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CULTURA

Sambódromo carioca terá desfile com uma nova safra de sambas-enredo

Por Bernardo Pilotto, de Curitiba.

O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro em 2017 (que começam nesta sexta-feira, 24 de fevereiro, com o primeiro dia de desfile do Grupo de Acesso) será marcado pela presença de uma nova safra de sambas-enredo.

Ao invés de sambas acelerados e com óbvio cunho comercial (que foram a tônica durante alguns períodos entre 1990 e 2010), estamos diante de um crescimento de enredos e respectivos sambas sobre as religiões afro-brasileiras, sobre artistas, poetas e músicos que não estão no centro do showbizz (como Carolina de Jesus, João Nogueira, Beth Carvalho, Gonzaguinha e Zezé Motta), sobre personagens históricas ausentes da história oficial (como João Cândido) e até a presença de algumas críticas sociais (como no caso do samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense, que gerou inclusive uma gritaria dos setores ligados ao agronegócio).

Definitivamente, a atual crise econômica tem feito bem ao carnaval carioca, pelo menos neste aspecto. Isso porque os patrocínios secaram e fizeram com que as escolas fossem buscar enredos em outras fontes.

Além do conteúdo, há também mudanças do ponto de vista estético. Em 2016 e 2017, por exemplo, a Acadêmicos do Sossego, escola de Niteroi que nunca chegou ao Grupo Especial (a primeira divisão do samba), apresentou sambas diferenciados: no ano passado, o samba-enredo não tinha rimas, em conformidade com as poesias do homenageado (o poeta Manoel de Barros) e, agora, em 2017, o samba tem um diálogo de teatro, para lembrar as atuações da homenageada (a atriz e cantora Zezé Motta). E isso tem dado resultado: a escola foi campeã do Grupo B em 2016 (e por isso subiu ao Grupo de Acesso) e é cotada para permanecer no Grupo de Acesso para 2018, algo inédito para a agremiação.

Além dos sambas da Acadêmicos do Sossego, merecem destaque os sambas da Renascer de Jacarepaguá (sobre o encontro de Carolina de Jesus e João Cândido), Acadêmicos do Cubango, Beija-Flor, Mocidade Independente e Vila Isabel de 2017 e os daViradouro, do Salgueiro e da Mangueira de 2016.

E essa nova safra veio mesmo com a manutenção (e ampliação) de um sistema de escolha de sambas-enredo que vem exterminando as tradicionais Alas de Compositores das escolas (uma reportagem da Folha de S. Paulo do último domingo é bastante explicativa sobre o tema). Os sambas-enredo continuam sendo disputados por coletivos de autores, que muitas vezes se reúnem em escritórios altamente profissionalizados e chegam a gastar mais de R$100 mil para tentar emplacar um samba-enredo. Isso é fruto, entre outros fatores, de uma lógica iniciada já nos anos 1970, quando os sambas-enredo passaram a serem compostos porespecialistas e não mais por aqueles que já compunham outros sambas no restante do ano.

Um pouco de história

Quem ouve a grande quantidade de sambas do carnaval de 2017 pode não imaginar o percurso que os enredos passaram até chegar aqui. Apesar de hoje parecer natural, é importante saber que nem sempre as escolas cantaram os orixás, a África e os artistas populares.

Nos anos 1930, quando os desfiles de escolas de samba tiveram seu início no Rio de Janeiro e passaram a ter músicas compostas especificamente para tais cortejos, as agremiações toparam um acordo: de um lado, o Estado parava de reprimir os desfiles com uso da polícia, por outro, as escolas precisariam abordar temas históricos nacionais nos desfiles.

Temos, então, até os anos 1960, enredos que enaltecem figuras oficiais da história brasileira. Duque de Caxias, Ana Néri, Rui Barbosa, César Lattes, Getúlio Vargas e outros vultos foram homenageados pelas escolas no período. Os sambas-enredo da época ficaram conhecidos como lençol, visto que cobriam, quase sempre de modo linear, a biografia do homenageado do começo ao fim, sem críticas ou ironias.

Em 1960, a chegada de Fernando Pamplona a Acadêmicos do Salgueiro muda o panorama do carnaval. Isso porque Pamplona, que até então trabalhava no Teatro Municipal e havia sido jurado do carnaval em 1959, propôs que o Salgueiro homenageasse Zumbi dos Palmares, um personagem que não constava na história oficial. Foi a primeira vez que um negro foi enredo de uma escola de samba carioca.

A abertura trazida por Pamplona influenciou toda uma geração de carnavalescos (estão, entre os pupilos de Pamplona, nomes como Joãosinho Trinta, Arlindo Rodrigues, Rosa Magalhães e Maria Augusta) e também as demais escolas de samba. A partir de então, as escolas passaram a driblar o acordo celebrado lá nos anos 1930 e outros temas chegaram à avenida. Em 1961, a Tupy de Brás de Pina veio com Seca do Nordeste, primeiro enredo a denunciar um problema social brasileiro; em 1964 e 68, o Salgueiro investiu novamente na temática negra, desfilando com Chico-Rei e Dona Beja, a Feiticeira de Araxá; em 1969, o Império Serrano veio comHeróis da Liberdade, meses depois da edição do AI-5.

Nos anos 1970, novamente vemos surpresas. Isso porque a União da Ilha do Governador inovou ao trazer o cotidiano para a avenida, com Domingo (1977) e O Amanhã (1978). Inovações também vieram do Salgueiro (sempre ele) e da Beija-Flor de Nilópolis, que trouxeram o sonho e o delírio para o carnaval.

A abertura política e a crise econômica, características dos anos 1980, também se refletiram nos carnavais da época. Escolas como São Clemente e Caprichosos de Pilares investiram em enredos de forte crítica social, perspectiva que foi assumida, de alguma forma, por quase todas as agremiações.

Foram nessas duas décadas (1970 e 80) que também vimos os sambas-enredos virarem sucessos nacionais, serem gravados por artistas da MPB e se tornarem sinônimo de lucratividade para quem tivesse um samba escolhido por uma escola. Isso influenciou decisivamente a forma de composição dos sambas. Antes, eram compostos quase sempre por sambistas locais, que também compunham outros sambas ao longo do ano; atualmente, como colocamos acima, temos compositores especializados em samba-enredo, que se articulam através de escritórios e disputam sambas em várias escolas.

Ainda nos anos 1980, vimos o primeiro enredo patrocinado (do Império Serrano em 1985), que acabou se tornando uma prática dali pra frente, especialmente nos anos de crescimento econômico. Iogurte, cavalo mangalarga, parque de diversões, diversas cidades e estados, artistas de TV e outros temas acabaram virando enredos duvidosos, que muitas vezes deram sono em desfilantes e no público.

Felizmente essa lógica tem sido revertida, ainda que a muito custo.