Sobre privilégios e dinossauros

Por Cacau Pereira, advogado, coordenador do Instituto Classe de Consultoria e Formação Sindical e colabora com a Diretoria de Formação do SINJUS

Publicado originalmente no site http://sinjus.org.br/foro-privilegiado-e-tema-de-artigo-de-colunista-do-sinjus/ no dia 23/02/2017

Este artigo estava praticamente pronto quando, ao assistir ao jornal tomando o café da manhã, me deparei com a seguinte afirmação do ex-ministro e atual líder do governo Temer no Congresso, senador Romero Jucá: “Se acabar o foro, é para todo mundo. Suruba é suruba. Aí é todo mundo na suruba, não uma suruba selecionada”.

A declaração de tão ilustre autoridade nos obrigou a fazer uma pequena emenda ao texto. Sem apelar a falsos moralismos, a opinião é chocante, mas a comparação não é absurda. A declaração de Jucá foi feita em reação à proposta ora discutida de restringir o foro privilegiado apenas aos crimes cometidos no exercício de mandato, que o Senador considerou uma “suruba selecionada”. Caso a proposta avance, Jucá pretende encaminhar um projeto que retira imunidades e prerrogativas de juízes e procuradores do Ministério Público.

Como veremos, ninguém é santo nessa história.

Há um sério e intenso debate sobre o chamado foro privilegiado, como ficou conhecido, não sem razão, o foro por prerrogativa de função. Trata-se de um mecanismo constitucional que altera a competência penal sobre ações contra autoridades públicas, encaminhando-a aos tribunais superiores, e não ao juízo de primeira instância.

Por esse mecanismo, os Tribunais de Justiça têm a incumbência de julgar crimes cometidos por prefeitos, deputados estaduais e secretários de Estado. Já o STJ julga governadores, desembargadores dos TJs, membros dos Tribunais Regionais Federais, Eleitorais e do Trabalho. E o STF julga o presidente da república, ministros de Estado, membros dos tribunais superiores, senadores e deputados federais, entre outros. Além dos políticos e magistrados, têm também direito ao foro privilegiado os membros do Tribunal de Contas da União e embaixadores. Ao todo, são cerca de vinte e duas mil autoridades que gozam da prerrogativa, números incomparáveis com qualquer outro país.

O foro privilegiado está previsto no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição da República de 1891. Mas não é uma exclusividade brasileira. Países como Portugal, Argentina, Espanha, Colômbia, Suíça e Itália adotam mecanismos especiais para julgamento de autoridades.

A ideia original do foro especial seria conferir garantias diferenciadas às autoridades mais importantes do país, de modo a tornar estável o exercício de suas funções, garantir a separação entre os poderes da república e, dessa forma, também estabilizar o regime político contra o uso da má-fé, da judicialização dos atos e opiniões políticas, protegendo a representação popular encarnada no eleito contra a sanha de seus opositores.

Mas, ao longo do tempo, o foro privilegiado virou sinônimo de impunidade e hoje são poucas as autoridades que ainda defendem o instituto.  Entidades como a Ajufe – Associação dos Juízes Federais – e a Associação Nacional dos Procuradores da República são contrárias ao foro privilegiado.

E não é para menos. Atualmente tramitam 460 processos contra deputados e senadores no STF, sendo 357 inquéritos e 103 ações penais. E está justamente nas mãos desses deputados e senadores que são, em grande parte, réus nesses processos, alterar ou não a legislação que trata do foro privilegiado.

A Revista EXAME fez um estudo e apontou que, nos últimos 27 anos, cerca de 500 parlamentares foram alvo de investigação ou de ação penal no STF, 16 foram condenados e 8 chegaram a ser presos. A grande maioria conseguiu se livrar de uma condenação, utilizando-se de infindáveis recursos judiciais, para retardar ao máximo os julgamentos, e da consequente prescrição penal, que é a perda do direito punitivo do Estado pelo transcurso do tempo.

Trocando em miúdos

Além do uso abusivo dos recursos, são inúmeros os problemas que o instituto do foro privilegiado hoje enseja. Por exemplo, enquanto na Justiça comum o prazo para a distribuição de uma ação penal é de uma semana, no STF esse prazo chega aos 20 meses.

Já as manobras utilizadas pelas autoridades, em particular aquelas que detêm mandato eletivo, são dignas de nota. É o caso do ex-governador Azeredo (do PSDB de Minas Gerais), réu por peculato e lavagem de dinheiro no processo conhecido como “mensalão tucano”. Ele renunciou ao mandato de deputado, abrindo mão do foro especial por função, para ganhar tempo e atrasar o andamento da ação contra ele.

Já a tentativa de nomeação de Lula (PT) como ministro da Casa Civil da presidente Dilma (PT) foi impedida pelo STF, que entendeu a nomeação como uma manobra para obstruir a Justiça e blindar o ex-presidente da Operação Lava Jato. Curiosamente, o mesmo STF, por meio de liminar do ministro Celso de Mello, permitiu que Moreira Franco (PMDB), nas mesmas condições, assumisse um Ministério no governo de Michel Temer (PMDB). Como houve recurso, o plenário do STF ainda vai decidir a questão.

O impressionante caso de um político carioca

Tornou-se bastante conhecido o caso do ex-prefeito (e atual) de Cabo Frio/RJ, Marquinhos Mendes (PMDB), acusado de compra de votos na eleição de 2008.

Os fatos ocorreram na campanha do então candidato a prefeito. Ao ser instaurada a ação, já como prefeito, o foro do réu era o TRE do Rio de Janeiro. Mas, quando foi denunciado, o mandato já havia sido cumprido, e o processo foi encaminhando à primeira instância da Justiça Eleitoral. Aí o cidadão, que era suplente, assumiu uma vaga de deputado federal, e o foro passou a ser o STF. Algum tempo depois, o deputado titular voltou ao cargo e nosso denunciado, ao deixar de ser deputado, teve o processo de volta à primeira instância da Justiça Eleitoral. Mas, em seguida, foi chamado a assumir novamente o cargo de deputado, e o processo voltou às mãos do Supremo. Em 2016, Marquinhos Mendes se elege prefeito novamente e renuncia ao mandato de deputado, o que exige que o processo retorne ao TRE do Rio de Janeiro. E lá se vão mais de 8 anos sem que o processo tenha sido julgado.

Não, isso não é brincadeira, como você pode estar pensando!

Esses dados são públicos, foram extraídos em consulta à Ação Penal 937, que tramita no STF, movida pelo Ministério Público Federal. Tantas idas e vindas levaram o ministro relator do caso, Roberto Barroso, a declarar, em recentíssimo despacho no dia 10 de fevereiro: “O sistema é feito para não funcionar”.

O caso é exemplificativo de que o instituto do foro privilegiado faliu e é um meio de impunidade de poderosos. O Observatório da Justiça, iniciativa levada a cabo pelo SINJUS com diversos outros parceiros e colaboradores, atento aos grandes temas que envolvem a questão da Justiça no Brasil, vai dar atenção especial a esse tema, que será objeto de debates e de uma campanha do Observatório, para os servidores e para a população em geral.

Parafraseando mais uma vez o ministro Barroso, nos parece que agora o mais importante é matar o dinossauro. Depois a gente vê onde enterrar o corpo.