Pular para o conteúdo
EDITORIAL

Um ano sem Horácio Lagar

Por Júnior, de São José dos Campos, SP

Há um ano morria Horácio Lagar. Este registro é uma pequena contribuição de quem teve a oportunidade de militar, ainda que por um estrito lapso de tempo, ao lado deste que foi um dos grandes revolucionários de nosso tempo.

As linhas abaixo não possuem qualquer intenção de esgotar os elementos biográficos e políticos da vida de Horácio. São apenas recortes que se prestam a homenagear este que sempre considerei, para além dos acertos e equívocos, uma usina política dentro do movimento trotskista.

O primeiro encontro em Buenos Aires
Vi Horácio pela primeira vez em fevereiro do ano de 2002, na Argentina. Era verão, véspera de carnaval e à temperatura climática se somava o forte calor das ruas, tomadas por multitudinárias manifestações que já haviam atirado por terra mais de um governo.

Eu era um estudante de psicologia. Minha faculdade estava em greve há mais de 5 meses quando explodiu o que ficou conhecido como Argentinazo, em dezembro de 2001. Um amigo meu, Marcos, foi o primeiro a viajar para lá. Quando retornou e contou em detalhes a situação, não tivemos dúvida. Com pouco mais de R$ 50,00 cada, fomos de carona até a capital portenha.

Ainda não éramos militantes orgânicos de nenhuma corrente política, embora tivéssemos uma relação mais estreita com organizações trotskistas que protagonizavam a maior parte das lutas em nossa universidade. Mas tínhamos uma especial simpatia pelo MST, de quem compramos, por meio de um dirigente local, algumas providenciais iguarias de bananas desidratas, cachaças, algumas camisetas e bonés, que nos garantiram um pouco de dinheiro ao longo do caminho para nosso precário sustento. A viagem não demorou muito e tivemos a sorte de encontrar um pouco além da metade do caminho um membro de um sindicato de agricultores que, depois de nos dar carona na beira da estrada, nos pagou duas passagens até Buenos Aires. Em momentos de fortes convulsões sociais, a solidariedade é algo muito presente entre aqueles que mais sentem os golpes da realidade. Tivemos sorte. Em 5 dias de viagem, entre longas caminhadas, caronas e uma deliciosa viagem de ônibus, desembarcávamos na costa ocidental do Rio da Prata.

Apesar da aventura, nossa saída foi planejada. Edmilson, irmão de meu amigo com quem viajei, nos passou os contatos de duas organizações ligadas à LIT. Nos explicou que uma delas, a FOS, era a principal e a outra, então CS, era a simpatizante. Não sabíamos bem o que era uma coisa e outra, mas compreendemos que deveríamos primeiro solicitar abrigo ao FOS. Assim o fizemos. Passou-se um dia, nenhuma resposta. Passou-se dois, nada. Com pressa para não perder o processo que para nós poderia se exaurir rapidamente, consultamos a então CS no terceiro dia. Enviamos um e-mail pela manhã. Na parte da tarde já haviam retornado aceitando nossa estadia.

Ao chegar em Buenos Aires, nossa primeira parada foi junto a um movimento social “piquetero”, chamado MTD-Anibal Veron, com quem passamos alguns dias “tomando las calles”. Foi nesta ocasião que tive o orgulho de ter conhecido Kosteki, um barbudo de cabelos compridos que mais tarde, em junho de 2002, seria brutalmente assassinado junto com seu companheiro Santillán, naquilo que ficou conhecido como o “massacre de Avellaneda”.

Em insurreições como aquelas, aprendemos em segundos o que demoramos décadas para apreender em situações de calmaria. As diferenças políticas e estratégicas, que a meus olhos se assemelhavam mais a querelas metafísicas que qualquer outra coisa entre as organizações brasileiras, ganharam importância transcendente durante esta viagem. A luta de ideias em situações como aquelas podem ganhar força real, se penetradas nas massas. A batalha estratégica deixa o plano abstrato para ganhar corações e mentes nas ruas. Ela não é mais uma possibilidade remota, mas uma probabilidade iminente.

Pra além da admiração por aqueles homens e mulheres que compunham o movimento dos “desocupados”, as palavras de ordem de “trabajo, dignidad y cambio social”, somadas a uma metodologia de trabalho paralelo ao Estado me pareciam inadequadas em face da oportunidade histórica colocada. Foi então que decidimos conhecer novas organizações.

Entramos em contato com a CS. Rapidamente fomos recebidos. Um dos então dirigentes desta organização, Juan Carlos, nos informava da situação geral do país e de sua política, a Assembléia Constituinte, como um alternativa que melhor se adequava à realidade objetiva e subjetiva das massas.
Passamos alguns dias com alguns companheiros da então CS. Recordo-me de ter visto Horácio apenas uma única vez nesta ocasião. Foi quando nos explicou as linhas gerais da sua política. Fiquei impactado. Não apenas pela política – que me parecia e ainda me parece ter sido a saída mais justa à realidade – mas pela lucidez metodológica de quem sabia o que estava dizendo. Para explicar aquela política, me deu a primeira aula sobre a teoria da revolução permanente, explicando os nexos indissociáveis entre a tática e a estratégica, entre as demandas democráticas e as tarefas socialistas.

Explicou-me as diferenças com a política de seção oficial da LIT e nos disse de pronto que deveríamos procurar o PSTU tão logo retornássemos ao Brasil para que pudéssemos ajudar a resolver a grande crise da humanidade. Concordei, mas confesso que sem saber de qual “grande crise” ele se referia. Só mais tarde fui saber do que falava.

O Segundo Encontro
Entre agosto e setembro organizamos no Brasil o primeiro Encontro de Jovens do Campo e da Cidade, realizado na cidade de Londrina, no Paraná. A organização do encontro não foi tranquila. Participavam o DCE da UEM, da UEL e o MST. Durante as discussões sobre a composição das mesas tivemos um pequeno entrevero com o MST sobre a participação do PSTU, contra quem sugeriram veto. Não arredamos o pé e eles terminaram por consentir que viesse o Valério Arcary falar.

No DCE da UEM existiam basicamente três grupos: o PSTU, O Trabalho e os independentes, dos quais fazíamos parte eu e mais uma turma. Já éramos como uma força numericamente majoritária, embora não tivéssemos organicidade ou clareza programática. Decidimos que havia chegado a hora de nos organizarmos, mas as opções não nos contemplavam. Nos identificávamos melhor com as idéias trotskistas, mas não nutríamos pelas duas organizações predominantes desta cepa relações de confiança suficientes para que nos organizássemos com eles. Sabíamos que deveríamos nos organizar, mas ainda não sabíamos como.

Por sugestão de um ex-companheiro, Orivaldo, decidimos convidar para o Encontro a organização argentina Convergência Socialista. Como havia explodido uma insurreição no país vizinho, nada melhor que ter alguém de lá pra falar um pouco sobre a situação do país.
Foi a segunda vez que entrei em contato com Horácio, que veio junto a uma delegação formada por mais 3 companheiros, dos quais um deles, Fabian, meu primeiro e um dos melhores dirigentes que tive, acabaria ficando no Brasil para nos ajudar a estruturar nossa incipiente organização.

Embora estivesse aqui, até onde sei Horácio votou contra a relação conosco na reunião do CC da CS que decidiu pela aceitação de nosso convite. E, já no Brasil, não se cansava de repetir que éramos duas coisas diferentes, autônomas, e que deveríamos procurar a LIT para estabelecer relações. Esta mesma posição foi repetida por Fabian quando já morava em nossa república, na cidade de Maringá. Depois que quase o defenestramos de volta por aquilo que considerávamos um insulto à nossa liberdade de decidir, deixou de falar no assunto.

Meia década de colaboração
Formamos nosso próprio grupo político. Éramos pouco mais que 10 pessoas. Não tínhamos a menor experiência política e organizativa. Afora a força de vontade, não tínhamos mais que um residual acúmulo teórico e alguma sensibilidade para fazer política.

Nosso batismo de fogo foram as eleições de 2002. Apoiamos a candidatura de Zé Maria no primeiro turno. Imaturos, relutamos em apoiá-lo. Além de outros camaradas, Horácio foi decisivo na argumentação em favor do apoio. Dizia ele que era a única candidatura revolucionária no Brasil digna de nosso apoio. Não havia nada que justificasse nossa abstenção e que votar nulo seria um desvio anarquista de nossa parte. Creio termos feito uma campanha principista e dinâmica em favor do PSTU. Um grande acerto. O segundo round veio com o segundo turno. Votar ou não em Lula? Depois de longos e intensos debates, decidimos votar nulo no segundo turno, contrariando os mais de 53 milhões de votos que o candidato do PT teve naquele momento, um dos maiores da história mundial, atrás apenas de Ronald Reagan em 84.

Nosso isolamento foi inevitável. E imediato! Havia uma forte aspiração entre as massas de que Lula resolveria seus dilemas mais sentidos. Estávamos em franca rota de colisão com o nível de consciência da classe trabalhadora. Mas as palavras do Horácio eram fortes. Dizia-nos, “temos que dizer a verdade aos trabalhadores, custe o que custar”. Não desaparecemos por isto da realidade, mas passamos por poucas e boas.

Uma vez separada a CS da LIT, passamos a receber uma colaboração mais intensa e regular por parte deles. Decidimos formar um pequeno agrupamento internacional, no qual chegou a participar outras organizações. Não prosperou muito. Horácio sempre enfatizava que aquilo não era uma internacional, muito menos uma corrente internacional. Sequer tínhamos a ambição de construir uma, dada nossa marginalidade e falta de experiência prática, política e teórica. Era broxante ouvi-lo, mas tinha razão. Ele definia nossa relação como uma relação de colaboração, mas cada qual guardava sua autonomia em matéria de decisões.

De qualquer modo, entre final de 2002 a final de 2007 mantivemos uma estreita relação de colaboração. Horácio vinha de quando em quando ao Brasil para ministrar cursos para o CAS, que já crescia em tamanho e inserção na pequena cidade de Maringá e em algumas outras cidades do Paraná.
Parte dos cursos nos deu no famoso Bloco 8 da UEM, uma sala de aula semi-condenada na qual fazíamos as reuniões dos ativistas da Universidade.

Parte dos cursos nos deu no famoso Bloco 8 da UEM, uma sala de aula semi-condenada na qual fazíamos as reuniões dos ativistas da Universidade.

Com ele fizemos cursos sobre Dialética, Teoria da Revolução Permanente, Programa de Transição e outros temas que me escapam à memória. O conteúdo era denso, mas imprescindível para nossa formação intelectual. Sobre quase todos estes temas, tratou de aportar escritos propagandeando as ideias do trotskismo.

Escrevia de forma elegante. Quase poética. Era um homem de inteligência mordaz. Atento a cada palavra que dizíamos, mesmo que para nós mesmos não mais que um simples comentário. Não perdia uma só oportunidade para corrigir-nos quando julgava correto. Às vezes de forma dura, mas sem nunca ter gritado, destemperado-se ou abandonado a fraternidade. Quando o ponteiro do carro acelerava demais, costumava dar um sorriso amarelo. Sua antológica forma de polemizar começava quase que invariavelmente da mesma maneira: “pero, querido!”. Para depois desenvolver seu dissenso.

Mas nem só de política vive o homem. As visitas dos argentinos eram para nós motivo de imensa alegria. Era um acontecimento. Horácio em particular se destacava pela incontida alegria, quase pueril. Várias anedotas pude presenciar com ele. Uma das que mais gosto é que certa feita fomos buscar alguma coisa na casa de um amigo, o Pierre. Era uma casa humilde, com um forro de madeira e uma viga, sobre a qual caminhava um rato que escorregou, mas não caiu ao chão graças ao seu rabo que ficou enrolado na madeira. Olhamos incrédulos um para o outro, quando ele me disse algo assim: “meu Deus, em toda minha vida nunca tinha visto um rato trapezista”. Gargalhamos por eternos segundos, até que o rato caiu e disparamos em fuga.

Era particularmente divertido ve-lo contar as histórias da época de formação do morenismo na Argentina, especialmente nos tempos da vila Avellaneda, período sobre o qual proporcionou uma extraordinária contribuição ao escrever seu livro “Testemunhos da primeira década”.

Horácio gostava de arte. Apreciava a poesia. Seu poeta favorito era seu também amigo pessoal, Luis Franco, o “poeta do porvir”, como gostava de chamá-lo. Reclamava das novas músicas argentinas, como a cumbia villera, que considerava uma depreciação da linguagem ao passo que enaltecia com olhos vibrantes as canções Carlos Gardel.

Horácio era um homem intenso. Pulsava paixões nos seus momentos de júbilo com a mesma frequencia que seus arroubos. Detestava que gritassem com ele. Chegou a sair de uma reunião depois da uma polêmica na qual um dos companheiros alterou o tom de voz. Dizia, “ni Moreno” gritava com ele.

Sua admiração por Moreno era gigantesca. Considerava-se um morenista de carne e alma. Definia Moreno como um homem cujo “cérebro era organizado para pensar o mundo dialeticamente”.
Vivi na Argentina durante pouco mais de um ano. Fiz umas aulas na UBA, mas nada se comparava ao aprendizado com Horácio. Morei na zona norte, bairro industrial de Buenos Aires. Dormia de quando em quando na casa de Pancu, mas morava oficialmente na casa dos inesquecíveis amigos Pablo e Gisele. Mas visitava Horácio com frequencia em seu apartamento localizado mais ao centro da capital. Sempre que eu podia, comprava um vinho. A Ladies, sua companheira de toda a vida, feminista de primeira grandeza, fazia frente única comigo contra ele, que queria escapar de lavar a louça.

Talvez seu ponto mais frágil tenha sido o tema do machismo, que acredito não ter contribuído à mesma altura que outras questões relevantes, como a dos negros, a quem dedicou um ótimo livro intitulado “A questão negra”, prefaciado por John Willian Cooke, escrito no contexto da luta dos negros e negras nos EUA.

Além deste livro, Horácio escreveu ainda uma tese política chamada “A hora do trotskismo”, outro sobre “Fidel e o Papa”, alguns documentos compilados no livro “Minutas Satânicas”, “O imperialismo hoje”, sobre Hugo Chaves e até mesmo uma biografia política de Raul Castells, dirigente piquetero da argentina com quem aplicou uma tática frentista durante algum tempo. Para além dos acordos ou discrepâncias com o conteúdo, todos os textos muito pedagógicos, bem escritos e com um rigor conceitual que lhe era de costume.

Em um dos livros escritos por Horácio, chamado “1989, a oportunidade perdida”, Alfredo Cáceres, o Pancu, discorreu no prefácio com as seguintes palavras, “O autor -Horacio Lagar- é um dos poucos sobreviventes do trotskismo que na década de 40 abandonou as tertúlias discutidoras dos cafés portenhos para levar a teoria revolucionária, através do GOM, ao seio da classe operária, por aquele então concentrada em grandes fábricas frigoríficas, textil e metalúrgica”. E termina dizendo que, no livro citado, Horácio “esboça um ponto de vista sobre esta práxis militante em um período muito importante dos confrontos sociais de nosso país, que merece ser conhecido e estudado pela nova geração”.

Faço destas as minhas palavras. Horácio merece ser conhecido e estudado pelas novas gerações.
Horácio morreu aos 89 anos de idade, empunhando a bandeira da IV Internacional, defendendo a emancipação da classe trabalhadora contra toda forma de dominação, exploração e opressão de um ser humano por outro. Como os grandes dirigentes, se foi enlaçado com a causa em razão da qual combateu por toda a vida.

Companheiro Horácio, presente!