Pular para o conteúdo
Colunas

Por uma nova revolução sexual: viva a Revolução Russa

Travesti Socialista

Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

Por: Travesti Socialista, colunista do Esquerda Online
*Publicado originalmente na Revista Vírus.

Ao defender uma nova Revolução Sexual, alguns marxistas podem julgar que eu estou sendo pós-moderna. Garanto, entretanto, que nem eu o sou, nem bolcheviques como Nikolai Semashko e Grigori Batkis o eram. É lamentável que muitos marxistas têm o costume de chamar a cultura LGBTI de pós-moderna. Eles estão defasados, sem consistência teórica, criatividade, ousadia, pois se esqueceram de suas origens: a Revolução Russa.

Um pouco de contexto

No começo do século XX, a Rússia era um país majoritariamente, com técnicas de plantio da Idade Média. Apesar disso, Moscou, Petrogrado e cidades próximas tinham grandes concentrações de fábricas e um operariado recente, porém muito organizado.

Refletindo isso, por um lado, ocorriam relações sexuais entre homens de forma semelhante à Roma Antiga, geralmente na forma de prostituição masculina em uma relação desigual: entre um homem mais velho e um jovem, entre um nobre e um servo, entre um burguês e um soldado. Por outro, surgiam relações homoafetivas nos bares, nos restaurantes, nas estações ferroviárias das grandes cidades, envolvendo principalmente operárias ou operários.

Sendo bastante simplista, a política czarista para a homossexualidade era assim: casas de banho para os aristocratas e burgueses, prisão para operários, camponeses, dissidentes religiosos, artistas e intelectuais, pela lei de 1832 que previa prisão para a “sodomia” (muzhelozhstvo).

A Revolução Sexual

Antes de 1917, mencheviques e bolcheviques defenderam a descriminalização da “sodomia” na Duma, o parlamento russo. Para os bolcheviques, o velho código criminal czarista moralista deveria ser abolido.

Após a Revolução de Outubro de 1917, o código penal foi revogado. Nikolai Semashko, bolchevique e médico envolvido na insurreição militar de Outubro, foi nomeado como Comissário do Povo para a Saúde (como se fosse um Ministro da Saúde), com aprovação da direção nacional dos bolcheviques e do soviete central da Rússia. Ele levou adiante uma política que ele denominou de revolução sexual.

Alexandra Kollontai, outra bolchevique de destaque, escreveu livros em defesa de uma nova mulher, para quem sexualidade seria livre, inclusive em relacionamentos envolvendo mais de duas pessoas. O próprio Lenin, percebendo que havia muita resistência entre os bolcheviques aos escritos de Kollontai, apoiou-a dizendo que ela deveria continuar sua disputa.

Apesar da descriminalização, era muito comum que policiais agissem com violência com homossexuais e prostitutas. Reagindo a isso, em dezembro de 1922, Nikolai Semashko estabeleceu uma comissão responsável por elaborar planos de assistência social e educação para prostitutas para que elas saíssem voluntariamente da prostituição. Nikolai Semashko e Clara Zetkin rejeitavam a intervenção policiais contra as prostitutas ou mesmo os cafetões. Segundo Clara Zetkin, criminalizar os cafetões apenas iria empurrar a prostituição para a marginalidade, impossibilitando as políticas de assistência, de educação e prevenção de doenças.

Com respeito a todas as políticas envolvendo o tema da sexualidade, Nikolai Semashko e outros médicos acompanhavam os trabalhos do Instituto Científico-Humanitário, na Alemanha, dirigido pelo doutor Magnus Hirschfeld, o principal ativista do movimento homossexual do começo do século XX. No drama Anders als die Andern, de 1919, que relata um romance entre dois rapazes que termina de forma trágica, o próprio Hirschfeld explica sobre a homossexualidade, a lesbianidade, a identidade de gênero e a intersexualidade, que não seriam crimes nem doenças. Ao final, aparece o código penal aberto no Parágrafo 175, que criminalizava a “sodomia”, que é riscado por uma mão segurando uma caneta.

Semashko e outros soviéticos visitaram o Instituto em 1923, requisitando assistir ao filme. Conforme consta no jornal do próprio instituto, eles ficaram assustados com o fato que aquele filme havia causado um escândalo e sido proibido na Alemanha.

[Semashko] relatou como ele estava satisfeito que, na nova Rússia, todas as penalidades anteriores contra os homossexuais haviam sido completamente abolidas. Ele também explicou que nenhuma consequência indesejada de qualquer tipo havia surgido pela eliminação do parágrafo criminal, e que o desejo de reintroduzir a penalidade em questão não havia surgido em momento algum.

Em 15 setembro de 1933, Guenrikh Iagoda, chefe da OGPU (a polícia de segurança, um órgão da NKVD, o Comissariado do Povo para os Assuntos Internos) propôs a restrição da homossexualidade a Stalin. Em sua carta, afirmava que era um problema de segurança do estado que houvesse uma lei contra os “ativistas pederastas” (sic). Ao encaminhar a carta para Lazar Kaganovich, Stalin afirmou que “esses canalhas devem receber punição exemplar e um decreto correspondente deve ser introduzido em nossa legislação”. Em 1934, um decreto introduziu o artigo 121 ao código penal soviético, criminalizando novamente a “sodomia” (muzhelozhstvo).

Por uma nova Revolução Sexual e de Gênero

É verdade que os bolcheviques, com respeito às políticas LGBTIs, cometeram muitos erros. O maior erro é a própria falta de compreensão política e teórica entre os diversos membros do partido com respeito às opressões. Isso levou a que Kollontai e diversos escritores homossexuias fosse difamados e caluniados nos jornais soviéticos a partir de 1923, com o adoecimento e a morte de Lenin. Mas há um mérito dos bolcheviques: os membros mais avançados neste debate tinham posições de destaque.

Os desafios de hoje só podem ser superados se nós acabarmos de vez com esse “medinho” que os marxistas têm de defender a fundo as demandas democráticas das LGBTIs, das mulheres, negras e negros, pessoas com deficiência, gordas, etc. É preciso superar esse discurso que essas demandas são pós-modernas. Nenhuma demanda, nenhuma reivindicação das pessoas oprimidas é pós-moderna em si mesma.

Neste debate, reivindico o melhor de Nikolai Semashko, Alexandra Kollontai, Grigori Batkis, Georgi Chicherin, Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, Antonio Gramsci, James Cannon, que tinham plena consciência de que é preciso, sim, defender a fundo e sem reservas as demandas mais sentidas e mais reivindicadas pelos setores oprimidos, por mais simples que pareçam. E convido a todas e todos os marxistas a fazerem o mesmo, esquecer todos os retrocessos no marxismo que apareceram ao longo do século XX e nos posicionar em defesa da mútua aliança entre os movimentos de oprimidos e os movimentos da classe trabalhadora, em defesa de uma verdadeira revolução socialista.

Referências

Fiks, Yevgeniy. Moscow. Brooklyn: Ugly Duckling, 2013.

Healey, Daniel. “The Russian Revolution and the Decriminalisation of Homosexuality.” Revolutionary Russia 6.1 (1993): 26-54.

Healey, Daniel. Homosexual Desire in Revolutionary Russia: The Regulation of Sexual and Gender Dissent. Chicago: U of Chicago, 2001.

Trotsky, Leon. A Teoria da Revolução Permanente. São Paulo: Editora Sunderman, 2010.

Ver também: “A ousada carta de Harry Whyte a Josef Stalin”

Foto: Binaries are for computers