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A esquerda socialista e o agravamento da crise na Venezuela

Por Euclides de Agrela, Fortaleza/CE

A última semana de março foi marcada por um significativo aprofundamento da crise política venezuelana.

No dia 30, em resposta aos sucessivos apelos da Assembleia Nacional venezuelana à Organização de Estados Americanos (OEA) sobre a violação da ordem constitucional em conformidade com a Carta Democrática Interamericana[1], o Tribunal Superior de Justiça (TSJ) proclamou as sentenças 155 e 156 que acusaram os deputados nacionais de traição à pátria, desconhecendo a imunidade parlamentar e retirando as funções legislativas da Assembleia Nacional. Ao mesmo tempo, outorgou-as ao próprio TSJ e ao presidente Nicolás Maduro.

Logo a OEA e o Mercosul adotaram medidas para pressionar ainda mais o governo. Nem mesmo Cuba apoiou a decisão do TSJ. Tampouco as sentenças tiveram apoio da Fiscal Geral da Venezuela, a chavista Luisa Ortega Díaz. A medida foi tão desastrosa, que apenas dois dias depois, em 01 de abril, ela foi revogada pelo mesmo TSJ, a pedido do próprio presidente Nicolás Maduro.

Origens imediatas da crise política

A crise política atual é o fruto do fracasso das rodadas de diálogo entre o governo Nicolás Maduro e a Mesa de la Unidad Democrática (MUD), ocorridas em 30 de outubro e 11 de novembro de 2016.

Os dois pontos mais importantes dessas reuniões trataram da grave crise econômica, que tem como uma das suas principais consequências o desabastecimento, e da crise política, em torno da convocação ou não de um referendo, previsto na Constituição venezuelana, sobre a revogação do mandato do presidente Nicolás Maduro.

Em relação à economia, o governo Maduro e a MUD se dispuseram a trabalhar conjuntamente para combater “a sabotagem, o boicote ou a agressão à economia venezuelana”. O diálogo entre o governo Maduro e a MUD não tinham nada a oferecer aos trabalhadores e ao povo venezuelano encurralados pela inflação, o desabastecimento, os baixos salários e o desemprego. Desta maneira, o governo Maduro avançava num acordo com a oposição de direita para garantir a governabilidade em troca de mais concessões econômicas à burguesia pró-imperialista.

Sobre a crise política, havia sido acordado a busca do fim da intervenção do Tribunal Superior de Justiça (TSJ) sobre a Assembleia Nacional. Tal intervenção não teve início agora, mas a partir da impugnação da eleição dos deputados do Estado do Amazonas, denunciada como fraudulenta pelo Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV). Dos quatro deputados eleitos, três eram do MUD e apenas um do PSUV, o partido do presidente Maduro.

Demonstrando suas intenções de chegar a um acordo com o governo Maduro, no dia 15 de novembro de 2016, apenas quatro dias depois da segunda mesa de diálogo, a MUD solicitou à Assembleia Nacional o desligamento dos seus três deputados do Estado Amazonas. Em contrapartida, o chavismo assumiu o compromisso de trabalhar conjuntamente com a MUD na nomeação consensual dos juízes do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que teriam seus mandatos renovados em dezembro de 2016.

Ainda que a oposição de direita possua uma significativa maioria na Assembleia Nacional – a MUD obteve 112 dos 167 deputados nas eleições parlamentares de 06 de novembro de 2015, o que correspondeu a 56,2% dos votos –, não conseguiu reunir força política e institucional suficiente para impor o referendo revogatório.

O “Caso Amazonas” e a renovação do CNE representaram mais uma demonstração cabal de que o chavismo controla a maioria absoluta do poderes e instituições do Estado, desde o Poder Executivo, passando pelo Poder Judiciário, pelo CNE até chegar às Forças Armadas.

O diálogo entre o governo Maduro e a MUD explode definitivamente quando o primeiro adiou as eleições regionais para governadores, previstas para dezembro de 2016 e postergadas para junho de 2017.

Porque então as eleições regionais foram adiadas? Segundo o CNE, para que haja uma renovação dos partidos que não participaram com sua própria legenda nos dois últimos pleitos, ou seja, para obrigar aos partidos que se resguardaram particularmente sob a legenda da MUD[2] a se apresentarem com cara própria nas próximas eleições. Esse processo teve início no dia 18 de fevereiro e durará cerca de dois meses e meio.

No entanto, as eleições regionais foram mais uma vez prorrogadas pela presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela, Tania de Amelio, agora sem previsão de uma nova data. Isso ocorreu por um motivo muito simples: o chavismo teme perder fragorosamente as eleições regionais, a exemplo do que sucedeu nas parlamentares de 2015.

Apesar de o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) venezuelano ter voltado atrás em sua decisão de assumir as funções da Assembleia Nacional, a oposição de direita não ficou satisfeita e seguiu denunciando que “o golpe de Estado continua”. A MUD fez um chamado à realização de protestos de rua, ocorridos nesta terça-feira, 04 de abril, para exigir a destituição dos magistrados do TSJ que ditaram as sentenças que retiraram os poderes da Assembleia Nacional, a libertação dos presos políticos da oposição de direita – a exemplo de Leopoldo López, ex-prefeito do Município Chacao de Caracas – e que se marquem definitivamente as eleições regionais.

 Desastre econômico e social

O pano de fundo da grave crise política venezuelana trata-se de uma verdadeira catástrofe econômica e social.

A produção de petróleo, setor-chave da economia venezuelana, representa 93% das exportações. A queda dos preços do barril de petróleo no mercado mundial é a razão basilar do desastre econômico e social do país. Em 2012, o preço do barril de petróleo chegou a atingir US$ 140,00. Atualmente, o preço do barril encontra-se oscilando em torno de apenas US$ 50, 00.

A Venezuela, ao ser quase que absolutamente dependente da renda petrolífera, está refém das oscilações dos preços do petróleo no mercado mundial, o que afeta de maneira dramática a dinâmica do seu Produto Interno Bruto (PIB), exportações, importações, orçamento nacional, câmbio e inflação.

Só em 2016 a economia caiu, segundo o FMI, 12% e cairá outros 6% em 2017. A inflação em 2016 superou 750%, ressaltando que o governo não dispõe dados oficiais. O FMI projeta uma inflação de 2000% para o ano de 2017. O desabastecimento bateu 60% e mais de 50% da população já se encontra em situação de pobreza.

Aumento da pobreza absoluta e relativa, do desemprego, do trabalho informal, dos cortes orçamentários nas áreas sociais, da subnutrição e da fome são as consequências dramáticas da crise economia e social que assola o país.

A geopolítica do petróleo venezuelano

Os Estados Unidos são o segundo destino do petróleo venezuelano, estando atrás apenas da China. Cabe destacar uma novidade: Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA) comprou em janeiro 550 mil barris dos Estados Unidos, fato que nunca havia ocorrido em 100 anos de atividade petrolífera do país. A petrolífera venezuelana adquiriu o óleo leve estadunidense para diluir a produção de seus óleos pesado e extrapesado, que obtém menor preço no mercado e são mais difíceis de vender.

Maduro não deixará de fornecer petróleo aos Estados Unidos porque, se o fizer, aprofundará ainda mais a grave crise econômico-social, na medida em que tal atitude comprometeria qualitativamente a entrada de petrodólares no país. Em 18 anos de sucessivos governos chavistas, a Venezuela nunca deixou de fornecer petróleo para o imperialismo estadunidense.

No entanto, quais países e companhias terão o privilégio de explorar prioritariamente o petróleo em solo venezuelano em parceria com a PDVSA nos próximos anos? As norte-americanas ou as chinesas e russas?

No tabuleiro da geopolítica do petróleo é pública e notória a dependência crescente da Venezuela em relação à China e à Rússia. Atualmente 40% do petróleo venezuelano é comprado pela China; 20% pelos Estados Unidos; 20% pela Índia; 10% pela América Central, Caribe e Cuba; e 10% por outros países.

Ainda que a Rússia não esteja entre os principais importadores do petróleo venezuelano, nos últimos anos, emprestou 5 bilhões de dólares à Venezuela, que deveria pagar a dívida por meio de fornecimentos de petróleo e combustível. Já os empréstimos feitos pela China à Venezuela ultrapassam 50 bilhões de dólares.

Devido à catástrofe econômica pela qual passa a Venezuela, que repercute inclusive na desorganização do seu parque produtivo, em particular do petróleo, a PDVSA está com o fornecimento de cerca de 10 milhões de barris de derivados do petróleo atrasado à principal petrolífera russa, a Rosneft, e à chinesa CNPC.

Parte significativa desses empréstimos são diretamente da própria PDVSA. A estatal russa Rosneft emprestou 1,5 bilhão de dólares à petrolífera venezuelana obtendo com garantia a metade das ações da Citgo, a filial da PDVSA nos Estados Unidos. Além disso, mais de 40 bilhões de dólares em créditos com a China devem ser pagos em barris de petróleo.

Dito isto, empresas russas e chinesas poderiam tomar o controle da PDVSA, caso a petrolífera venezuelana não consiga cumprir com seus compromissos devido à baixa produção e ao baixo fluxo de caixa, advertiu Steve Hanke, economista e professor da Universidade Johns Hopkins (EUA).

O caráter político e de classe do chavismo

 O governo Nicolás Maduro, da mesma forma que o de Hugo Chávez, trata-se de um governo populista de esquerda, não é um governo burguês normal, mas um governo de conciliação de classes encabeçado por um amalgama entre a oficialidade do exército, intelectuais e organizações político-sindicais reformistas.

Desde a ascensão de Chávez à presidência da República, em 1998, todos esses setores, particularmente a oficialidade do Exército, vieram se convertendo na chamada burguesia bolivariana, proprietária de inúmeras empresas que vivem particularmente de parcerias público-privadas com o Estado e PDVSA, negócios de importação e exportação e, sobretudo, especulação com os petrodólares.

Os militares tiveram e seguem tendo ampla ingerência em muitas esferas da administração, a qual também lhes deu oportunidades para negociatas e enriquecimento. Por exemplo, no atual gabinete de Maduro, dos 32 ministros, 11 são militares (quatro da reserva e sete na ativa). Além disso, no começo desse ano, Maduro reforçou a presença militar na PDVSA.

A Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) dirige e controla toda uma série de empresas: o banco BANFANB; AGROFANB, empresa agrícola; EMILTRA, de transporte; EMCOFANB, de sistema de comunicações; TVFANB, um canal digital aberto; TECNOMAR, empresa mista de projetos de tecnologia; FIMNP, um fundo de investimento; CONSTRUFANB, construtora; CANCORFANB, empresa mista; Água Tiuna, engarrafadora de água; e CAMINPEG, companhia anônima de industrias minerais, petrolíferas e de gás, criada em fevereiro de 2016, que vem sendo chamada de PDVSA paralela.

No entanto, apesar de não ter rompido com o imperialismo estadunidense, continuar tendo os Estados Unidos como um dos principais importadores do seu petróleo, possuir uma dependência quase absoluta da renda petroleira e pagar religiosamente a dívida externa, seria de uma superficialidade tremenda considerar que o chavismo possui o mesmo caráter pró-imperialista da oposição de direita venezuelana. Pelo seu caráter político-social e suas relações atritadas com o imperialismo, podemos caracterizar o chavismo, por aproximação, como bonapartismo sui generis, a exemplo da análise realizada por Trotsky sobre o México governado pelo general Lázaro Cárdenas (1934-1940).[3]

Esta definição cabe à Venezuela, em primeiro lugar, porque no tabuleiro da geopolítica do petróleo, como explicamos mais acima, o chavismo vem privilegiando as relações com a China e a Rússia. Ainda que de maneira tímida e limitada, é preciso admitir que Chávez, antes, e Maduro, agora, vem enfrentando aos trancos e barrancos a tendência ao monopólio imperialista da produção e distribuição mundial de petróleo, mas para tornar-se cada vez mais dependente da China e da Rússia.

Em segundo lugar, porque na medida em que a PDVSA é a principal empresa nacional, dela dependendo toda a economia do país vinculada à renda petrolífera, quem mantiver em suas mãos o Poder Executivo, controlará a PDVSA, a produção de petróleo, as exportações e importações, a política cambial, monetária e fiscal. Portanto, a fração burguesa que controla o aparato do Estado, controlará a economia e a regulação do mercado capitalista de maneira praticamente absoluta. Esse controle hoje exercido pela burguesia bolivariana não condiz diretamente com os interesses do imperialismo estadunidense.

Em terceiro lugar, porque ao chavismo arvorar a bandeira do Socialismo do Século XXI, joga sobre as costas dos inimigos externo e interno a responsabilidade pela crise política, econômica e social. A própria redução das verbas orçamentárias para as políticas sociais compensatórias, para os subsídios à importação de alimentos, medicamentos e demais gêneros de primeira necessidade são creditadas ao boicote e a sabotagem da burguesia opositora e pró-imperialista.

Ainda que o chavismo sequer proponha a construção de um país capitalista independente e um Estado de Bem-Estar, ainda que a burguesia bolivariana seja completamente vinculada à renda petroleira e à especulação financeira, não podemos identificar esse projeto com o da MUD, sob pena de incorrermos em sérios erros políticos. O projeto político do chavismo, assim como o do PT, no Brasil, esteve baseado num amplo espectro de políticas sociais compensatórias, através das chamadas “Misiones”, hoje completamente fragilizadas pela debacle do orçamento nacional esvaziado pela queda drástica dos preços do petróleo no mercado mundial.

Três posições equivocadas da esquerda socialista

 Diante da complexa situação geopolítica, política, econômica e social da Venezuela há três posições manifestadas por diferentes organizações da esquerda socialista que se demonstram não somente equivocadas, mas bastante perigosas.

A primeira é o apoio incondicional às medidas bonapartistas de Nicolas Maduro diante da ofensiva eleitoral da direita venezuelana e do imperialismo. Os que defendem essa posição, agitam permanentemente a ameaça de uma suposta invasão imperialista ou golpe militar de direita. Isso é um grave erro, na medida em que a tática do imperialismo, desde o fracasso do golpe contra Chaves e do “paro petrolero” de 2002-2003, vem sendo fortalecer um amplo movimento de oposição político-eleitoral. Essa tática se demonstrou tão eficaz nos últimos anos a ponto da MUD ganhar as últimas eleições para a Assembleia Nacional, celebradas em 06 de dezembro de 2015. Fato este que estabeleceu um novo patamar para a luta política ao contrapor diretamente os poderes Executivo e Legislativo. Além disso, Nicolás Maduro, vinha mantendo um significativo controle das Forças Armadas, não havendo até então nenhuma importante fissura, muito menos divisão na alta oficialidade, que possibilitasse um golpe militar da direita. Os primeiros sinais vieram com a nova medida que retirava poder da Assembleia Nacional. Por isso, inclusive, recuou. Quer mantê-la unida ao seu redor.

Uma segunda posição, com um sentido inverso à primeira, trata de igualar o projeto político do chavismo e o governo de Nicolas Maduro com o projeto do imperialismo da oposição de direita, afirmando lugares-comuns como “todos são farinha do mesmo saco”: burgueses, corruptos e inimigos dos trabalhadores. O problema fundamental para os que endossam essa posição é a defesa das liberdades democráticas contra a burguesia bolivariana, que se encontra à cabeça do governo e busca manter-se à custa de medidas bonapartistas. Essa posição resvala na perigosa tentação de considerar que o inimigo do meu inimigo é meu amigo, na medida em que o combate às medidas bonapartistas de Nicolás Maduro poderia se dar, supostamente, em unidade de ação com a MUD.

Há ainda uma terceira posição, mais eclética, representada pela fórmula nem-nem: nem governo, nem oposição. Essa política, apesar de aparentemente mais equilibrada que as duas anteriores, tem um grave problema: recusa-se a fazer exigências ao governo de Nicolás Maduro, limitando-se à agitação abstrata de palavras de ordem, deixando de propor ao chavismo qualquer desafio político com o objetivo de fazer avançar a experiência das massas assalariadas e populares que giraram à esquerda no período anterior. Essa posição nega-se na prática a desmistificar a manobra de que o descalabro econômico e social pelo qual passa a Venezuela deve-se única e exclusivamente ao boicote e à sabotagem da burguesia pró-imperialista e dos Estados Unidos e não, sobretudo, ao projeto político e as medidas econômico-sociais do suposto “Socialismo do Século XXI”.

 Um programa de transição para a Venezuela

 Seria um grave erro imaginar que, devido à perda de apoio popular de Nicolás Maduro por amplos setores de massas, estaria colocada de imediato a palavra de ordem de “Fora Maduro”. Isso seria um grave erro porque o Fora Maduro hoje se traduziria imediatamente numa saída pela direita, capitaneada pela MUD e o imperialismo estadunidense.

Desgraçadamente, não existe até agora na Venezuela nenhuma saída pela esquerda. A fragmentação, atomização e fragilidade da esquerda socialista não possibilitou o surgimento de nenhuma alternativa de massas ao chavismo. Isto se deve, em primeiro lugar, à capitulação da maioria da esquerda socialista ao chavismo, que lhe rendeu durante quase vinte anos um vergonhoso apoio crítico.

Por outro lado, àquelas organizações da esquerda socialista que não capitularam velada ou abertamente ao chavismo, abdicaram de uma política de massas para se contentarem em fazer propaganda baseada quase que exclusivamente na agitação de caracterizações em torno a denúncias do chavismo: traidores, burgueses bolivarianos, corruptos, etc. Dentre estes, há aqueles inclusive que se permitiram fazer unidade de ação com a oposição de direita contra a corrupção e em defesa das liberdades democráticas.

As lutas do movimento das massas assalariadas e populares em defesa de suas condições de vida e trabalho estão também divididas, fragmentadas e atomizadas. Como se isso não bastasse, a bandeira não só da luta contra a corrupção, mas, sobretudo, da defesa das liberdades democráticas está sendo conduzida desgraçadamente pela oposição de direita que vem apostado todas as suas fichas nos processos eleitorais.

A defesa de um programa da esquerda socialista para a Venezuela deve necessariamente passar, nas condições atuais da luta de classes do país, por uma política de exigências e denúncias ao governo Maduro. Por outro lado, a defesa desse mesmo programa deve basear-se na batalha pela construção de um polo de classe independente. Isso porque será a partir da própria base social do chavismo, o setor mais progressivo que remonta ao período de ascensão anterior, que poderá surgir uma alternativa à esquerda.

Não há como combater o boicote e a sabotagem econômica dos setores mais pró-imperialistas da burguesia venezuelana com mesas de diálogo. Tampouco a burguesia pró-imperialista deve ser combatida com medidas bonapartistas que restrinjam as liberdades democráticas para todo o povo.

Da mesma forma, não é possível atender às reivindicações dos trabalhadores e do povo sem frear o apetite voraz da burguesia bolivariana e combater a corrupção endógena ao aparato do Estado e ao próprio governo.

A esquerda socialista deve dizer que para combater a presente catástrofe econômica e social é necessário, em primeiro lugar, romper com o imperialismo estadunidense e o FMI, deixar de pagar a dívida externa e interna aos bancos e especuladores privados, estatizar o sistema financeiro. Com os recursos antes destinados ao pagamento da dívida e os provenientes da renda petroleira, o governo deve colocar em marcha um Plano de Emergência para reerguer a economia nacional e colocá-la a serviço dos trabalhadores e do povo.

Em segundo lugar, é necessário uma PDVSA 100% estatal, pondo fim a todas as empresas mistas com transnacionais petrolíferas estadunidenses, chinesas, russas ou de qualquer outro país. A PDVSA deve ter toda a sua burocracia corrupta destituída e eleger um conselho gestor entre seus próprios trabalhadores com mandatos revogáveis que preste contas publicamente a toda sociedade sobre a administração da empresa. Também é necessário expropriar sem indenização as empresas privadas que sabotem a economia do país fazendo coro ao boicote imperialista.

Em terceiro lugar, é necessário um plano de emergência que garanta investimentos maciços para ampliar e diversificar a produção industrial e agrícola do país, rompendo com a matriz econômica baseada na exportação de commodities. Industrializar o país rompendo a dependência externa e garantir a soberania alimentar é central. Um primeiro passo neste sentido é estatizar sem indenização toda a indústria de alimentos e construir um grande complexo agroindustrial nacional que produza alimentos de qualidade e baratos para todo o povo. Para combater o mercado negro, deve-se estatizar ainda as redes privadas de supermercados e criar um sistema de distribuição de alimentos controlado desde baixo pelos próprios trabalhadores.

Em quarto lugar, como parte desse plano de emergência, com o objetivo de gerar empregos e recuperar o poder aquisitivo da população, deve-se reduzir a jornada de trabalho, repor todas as perdas inflacionárias e garantir o aumento geral dos salários para que alcancem o atendimento pleno das necessidades de moradia, alimentação, saúde, educação, vestimenta, transporte e lazer das famílias dos trabalhadores.

Em quinto lugar, a Venezuela precisa de um grande plano de obras públicas que ponha fim ao déficit habitacional, construa escolas, hospitais, garanta o abastecimento de água e saneamento básico. Através desse plano poderá se reduzir também drasticamente o desemprego.

Em sexto lugar, a estatização da saúde e da educação privadas e a universalização da saúde e da educação púbicas e gratuitas para todos e em todos os níveis.

Em sétimo lugar, mas não menos importante, a garantia das mais amplas liberdades democráticas para os trabalhadores e o povo possam organizar independentemente do governo e do aparato estatal seus partidos, sindicatos, associações, manifestações e greves.

 Por uma Assembleia Nacional Constituinte Livre, Democrática e Soberana

Além de mobilizar e exigir do governo um programa que aponte uma saída para a crise do país, a esquerda socialista deve também exigir e lutar por uma Assembleia Nacional Constituinte Livre, Democrática e Soberana eleita pela base e composta por representantes genuínos dos trabalhadores e do povo, que não só reorganize o país sobre novas bases econômico-sociais, como apontamos acima, mas também sobre novas bases políticas. Para isso será necessário:

1) Concentrar os poderes Executivo e Legislativo numa Assembleia Unicameral, pondo fim à presidência da República, fonte de medidas autoritárias. Entregar o poder aos representantes do povo eleitos nos locais de trabalho e nos bairros populares com mandatos revogáveis a qualquer momento;

2) Garantir a proporcionalidade direta na eleição da Assembleia Nacional, dando direito à plena representação das minorias políticas;

3) Por fim à casta vitalícia dos juízes e garantir a eleição direta e universal de juris populares;

4) Instituir uma autêntica revogabilidade de mandatos e reduzir os salários de todos aqueles que exerçam funções de administração, fiscalização e controle no aparato estatal ao salário médio de um trabalhador especializado;

5) Acabar com a intervenção da FANB na vida civil e econômica do país e extinguir suas funções repressivas contra o povo. Deve-se constituir uma Segurança Pública que tenha um caráter civil, centralmente comunitária, investigativa e preventiva a serviço da população e não um caráter militar repressivo. As forças armadas, por sua vez, devem ser constituídas sobre a base de milícias populares colocados a serviço da defesa do país e dos trabalhadores.

Assim como o programa, uma Assembleia Nacional Constituinte só poderá ser conquistada a partir da mobilização popular. A esquerda socialista deve centrar seus esforços no sentido do impulso da mobilização dos explorados e oprimidos, estimulando a construção de organizações independentes do governo Maduro e da oposição de direita. A estratégia deve ser alcançar um Governo dos Trabalhadores e do Povo, que tome em suas mãos os destinos do país e que tenha como objetivo a construção do autêntico socialismo, sem capitalistas e burocratas corruptos.

[1] A carta Democrática Interamericana (CDI) é um mecanismo concebido em casos de alteração ou ruptura da linha democrática e constitucional em um de seus Estados-membro. Aprovada pelos 34 países da OEA em 11 de setembro de 2001, em Lima, a Carta define os “elementos essenciais da democracia representativa”. De acordo com o artigo 17, um governo de um país membro pode recorrer ao secretário-geral ou ao Conselho Permanente para pedir assistência em caso de risco à democracia ou seu exercício no poder. Por outro lado, no artigo 18, a iniciativa também pode surgir do Conselho Permanente ou do secretário-geral para, com o consentimento do governo afetado, realizar gestões diplomáticas neste país. Mas a Carta também prevê cenários de “alteração da ordem constitucional que afetem gravemente a ordem democrática” ou de “ruptura da ordem democrática” (artigo 19), nos quais a OEA possa intervir sem o consentimento do governo afetado. Em última instância, em caso de grave “alteração” da democracia, o artigo 20 faculta ao secretário-geral ou qualquer país membro a convocar imediatamente um Conselho Permanente para avaliar a situação. Esta via, sem precedentes na história da CDI, foi a escolhida pelo atual secretário-geral da OEA, Luís Almagro, para intervir na crise venezuelana. Fonte: http://istoe.com.br/saiba-o-que-e-a-carta-democratica-interamericana-da-oea/

[2] O acordo que deu origem à MUD foi firmado em 23 de janeiro de 2008 pelos partidos: Acción Democrática (AD), Comité de Organización Política Electoral Independiente (COPEI), Bandera Roja (BR), Primero Justicia (PJ), Proyecto Venezuela (PV), Un Nuevo Tiempo (UNT), La Causa Radical (Causa R), Alianza Bravo Pueblo (ABP), Movimiento al Socialismo (MAS) y Vanguardia Popular (VP).

[3] O governo oscila entre o capital estrangeiro e o doméstico, entre a débil burguesia nacional e o proletariado relativamente poderoso. Isto confere ao governo um caráter bonapartista sui generis, um caráter distintivo. Ele eleva-se, por assim dizer, acima das classes. Na realidade, pode governar convertendo-se em instrumento do capital estrangeiro e aprisionando o proletariado com as correntes de uma ditadura policial ou pode ir manobrando com o proletariado e até chegar a fazer-lhe concessões, obtendo assim a possibilidade de certa independência em relação aos capitalistas estrangeiros. (TROTSKY, León. Sobre la liberación nacional. Ed. Pluma. Bogotá. 1980, pp. 61-62 – tradução livre; os negritos são nossos).