Pular para o conteúdo
EDITORIAL

Referendo na Turquia: Erdogan vence, mas país está dividido

Por Waldo Mermelstein, de São Paulo, SP

Neste domingo, o referendo convocado na Turquia aprovou alterações profundas na Constituição, que se constituíram numa verdadeira mudança de regime político no país, em direção a um presidencialismo altamente centralizado e com traços bonapartistas. No entanto, o resultado foi apertado – 51% a 49%, especialmente levando em conta a necessidade de legitimidade diante da magnitude das alterações.

Apoiaram o Sim, o partido do presidente Erdogan, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), o direitista Partido do Movimento Nacionalista (MHP) e um grupo curdo dissidente. O principal argumento que utilizaram foi o de que eram necessárias para acabar com a instabilidade política e as ameaças representadas pela insurgência curda e pelo autodenominado Estado Islâmico.

Os principais partidos que propunham votar Não eram o Partido Democrático dos Povos (HDP), pró-curdo, e os republicanos laicos do Partido Republicano do Povo (CHP), aos que se somaram setores muçulmanos, bem como grupos feministas e a central sindical dissidente DISK. As diferenças ideológicas e a divisão sobre o tema curdo, entre outros fatores, resultaram em campanhas separadas pelo Não.

Um debate antidemocrático
Como geralmente ocorre, os referendos são determinados por quem faz as perguntas. Além disso, foi realizado sob a vigência do estado de emergência e com grandes restrições ao livre debate. Em vez de outorgar o mesmo tempo para os defensores do Sim e do Não, o tempo de TV foi dividido entre os partidos representados no Parlamento, o que deu maioria folgada para os partidários do Sim. Erdogan também utilizou seu cargo para fazer uma agressiva campanha pela aprovação das medidas.

Entre os emigrados turcos na Europa (cerca de 5 milhões), o governo fez campanha intensiva, o que é proibido pela lei da Turquia, mas lhe garantiu uma importante diferença, particularmente na Alemanha.

A maioria dos meios de imprensa de oposição foram fechados pelo governo após a tentativa de golpe do ano passado. Em várias regiões, os partidários do Não foram duramente reprimidos durante a campanha. Somente em Istambul houve alguma condição para os partidários do Não se pronunciarem.

Em Istambul, que tem cerca de 15 dos 80 milhões de habitantes do país, na capital, Ankara, em Izimr, a terceira cidade do país em termos de população, e nas regiões curdas, o governo perdeu. Foi a primeira derrota do AKP em Istambul e Ankara.

A oposição acusa fraudes na votação e pediu a sua anulação. Em particular, reclamou das cédulas sem o carimbo da Alta Autoridade Eleitoral, responsável por supervisionar o referendo.

O que muda com o referendo
As principais alterações aprovadas significam uma verdadeira mudança no regime parlamentar em direção a uma presidência fortemente centralizada, que passa a ter novos poderes:

– Acumulará as funções de chefe de estado e de governo.

– Nomeará os ministros e o Parlamento perderá o poder de destituí-los, a não ser com maioria qualificada de três quintos.

– Proporá o orçamento e nomeará todos os altos postos da burocracia do Estado.

– Escolherá a maioria dos juízes da Suprema Corte.

– Poderá emitir decretos com força de lei, cuja constitucionalidade será examinada pelo Tribunal Constitucional, cuja maioria de membros escolherá.

– Controlará o Colégio da Magistratura e da Procuradoria que supervisiona o poder judiciário e a promotoria pública.

– Terá poderes exclusivos para decretar o estado de emergência e dissolver o parlamento.

– Terá maior poder de veto a leis aprovadas pelo Parlamento, que só poderá ser derrubado com maioria absoluta de votos.

– As eleições parlamentares e presidenciais serão simultâneas e a cada cinco anos.

Instabilidade crônica
O AKP governa o país desde 2003, tendo se beneficiado de um alto crescimento econômico, com base em investimentos externos, 80% dos quais da União Europeia, atraídos pelas vantagens oferecidas pelo governo e pelos baixos salários dos trabalhadores turcos. A partir de 2013, a estabilidade do país tem sido questionada. O marco disso foi o massivo levante em Istambul em torno à defesa do parque Gezi, no centro da cidade, contra sua transformação em shoppings e uma mesquita.

A instabilidade se agravou com a tentativa de golpe militar em julho de 2016. Em um episódio pouco esclarecido até agora (se foi um autogolpe, se o governo tinha conhecimento prévio, ou alguma combinação dessas circunstâncias), Erdogan aproveitou para instaurar o estado de emergência no país e fazer uma imensa ofensiva repressiva contra todo tipo de oposição. Foram 134 mil demissões de funcionários públicos (entre os quais 12 mil professores curdos), mais de 100 mil presos, fechamento de mais de duas mil escolas, residências universitárias e universidades, demissão de mais de 7 mil professores universitários, fechamento de 149 meios de informação e prisão de 200 jornalistas.

O eterno inimigo interno curdo
Como é tradicional na política do estado turco, o alvo principal são os representantes da minoria curda (cerca de 15 milhões no país de 80 milhões de habitantes) que luta por seu direito de autodeterminação.

Após um curto período de negociações, em 2015, o governo turco rompeu a trégua e retomou a ofensiva militar contra as cidades de maioria curda no Sul do país, com tropas terrestres e bombardeios aéreos, com o resultado de milhares de mortos e refugiados.

Na região (Irã, Iraque, Síria e Turquia), os curdos são cerca de 28 milhões e cerca de 1,5 são expatriados, em particular na Europa. O HDP foi e é um dos principais alvos e doze deputados da legenda estão presos, inclusive seus máximos dirigentes. Diga-se de passagem, que ainda antes do golpe de julho de 2016, Erdogan tinha conseguido que o Parlamento retirasse a imunidade dos deputados pelos seus atos políticos. Por outro lado, cerca de oitenta prefeitos eleitos pelo HDP na região de maioria curda foram sumariamente destituídos.

A agenda de Erdogan com relação aos curdos não se limita ao país: em agosto do ano passado, tropas turcas entraram na Síria, com o claro objetivo de impedir que os curdos daquele país estabelecessem um território autônomo contínuo no norte sírio. Um dos complicadores para esse projeto foi que as tropas curdas sírias do YPG (Unidades de Proteção Popular) são as principais forças terrestres no plano elaborado pelos EUA para atacar a cidade de Raqqa, o maior reduto do autodenominado Estado Islâmico (EI) na Síria. Tão conflitivo é o tema que tropas especiais americanas se estabeleceram pela primeira vez de forma oficial no território sírio na cidade de Manbij para separar os curdos do YPG e as tropas turcas. Humilhados, os turcos tiveram que declarar encerradas suas operações na Síria e se retirar. O bombardeio da Síria pelos mísseis americanos reacendeu a esperança de Erdogan de poder desempenhar um papel no país vizinho e na região.

E agora?
Muitas das mudanças refletem a forma como o país vem funcionando nos últimos anos, em particular a partir do ano passado. Tudo indica que, mesmo com a apertada votação para temas tão transcendentais, o governo seguirá na ofensiva em todos os terrenos, mesmo antes de as alterações constitucionais entrarem em vigor.

No próprio dia do referendo, houve inúmeras agressões contra os partidários do Não, inclusive o assassinato de um ativista pela milícia do AKP na região curda. A vitória no referendo significa que Erdogan ganhou alguma margem para seguir a sua política repressiva e tentar sair da crise política quase permanente em que o país vive. Em 2019, as mudanças terão efeito e ele poderá candidatar-se duas vezes a um mandato de cinco anos, o que significa que poderá governar até 2029. Em seu discurso de vitória ontem demonstrou que quer seguir a marcha bonapartista:   anunciou que uma de suas prioridades é a implantação da pena de morte.

Claro que nada assegura que poderá ter tranquilidade sequer para a primeira etapa até o final de seu mandato. Em um país com esse grau de conflitos, com metade da população contra a mudança, mesmo com todo peso repressivo do estado para aprová-la, com a oposição ativa da minoria curda, o previsível é que seu padrão ofensivo faça com que a instabilidade continue ou mesmo aumente.

Embora não haja uma crise econômica, vários índices mostram os limites do atual modelo econômico: a dívida externa do pais chegou a quase 50% do PIB (e a de curto prazo atinge 10%) , o endividamento das famílias para manter o nível de vida aumentou exponencialmente de 7,4% dos salários em 2003 para 55,2% em 2015, o desemprego atingiu 12,7% em Dezembro de 2016 (e 19,1% por cento, se contado de forma mais realista).

O impacto da guerra interna e externa contra os curdos, a presença de cerca de três milhões de refugiados sírios, a diminuição de 30% do turismo, que representa 20% das receitas em divisas do país colocam mais problemas para o governo.

No plano geopolítico, o governo Erdogan ensaia uma relocalização, deixando seu papel de aliado quase incondicional das potências ocidentais. Aumentaram os choques com vários governos europeus e abriu negociações com a Rússia e seus aliados, sem, no entanto, adotar ainda uma definição mais clara. Afinal, o país ainda faz parte da OTAN e formalmente pleiteia sua entrada na União Europeia. A ambiguidade relativa do tema pode ser exemplificada pelo telefonema de Trump a Erdogan ontem, parabenizando-o pelo resultado e agradecendo pelo apoio ao bombardeio à Síria, ao mesmo tempo em que o presidente turco ameaça deixar as negociações para ingressar na União Europeia.

Não se sabe como será a reação da oposição de esquerda, dos sindicatos, da juventude e dos curdos frente ao resultado relativamente positivo frente à máquina de propaganda e repressão utilizada pelo governo e sua evidente falta de legitimidade para seguir em seu curso. Desse conjunto de fatores depende o curso que tomará a situação política do país após o referendo.