realidade, é impossível criar e proteger um espaço público desinteressado, dirigido puramente pela virtude republicana. Muitos dos interesses empresariais que aplaudiram a Lava Jato não tolerariam tal coisa e denunciariam estranhamente quaisquer tentativas de limitar o lobby.

Então, o que os fanáticos anticorrupção realmente esperavam?

Aqui precisamos entender que o conceito liberal de corrupção foi substituído pela ideia neoliberal de transparência, liderada pelo trabalho da Transparência Internacional e das instituições financeiras internacionais. Isto significa, ao contrário, previsibilidade, custos de transação mais baixos para o capital e a eliminação de toda a informalidade na regulação e nas regras. A transparência não é, portanto, a proteção do domínio público dos interesses privados, mas a proteção de interesses privados específicos (especialmente o capital internacional) da busca de ingressos extras pelos funcionários do Estado ou de outras imprevisibilidades relacionadas a redes clientelistas. Embora não se queira defender o clientelismo, deve ficar claro que a “transparência” está intimamente associada à prioridade político-econômica de que os Estados estejam abertos ao capital internacional.

Daí o discurso do Procurador-Geral Rodrigo Janot em Davos, em janeiro de 2017, descrevendo a Lava Jato como “pró-mercado”. Ele alegou mais tarde à imprensa brasileira que a plateia de elite estava entusiasmada com sua apresentação. A Lava Jato deveria melhorar o ambiente de investimento no Brasil, e “evitar o capitalismo de camaradagem, a cartelização, garantir a concorrência, a eficiência econômica e o desenvolvimento tecnológico”. O discurso de Davos expõe o que a Lava Jato é: não uma aplicação neutra da lei à imunidade anterior, mas uma campanha político-midiática-judicial, fortemente imbricada com a tentativa de avançar as formas neoliberais de gestão no Brasil.

Aqueles que pressionam a Lava Jato para que ela transforme o Brasil em um país livre da corrupção realmente desejam um Brasil no qual o capital internacional seja livre.

Corrupção e seus Espectadores

Mesmo antes da explosão da noite do dia 11 de abril (Lista do Fachin), desdobramentos recentes trouxeram à baila a aparência radical da Lava Jato. Um dos defensores da investigação, Brian Winter, da Revista liberal-conservadora America’s Quarterly, perguntou no final do ano passado,

Será que o caso resultará em uma melhoria substancial e de longo prazo na Justiça brasileira e nas instituições, como esperam seus defensores? Ou será que a Lava Jato fracassará como a investigação Mãos Limpas na Itália da década de 1990, que resultou em mais de mil prisões, mas pouca queda na corrupção sistêmica ao longo do tempo?  

Em outubro de 2016, Eduardo Cunha foi detido, o presidente da Câmara dos Deputados e arquiteto do processo de destituição de Dilma Rousseff. Isso foi seguido pela prisão, em novembro de 2016, de Sérgio Cabral, ex-governador do estado do Rio de Janeiro. Cunha já foi condenado a quinze anos de prisão, enquanto Cabral deve ser interrogado pessoalmente por Moro no final deste mês de abril. Ambos são do PMDB de Temer.

O anúncio do dia 11 de abril, baseado na lista de políticos do Procurador Geral da República, Janot, provém das delações dos executivos da construtora que está no centro do escândalo: a Odebrecht. Diferentemente das primeiras fases das investigações, o anúncio apresenta figuras de todo o espectro político, incluindo os principais membros do PMDB e do PSDB. Embora isso não tenha impedido os grandes meios de comunicação de se concentrarem nas acusações contra o envolvimento do ex-presidente Lula em detrimento de outros, parece que a investigação em si é ecumênica.

Os aliados típicos da Lava Jato não reagiram bem a esses desdobramentos. Já em fevereiro de 2017,o jornal O Estado de São Paulo, um dos principais líderes da mídia pró Lava Jato, atacou o promotor Deltan Dallagnol:

Há pessoas com poder sobre a investigação que, sob o pretexto de punir todo e qualquer ato de corrupção, desejam inverter a mais elementar lógica judicial, colocando em risco toda a operação e, assim, consagrando no Brasil uma Justiça autoritária que é própria de tiranias. 

Vale a pena pensar exatamente o que significa o ataque de O Estado de São Paulo. O jornal provocou um frenesi anticorrupção enquanto Dilma Rousseff estava no poder para somente agora mudar de posição e se lamentar aflitivamente a respeito dos direitos que estão sendo infringidos, queixar-se de que as coisas foram longe demais, e chamar todo o assunto de “neo-inquisitorial”. A forte e antagonista reação do jornal é acima de tudo uma expressão da política conservadora da imprensa corporativa. Mas tal reação também nos diz algo sobre os limites estruturais colocados em uma investigação judicial pública. Será que a burguesia ficará sentada enquanto o Estado canibaliza todos os seus representantes?

Como Brian Winter observa,

Uma vez que você começa a jogar o jogo político, uma vez que você pisa nesse campo, uma espécie de relógio com contagem regressiva começa a bater tic-tac-tic-tac. Porque, indo além da pura jurisprudência e incluindo as relações públicas em seu foco, você se torna vulnerável aos inevitáveis altos e baixos, fluxos e refluxos da opinião pública. 

Em desespero, a conversa é que o Congresso tentará aprovar uma lei de anistia – algo que eles tentaram e não conseguiram fazer no ano passado – protegendo os políticos de novos processos. Suspeitas abundam que algum acordo será costurado entre os principais juízes e políticos, tendo em vista que Temer regularmente almoça com o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Tudo isso revela uma crise política mais ampla, na qual setores do Judiciário, do Poder Legislativo e do Executivo estão em conflito uns com os outros.

Existe um conflito aberto dentro da classe política. Uma tendência é representada pelos fanáticos anticorrupção, o setor do Judiciário aliado a Moro, deseja levar a Lava Jato até o fim, e quer ver promulgada no Brasil uma espécie de ditadura judicial. O outro lado é a velha elite que sente que as investigações já foram longe o suficiente e estão em pânico sobre o holocausto político por vir; para eles, a ordem deve ser restaurada.

Nesse sentido, a maioria dos brasileiros são espectadores. Por mais que desejemos ver a justiça feita e os culpados serem punidos, os pensamentos sobre o consequente vácuo são inquietantes. Defender os representantes corruptos e reacionários é intragável, mas a condução pelos juízes certamente seria ainda menos democrática. No entanto, a elite permanece unida em seu apoio às reformas neoliberais de Temer; e as massas certamente estão numa situação arriscada. 

Anti-Política Brasileira

O protesto #15M no mês passado foi a primeira mobilização popular significativa contra as reformas neoliberais do governo interino, com um milhão de brasileiros na rua em todo o país, bem como greves generalizadas. São Paulo, a maior cidade do continente, tornou-se nos últimos anos o fulcro da mobilização popular. Local dos explosivos protestos de junho de 2013 e sede das maiores manifestações pró-impeachment, a cidade viu, em março de 2017, quase duzentas mil pessoas nas ruas contra uma nova proposta de Reforma da Previdência.

Isto se segue a um longo período de imobilidade. À medida que novas evidências de conspiração surgiam e o governo de Temer passava de escândalo a escândalo, grande parte da esquerda perguntou à classe média: “Onde estão as suas panelas e frigideiras agora?” – uma referência aos protestos infantis anti-Dilma em que as classes média e alta batiam seus utensílios de cozinha durante o noticiário noturno. Para muitos da esquerda, aqueles setores da nova classe média do Brasil que saíram às ruas “contra a corrupção” foram os idiotas úteis da crise, condenando o PT e a corrupção para ficar com algo muito pior. Entretanto, os movimentos de protesto anticorrupção – cuja base é a classe média alta – encontram agora poucos adeptos para as suas manifestações.

Até agora, no entanto, a esquerda dominada pelo PT não foi capaz de fornecer uma alternativa convincente. Modernizar a reforma e racionalizar o Estado, a serviço do desenvolvimento, é necessário. Mas não deve ser realizado às custas da maioria dos brasileiros. Lula pode liderar nas pesquisas, mas o martelo do juiz balança sobre sua cabeça. Além disso, deve-se resistir à ilusão de que Lula pode trazer de volta os bons velhos tempos dos anos 2000 e contra isso tem que haver resistência. A conjuntura político-econômica que tornou possível o lulismo não existe mais. Aquele foi o momento em que a elite brasileira aceitou a democracia social moderada. Foi tolerado durante a década anterior, porque, por mais que a posição dos mais pobres tenha melhorado, a dos ricos melhorou muitas vezes mais. Há pouco significado ou propósito agora na conciliação de classe que tornou possível que o PT ganhasse a presidência em 2002.

Infelizmente, a vítima política da controvérsia sobre a corrupção não é apenas o PT, mas a própria política. A anti-política é a força predominante, com confiança escassa em políticos de qualquer matiz, e nenhum consenso popular sobre um programa político em andamento. Nas eleições municipais de outubro de 2016, os votos nulos e em branco ficaram em segundo lugar em quatro das cinco maiores cidades do país. Em vários municípios metropolitanos com um milhão de habitantes, a abstenção combinada de votos nulos e votos em branco ficou em primeiro lugar.

Na Itália, depois que os velhos partidos foram removidos no início dos anos 1990, os italianos tiveram que suportar Berlusconi. Além de introduzir reformas neoliberais, Berlusconi também foi pioneiro em um novo estilo de política: uma unidade de tecnocracia e populismo, que enfatizava o saber-fazer empresarial prático em vez da política, combinado com o uso astuto dos meios de comunicação de massa – naquele momento referido como “Videocracia”.

Era também uma unidade do antigo e do novo: o clientelismo tradicional aliado a um sentimento de empreendedorismo moderno, despreocupado com a forma antiquada do setor público e despreocupado com arranjos antigos e confortáveis. Apesar de toda a grita sobre o fascismo de hoje, o modelo do oportunista anti-político contemporâneo não é Mussolini, mas Berlusconi.

No Brasil estamos testemunhando algo semelhante. São Paulo, o lugar com a política mais “moderna” do país, tem um novo prefeito, um empresário rico e estrela de TV, João Dória Jr – um homem que fez todos os esforços para se apresentar como um não-político, mas que tem cultivado estreitas relações com o PSDB por um longo tempo e foi, com justiça, descrito pelo site The Intercept como “sem escrúpulos, superficial e dissimulado”. Isso soa familiar? Muitos agora estão cogitando Dória para concorrer à presidência em 2018. Mesmo figuras salvadoras menos atraentes estão na espreita para assumir tal posição. Jair Bolsonaro, possivelmente um dos representantes mais reacionários em qualquer lugar, continua a se sair muito bem nas pesquisas, o que é desconcertante.

Se a classe política for capaz de costurar um acordo para salvar a si mesma ou, em vez disso, se aliar à cruzada de Moro, isso não vai mudar o sentimento anti-político. Em ambos os casos, ele será provavelmente exacerbado. É uma situação volátil em que as fontes de liderança são poucas e distantes entre si. É improvável que as forças internacionais ajudem; os poderes do Norte Global também estão se desfazendo, golpeados pelos ventos da anti-política. Somente a liderança de uma esquerda de base pode salvar a situação. O temor é que, em vez disso, os oportunistas autoritários sejam os beneficiários finais da conjuntura política de hoje.

Alex Hochuli é pesquisador e consultor de comunicação sediado em São Paulo. Ele escreve em seu blog alexhochuli.xyz. Este texto foi publicado originalmente na Revista Jacobin