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EDITORIAL

Inferno em Aleppo: uma vitória sangrenta do regime de Assad

“As forças do regime queimaram famílias sem suas casas. Executaram de forma sumária trinta crianças perto de um cemitério. No hospital Al-Hayat eles mataram o pessoal médico e os doentes que estavam no hospital. Essas pessoas são terroristas” – Raphaël Pitti, ex-médico militar francês que trabalha na formação de pessoal médico em Allepo, publicado no site Alecontre

Depois de cinco anos, o levante popular na Síria está chegando à sua hora mais dramática. As tropas do regime de Assad, apoiadas de forma decisiva pelas milícias xiitas iraquianas, pelo Hezbolah libanês e por unidades de elite iranianas, coordenadas e com o apoio logístico e aéreo decisivos russos, tomaram quase toda a parte leste de Aleppo. Não sem antes efetuarem o mais violento bombardeio aéreo e terrestre desde que a atual ofensiva começou. Desde então, as dezenas de milhares de civis e os combatentes foram submetidos ao cerco implacável, à fome e ao terror dos bombardeios constantes e à ameaça de represálias terríveis, como é de praxe pelas tropas aliadas ao regime. Nesses últimos dias, o frio veio se somar aos seus tormentos.

Os relatos na imprensa são horripilantes. Não por acaso, boinas vermelhas (tropas de elite) chechenas embarcaram para a Síria. Como em Grozny em 2007, o plano é arrasar a cidade, submeter a população pelo terror dos assassinatos, bombas incendiárias e gás de cloro, execuções sumárias e indiscriminadas, conscrição obrigatória dos homens jovens refugiados e um sem fim de horrores denunciados pela imprensa e pelas redes sociais.

As últimas notícias, ainda não confirmadas, dão conta de que teria havido um acordo para a retirada dos milhares de civis no que restava do território ocupado e depois dos militantes com suas armas leves para o interior da província de Aleppo.

Essa parte da cidade estava dominada pelos rebeldes desde julho de 2012. A brutal repressão de Assad transformou o levante de 2011 em uma sangrenta guerra civil. Os resultados dessa carnificina praticada quase às margens do Mediterrâneo e bem próximo da Europa foram cerca de 500 mil mortos e 11 milhões de refugiados, entre os deslocados internos e os que fugiram do país. Três milhões vivem em campos precários na Turquia. O país tinha 23 milhões de habitantes antes da guerra civil, o que significa que metade dela foi afetada duramente pela ação do regime.

A cidade de Aleppo era a mais populosa da Síria, sendo a primeira também em termos de concentração industrial e centro financeiro. Os comitês locais revolucionários que protagonizaram a primeira fase do levante cederam lugar (não é possível precisar até que ponto, mas certamente em grande parte) às milícias armadas abastecidas pelas potencias regionais, nomeadamente, a Turquia, o Qatar e a Arábia Saudita. A falta de vida política durante as décadas da ditadura, o pouco peso das organizações de trabalhadores e de esquerda ajudaram a que isso ocorresse.

Uma teimosa esquerda que via em Assad uma figura anti-imperialista ajudou a aumentar a confusão na solidariedade internacional. É importante esclarecer que o regime de Assad não tinha nenhum compromisso com a luta anti-imperialista, já há décadas antes da revolta. Não por acaso, a fronteira com Israel era a mais segura desde a guerra de 1973 e a dinastia Assad tinha desempenhado o papel de repressor sangrento contra a esquerda libanesa e palestina durante a guerra civil do Líbano. Desde os anos 1990, o regime tinha girado para acordos econômicos com o imperialismo e era elogiado por dirigentes europeus, por exemplo, por Sarkozy. E mesmo que fosse anti-imperialista, nada lhe autoriza a massacrar seu povo!

Como resultado da decomposição social pela imposição do terror sectário por parte do regime sobre as comunidades identificadas com a versão sunita do islamismo, surgiu o caldo de cultivo para o surgimento da milícia ultra-fundamentalista que é o autodenominado Estado Islâmico e o crescimento da Al-Qaeda síria, integrada na resistência ao regime. O governo fez um hábil jogo duplo, acusando a rebelião de ser fundamentalista, ao mesmo tempo em que libertava em 2013 centenas de quadros jihadistas presos, sabendo que iriam se incorporar às versões mais extremas do sectarismo sunita.

As potências ocidentais fingiram que nada tinham a ver com o problema. Os EUA vetaram a entrega de mísseis portáteis terra-ar, armas estritamente defensivas, contra o único poder aéreo, o de Assad e depois dos russos. As potências regionais cuidaram-se que o levante não contaminasse os seus países e agora se inclinam claramente para um acordo com Assad. O ditador egípcio já tem se manifestado claramente nesse sentido e a Turquia oscila nesse sentido.

Nessa hora dramática, apelos desesperados por um corredor para os civis serem evacuados e pelo auxílio humanitário por via aérea foram ignorados. Nada diferente do que tinha sido feito em Sarajevo e Ruanda nos anos 90.

Mas mesmo agora é possível fazer algo: devemos exigir a ruptura de relações com o ditador Assad e também a abertura das fronteiras para receber os refugiados e que toda a assistência seja dada aos novos refugiados. Fazer o contrário do que a Turquia vem praticando com o muro que estabeleceu em sua fronteira, de onde disparam seus soldados contra os que tentam escapar do inferno sírio.

O Brasil recebeu várias ondas de imigrantes no passado, possui centenas de milhares de imigrantes e descendentes de origem sírio-libanesa e precisa ser sensível ao problema, mais além das cotas homeopáticas que recebeu. Abram as fronteiras! Ruptura com Assad!