Pular para o conteúdo

O esporte que não salvou Maria Eduarda

Por: Rebeca Signorelli Miguel*, de Capinas, SP
*professora de Educação Física, mestra em Educação Física e doutoranda na Faculdade de Educação da UNICAMP

Esta semana me deparei com um relato de um professor da escola onde Maria Eduarda, a menina de 13 anos morta pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, estudava. No texto, o professor debatia a guerra contra as drogas, financiada pelo Estado capitalista, que mata jovens todos os dias e matou a adolescente. Depois, comentava sobre o esporte, que a fazia sonhar. O primeiro é um tema muito bem debatido pela esquerda brasileira. O segundo, merece mais atenção na luta anticapitalista, e é esse o propósito deste texto.

A morte da aluna enquanto treinava na escola, apesar de divulgada como proveniente de bala perdida, é resultado da guerra higienista do Estado que escolhe pobres e pretos sob a justificativa de um combate ao tráfico de drogas, combate este, ilegítimo e mentiroso. A escola onde ela estudava era conhecida pelos seus resultados esportivos na cidade, e a aluna, pelo seu envolvimento com o esporte – se destacava na modalidade basquetebol.

O discurso dominante na sociedade é de que o esporte tira das drogas, cria disciplina para o trabalho e para os estudos, restabelece comunidades violentas, gera saúde, propicia ascensão social, entre outras ideias que legitimam sua consolidação na sociedade. Nessa perspectiva, o esporte salva vidas. Mas não salvou Maria Eduarda.

As poucas notícias sobre a morte lembram do sonho da menina de 13 anos em ser atleta. Eis aí o poder desse esporte que salva: fazer as pessoas sonharem. Sonharem com tudo que o discurso dominante nos diz ser possível. Maria Eduarda sonhou, mas não será acordada.

O esporte, hoje em dia capitalista, responde às demandas do capital. Joga do lado do nacionalismo que mascara a realidade do povo, das grandes empresas que lucram com seus patrocínios e continuam promovendo a exploração de milhões de trabalhadores, da seleção minuciosa de corpos bem treinados e domesticados, das atletas mulheres que treinam com pouca condição e que recebem menos do que os atletas homens, do mercado dos megaeventos esportivos (que gentrifica, desaloja, higieniza).

O esporte escolar, que acontece na escola e que se mostra principalmente em competições interescolares, é fruto desse esporte capitalista, que forma nas instituições de ensino uma ampla massa de consumidores enaltecedores dessa prática corporal bela, elaborada pelas grandes mídias e vivenciada durante os momentos de lazer (seja no estádio – cada vez menos – ou na televisão). Mas será que ele pode fazer sonhar estes jovens, alvos do Estado capitalista?

As práticas corporais, esportivas ou não, foram sistematizadas histórica e socialmente pela humanidade. Assim sendo, são possíveis de serem modificadas, transgredidas por ela. O esporte é possível de ser ressignificado nas suas práticas, mas não que isso seja fácil e/ou automático. Esta reconstrução do esporte está atrelada à transformação da sociedade capitalista e às tantas lutas necessárias hoje em dia.

Por isso, não se trata de uma mera defesa de boicote ao esporte, ou de esvaziamento de sua prática, principalmente em comunidades com poucas ou nenhuma opções de lazer aos moradores. Mas também, não de seu consumo desenfreado e enaltecido. A necessidade é de uma prática esportiva consciente, capaz de provocar reflexão crítica a seus praticantes e espectadores.

Na escola, que ele seja ferramenta socializadora, de lazer, de prazer, mas mais que isso, que ele reúna potências criativas que combatam suas ferramentas legitimadoras:  o salvacionismo (das drogas, da pobreza individual), o nacionalismo ufanista, a domesticação dos corpos. Que ele nunca seja instrumento de cegueira social e sonho iludido, porque os colegas da Maria Eduarda já entenderam que, contra a higienização social, o esporte capitalista, amigo deste Estado, não os salvará.