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A Santa do Capital: teatro, realidade e os matadouros

Por: Baiano, metalúrgico de Contagem, MG

Há uns meses, quando voltava da aula de teatro, encontrei no metrô o meu amigo escritor e ator Jessé Duarte. Colocamos o papo em dia e ele me falou que estava voltando do ensaio da peça A Santa do Capital¹, que é uma livre adaptação do texto original de A Santa Joana dos Matadouros, de Bertold Brecht.

A história gira em torno de matadouros (frigoríficos) que são fechados por causa de uma crise econômica e dos acidentes que mutilam e vitimam vários trabalhadores. Que por um lado retrata a dicotomia entre os interesses dos empresários e a situação dos trabalhadores e suas famílias que sofrem na pele as consequências do desemprego, mutilações, doenças físicas, doenças psicológicas e mortes que os levam à miséria, fome e sofrimento. Mostra como o capital se utiliza de várias facetas para se beneficiar, até mesmo da fé inspirada pela Senhora (Joana) que inicialmente faz parte de um grupo que faz pregações aos trabalhadores e depois se transforma em símbolo da luta contra a exploração e opressão capitalista feita pelas empresas aos trabalhadores e seus familiares.

Por gostar muito do autor, dos temas que ele aborda e já ter participado de uma peça adaptada dele, fiquei bastante interessado e curioso para assistir à peça.

A peça entrou em cartaz em fevereiro, mas só consegui assistir no sábado (18) passado, num momento mais que oportuno devido à “Operação Carne Fraca” deflagrada pela polícia federal,um dia antes que investigou esquemas de corrupção envolvendo vários frigoríficos (“Matadouros”).

A montagem do espetáculo teatral é da Companhia Cóccix Teatral e convidados e foi fruto de debates teóricos, treinamentos e experimentações de diversas técnicas teatrais, com a intenção de fugir dos padrões e moldes de criação, utilizando também vários espaços e ocupações da cidade de Belo Horizonte. Está sendo realizada com recursos do Fundo Municipal de Cultural, através da Lei de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte.

A montagem adaptada
Desde o início somos surpreendidos e fica nítido o desprendimento dos padrões de espaços teatrais que estamos acostumados. São utilizados vários espaços diferentes, adaptados para a apresentação de forma simples e criativa. Essa apresentação que assisti foi encenada em uma ocupação urbana chamada Espaço Comum Luiz Estrela, que não dispõe de uma estrutura muito adequada para um espetáculo teatral, apresentando várias dificuldades técnicas para dicção, iluminação, etc, mas, por outro lado, nos aproxima de algo real e eles conseguiram encontrar uma forma de superar os obstáculos técnicos e manter um nível técnico muito bom.

Existe uma interação muito grande com o público, que nos faz sentir como parte da apresentação. A interação se dá de diversas formas, seja com conversas, falas ou no espaço físico, como parte do cenário e imagem das cenas, que nos leva a viver e sentir vários sentimentos e conflitos dos personagens.

Nos deparamos com falas que expressam textos cultos e mais antigos, assim como populares mais atualizados e com traços regionais. Se utiliza de diversas linguagens, canções, sons, rituais, danças, falas que expressam conversas, versos e o chamado distanciamento onde os atores falam diretamente para o público.
É nítido pelo tema e pela abordagem que existe uma predominância de cenas sérias, fortes, que trazem tristeza, revolta e reflexão, mas em diversos momentos nos deparamos com situações e falas tragicômicas que nos arrancam boas risadas, sem exageros e sem fugir da seriedade das situações retratadas, mas como uma forma de envolver ainda mais o público no espetáculo.

A força e a realidade da montagem se alicerça em discutir questões sociais, políticas e econômicas que trazem à tona a luta de classes, a exploração e a opressão vivida pelo povo que depende do trabalho para sobreviver. Retrata a nossa vida e os dramas que vivemos no dia-dia do sistema capitalista que na busca por lucro dilacera a vida da maioria dos seres humanos, desde quando a peça foi criada até os tempos atuais onde a sua adaptação nos permite apreciá-la. É um choque de realidade e inspiração de luta, que nos faz indignar e nos alimenta de força e motivos para transformarmos a realidade nefasta que vivemos.

A atualidade do tema abordado
A peça original foi escrita por Brecht entre 1929 e 1931 durante a crise econômica há quase cem anos atrás, mas poderia ser tranquilamente confundida e encaixada com a realidade atual. A busca por lucros cada vez maiores e a todo custo por parte das empresas só tem aumentado, assim como, as consequências maléficas e barbaridades causadas pela ganância.

Por um lado, vemos os grandes “matadouros” praticando corrupção, venda de produtos com problemas sanitários, fora da validade, misturados com produtos cancerígenos e com papelão sem nenhuma preocupação com os consumidores. Por outro, uma produção em série que expõe os trabalhadores a exposição constante de variados instrumentos cortantes; realização de movimentos repetitivos que geraram graves lesões e doenças; pressão psicológica para dar conta do ritmo de produção; jornadas extensivas e até mesmo aos sábados; ambiente asfixiante, insalubre e muito frio.

Os problemas de saúde batem recorde nos “matadouros” brasileiros, sejam psicológicos ou principalmente físicos. A incidência de LER – Lesão por Esforço Repetitivo devido aos movimentos repetitivos é muito grande. Dados do Ministério da Previdência Social mostram que entre 2011 e 2014 aconteceram 5 acidentes por dia nos setores de abate de gado e de fabricação de produtos de carne2. Muitos dos acidentes levam à mutilação e até mesmo à morte de muitos trabalhadores.

Ocorrem no Brasil mais de 700 mil acidentes de trabalho por ano e a cada dia aproximadamente 55 empregados deixam definitivamente o mundo do trabalho, por morte ou incapacidade permanente³. Esses dados mostram que a lógica exploradora, opressora, gananciosa e destruidora é a base do sistema capitalista e não são só dos “matadouros”.

Como forma de ajudar a combater e tentar mudar essa situação o dia 28 de abril é o Dia Mundial em Memória às Vítimas de Acidente de Trabalho³. Uma boa forma de lembrar das vítimas e de refletir sobre esses problemas é assistindo à peça nas próximas apresentações também no mês de abril.

A montagem adaptada de A Senhora do Capital aparece em um momento importante e nos faz refletir sobre os problemas da atualidade através de um belíssimo espetáculo teatral que nos emociona, nos estimula e dá força para lutar para transformarmos essa realidade nefasta que assombra, destrói e leva à miséria milhares de seres humanos.

SINOPSE DA OBRA

Espetáculo teatral de ocupação urbana, “A Santa do Capital” é uma livre adaptação do texto “A Santa Joana dos Matadouros”, de Bertolt Brecht. As cenas, que revelam a rua, buscam a investigação dos mascaramentos e totens humanos, metamorfoseados, transfigurados, nos elementos da carne, da fome, da fé, do Capital. Aquele que se sobrepuja à realidade dos miseráveis. Aquele que permite-nos pensar o papel da Santa em meio ao caos da especulação financeira de todos os tempos. Quantas vozes dialéticas possíveis esta Santa pode ressaltar? Qual Santa nos alimenta o estômago? A serviço de quem ela propaga sua, nossa voz?

FICHA TÉCNICA

Direção: Lenine Martins
Dramaturgia: Rogério Coelho
Elenco: Sinara Teles, Jessé Duarte, Marcelo Aléssio, Rafael Bottaro e Rogério Gomes
Estudo da Conjuntura Política: Júlia Pereira
Direção Musical: Sérgio Andrade
Workshop Sonoro: Diego Poça
Cenário e Figurino: Marney Heittman
Artista Plástica: Fernanda Melo
Produção Executiva: Sinara Teles e Rogério Gomes ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: Vânia Silvério Contrarregragem: Davi Cesário
Iluminação: José Reis
Fotografia e Vídeo: NAUM Audiovisual
Artista Gráfico: Fabrício Trindade
Assessoria de Imprensa: A Dupla Informação
Realização: Cóccix Cia Teatral.

Agenda:

25 de março (sábado) – Minas Caixa – BH, às 20H00.
31 de março (sexta) – Museu de Arte da Pampulha – BH, às 20H00.
02 de abril (domingo) – Arquivo Público Mineiro – BH, às 20H00.
13 de maio (sábado) – Usina de Cultura – BH, às 20H00.

Notas:

1- Cóccix Companhia Teatral
2- Friboi: a campeã nacional em acidentes 
3-Por um abril em defesa da saúde e segurança do trabalhador