Pular para o conteúdo
Colunas

A história deu razão a Rosa Luxemburgo ou a Lenin?

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por Valerio Arcary, Colunista do Esquerda Online

Ao ler ontem um artigo sobre a revolução de fevereiro, de cem atrás, me surgiu o tema do lugar do espontâneo nas revoluções contemporâneas. O marxismo conheceu velhas discussões sobre o lugar do sujeito politico coletivo, ou seja, da organização revolucionária. A mais instigante, talvez, foi aquela entre Lenin e Rosa Luxemburgo. Tinham diferentes avaliações sobre o lugar da dialética do espontâneo e do consciente no processo revolucionário. Ambos concordavam com a necessidade da construção de um partido revolucionário. Mas tinham expectativas distintas sobre a relação entre a classe e o partido. O tema permanece interessante. Parece razoável considerar que já temos uma distância histórica suficiente para a verificação das duas hipóteses.

A busca de uma resposta remete à questão das revoluções sem direção política inequívoca. Ou, para sermos exagerados, politicamente, “acéfalas”. A metáfora, talvez, não seja a mais apropriada, mas responde à necessidade de descrever o “vazio” relativo de direção em algumas revoluções. Ou, se preferirmos, aos elevados graus de espontaneidade e improvisação da direção, que podem ser encontrados em inúmeras revoluções políticas.

A avalanche de mobilização de massas pode ser de tal maneira poderosa que a vitória da revolução, isto é, a derrocada do governo e do regime pode ocorrer de forma fulminante. Esse foi o caso da própria revolução de fevereiro de 1917, ou da revolução de Novembro de 1918 na Alemanha.

A força do sujeito social é tamanha, e a fragilidade dos regimes é de tal gravidade, que desmoronam como um “castelo de areia”. Em outras palavras, os fatores objetivos e subjetivos se apresentam desigualmente desenvolvidos em uma proporção tão assombrosa, os primeiros quase apodrecendo, e os segundos quase inexistentes, que essa contradição, não impede a revolução de triunfar. Nessas circunstâncias excepcionais, a ausência do sujeito político revolucionário foi suprida pelo ativismo das massas em movimento.

De qualquer forma, é importante notar, que nas revoluções político-sociais (aquelas em que mudou a natureza social do Estado e das relações sociais de produção, ou, pelo menos, se alteraram de, forma qualitativa, as relações de propriedade), ocorreu o fenômeno diretamente inverso: só triunfaram, pelo menos até hoje, revoluções dirigidas por sujeitos políticos, politicamente centralizados, como na Rússia, ou hiper-centralizados, militarmente, até, como na China, Vietnam e Cuba. Donde se pode avançar a conclusão, de que as necessidades subjetivas, como condição para a vitória, são muito diferentes nas revoluções políticas, comparativamente, às revoluções sociais.

Evidentemente, por vazio de direção, não se deve concluir que inexistiu qualquer direção política. Não existe vazio absoluto em política: sempre aparece alguma forma, mais ou menos improvisada, de sujeito político coletivo. Mesmo que disforme, sem maior densidade ou homogeneidade programática, “a necessidade abre o caminho”, e exige que surja da luta, uma direção política para que as massas tenham um ponto de apoio para as suas ações. É claro que, sendo improvisadas no calor das circunstâncias, a autoridade dessas direções é muito frágil. Mas as massas se apoiam no material humano que encontram disponível. Muito freqüentemente, aqueles que estiveram à frente da revolução, pela sua própria debilidade, mesmo se tendo cumprido um papel heroico no início da revolução, são deslocados rapidamente do caminho e não ascendem mesmo ao poder, e outro sujeitos políticos, surpreendidos pelo ascenso de massas, mas com maior enraizamento histórico e maior experiência, mesmo chegando atrasados na luta, acabam por “usurpar”o poder.

Todas as autênticas revoluções populares, despertam as massas, anteriormente resignadas, para a ação política direta, e dentro das massas em movimento, surgem milhares de pequenos chefes políticos, por lugar de trabalho, de moradia, nas cidades e nas vilas, enfim, por toda a parte, e, por isso, os graus de espontaneidade serão tanto maiores, quanto maiores forem as energias desbloqueadas. Mas se essa vanguarda ampla, inexperiente e desarticulada, não tiver um ponto de apoio nacional visível e credível, a tendência é que essa vanguarda se disperse, com a mesma velocidade que surgiu. Se a maturidade dos fatores objetivos for excepcionalmente grande, a primeira vaga da revolução pode triunfar, como revolução política, mesmo que a vanguarda ampla não encontre, para dirigi-la, um sujeito político coletivo (como aconteceu, recentemente, no Paraguai e na Indonésia). As forças espontâneas colocadas em movimento pela revolução, diante de uma regime político apodrecido, podem ser fortes o bastante, para derrubar o governo sozinhas, pela disposição revolucionária do sujeito social e, praticamente, sem sujeito político, isto é, sem um partido (ou mais de um partido, uma frente política, isso parece ser irrelevante), armados de um programa de mudança social, que queira fazer a revolução e tomar o poder. As revoluções políticas, os “fevereiros” da História, deram razão a Rosa Luxemburgo.

Mas explorando a analogia histórica por outro ângulo a conclusão é distinta. É verdade que as crises revolucionárias de “fevereiro” não exigiram, como condição insubstituível de vitória, a presença de um sujeito político. Por outro lado, todavia, as revoluções político-sociais, como “outubro”, parecem exigir, como uma alavanca imprescindível da vitória, fatores de subjetividade mais complexos. Sem uma direção política, sem um sujeito coletivo forjado, em décadas, de aprendizado e experiência, nas mais difíceis condições da luta de classes, e que tenha conquistado autoridade e confiança da vanguarda ampla, para o programa socialista, as revoluções político-sociais estariam fadadas à derrota.

Nesse sentido a história deu razão a Lênin. De qualquer forma, mesmo as revoluções, estritamente, políticas mais recentes, em sociedades urbanizadas e, politicamente, mais complexas, vêm se tornando mais complicadas, e colocando a necessidade do sujeito politico de forma mais aguda.