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Colunas

A Desobediência Civil é o Novo Desacato

Direito e (In) Justiça

Juliana Benício Xavier e Larissa Pirchiner de Oliveira Vieira são advogadas populares e compõem o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei”. Não há melhor ditado popular capaz de refletir a razão das expectativas que a sociedade brasileira tem depositado no Poder Judiciário. Em terra em que as esperanças com o parlamento e com o Executivo vêm sendo historicamente esmagadas, o Judiciário assume o lugar de mestre e feitor da decência.

Não podemos nos esquecer, PRIMEIRAMENTE, que esse Judiciário interpreta, ou pelo menos deveria, as leis criadas pelos dois outros poderes da República. Além disso, a função de defensor incansável da moralidade segue as premissas éticas relacionadas ao individualismo e à segmentação social, premissas do liberalismo político, teoria que está na gênese de sua existência como um poder independente dos demais.

Será acertada a decisão de deixar nas mãos de um conjunto de indivíduos que ocupam lugar privilegiado na sociedade os rumos das nossas vidas? Os posicionamentos assumidos pelo Judiciário são realmente técnicos e imparciais, justificando que abramos mão de um ativismo social em favor do ativismo judicial? Essas são algumas das indagações que Juliana Benício e Larissa Vieira, advogadas populares voltadas à defesa dos direitos de trabalhadoras e trabalhadores, de comunidades atingidas por megaempreendimentos, de população em situação de rua, de mulheres, de negras e negros, pretendem responder semanalmente na coluna ‘Direito e (in) Justiça’.

Por Larissa Vieira e Juliana Benício

Não foi por acaso que Guilherme Boulos, ao acompanhar uma reintegração de uma ocupação na zona leste da cidade de São Paulo, foi detido sob a acusação de desobediência civil. Esse é o tipo penal da moda, é nele que a polícia enquadra aquelas e aqueles que quer criminalizar e não tem razões materiais para tanto. É que, se de um lado, acusar alguém de desacato ficou “manjado” demais, devido à ampla e vulgar utilização do tipo, de outro, a desobediência possui padrões alargados de enquadramento, podendo abarcar uma série incontável de condutas.

Nos termos do artigo 330 do Código Penal, o ilícito em questão consiste em “desobedecer a ordem legal de funcionário público”, conduta à qual é atribuída pena de detenção de 15 dias a 6 meses. O bem jurídico a ser tutelado por esse tipo penal é o prestígio e a dignidade da Administração Pública, representada pelo funcionário que age em seu nome.

E vocês, caros leitores, não nos digam que essa administração não merece ser respeitada sustentados no jargão de que “quem quer respeito tem que dar respeito”. Não defendemos que o ditado popular se aplique ao caso, e não é por uma questão moral, afinal, ninguém aqui defende que se te baterem em um lado da face você deve oferecer o outro.

Para a configuração do crime de desobediência, necessário que (1) haja desatendimento de uma ordem, (2) que essa ordem seja legal, (3) que emane de funcionário público e que o (4) agente tenha a intenção, isto é, o dolo, de desobedecer à suposta ordem legal. Ausentes quaisquer desses requisitos, depara-se com a atipicidade da conduta, não havendo que se falar em crime de desobediência.

Qual foi a ordem supostamente desatendida por Boulos? Retirar-se da via pública em que estava tentando garantir que a polícia de São Paulo (aquela cuja letalidade é escandalosa) realizasse a desocupação com o mínimo possível de violência? Essa ordem é legal? Se existiu uma ordem legal, essa seria para Boulos deixar de acompanhar os atos realizados por servidores públicos?

Se a resposta é positiva para qualquer dos questionamentos, é importante destacar que não se tratam de comandos previstos em lei. São, sim, ordens dadas para satisfazer vontade dos militares que naquele momento se achavam superiores, o que também pode ser chamado de prepotência.

Na realidade, Boulos só personificou o que vem acontecendo com centenas de brasileiras e brasileiros que ousam (ainda que minimamente) ter uma atuação contra hegemônica:  quando se busca diálogo com militares na tentativa de minimizar a violência em situações em que historicamente agem com truculência, se é criminalizado (a), esquecendo-se de que  no estado democrático em que supostamente vivemos, ninguém é obrigado a se deparar sem revolta com situações visivelmente injustas e ilegais.

Foto: Site O cafezinho