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BRASIL

O omelete e os ovos

Por Carlos Zacarias, Colunista do Esquerda Online

É como diz o ditado, não se pode fazer omelete sem quebrar os ovos. A esquerda passou anos denunciando a corrupção, o PT foi signatário de pedidos de impeachment de todos os presidentes; antes de chegar ao governo central denunciou a “privataria tucana”, o escândalo da compra de votos da reeleição no primeiro mandato de FHC e quando Lula assumiu o governo o que foi que fez em relação às denúncias que tinha feito e a bandeira “da ética” que levantava? Nada! Aliás, fez exatamente a mesma coisa que FHC, a começar pela Reforma da Previdência de 2003 que abriu um primeiro e decisivo flanco de ruptura com os trabalhadores do serviço público que não mais voltariam a se reconciliar com o petismo.

Desde o restabelecimento da democracia, quando o voto voltou a ser a ferramenta principal de escola dos dirigentes, a cada dois anos os brasileiros se reencontram com os seus representantes. Passam os outros dois anos xingando os políticos e quase sempre esquecidos em quem votaram para deputado, vereador ou até mesmo para prefeito e governador. Essa situação não se dá por acaso. O sistema político brasileiro montado na transição favoreceu o surgimento de legendas de aluguel que muito dificilmente permite que o eleitor crie algum laço com partidos localizados nas sombras dos setores marginais das classes dominantes. Da mesma forma é quase impossível se criar algum tipo de vínculo com os candidatos que surgem do nada, para em seguida ao pleito voltarem a desaparecer, sendo eleitos ou não. Para completar o drama, o financiamento privado de campanha, que vigorou a pleno vapor até as eleições de 2014, determinou uma forma de fazer política com poucos correlatos no mundo, com campanhas milionárias e convite escancarado à prática do caixa 2. Da parte do eleitor, a desconfiança na política só fez aumentar, muito embora o padrão criado na transição se mantivesse e se aprofundasse, com políticos odiados em temporadas sem eleição e em seguida idolatrados, em função do marketing, durante o período de campanha eleitoral.

Na média o eleitorado, ou aquilo que se chama de “cidadão comum”, procura se desvencilhar da política quando não há eleições, confiando aos seus representantes a tarefa de representa-los, de preferência bem. Tem sido assim desde sempre, e não só no Brasil, porque é somente em situações extraordinárias que as massas rompem sua letargia e entram em cena de maneira avassaladora. Mas enquanto as situações extraordinárias não tem lugar no cotidiano, foi sempre tarefa da esquerda chamar atenção para o fato de que a política move as nossas vidas. Não por acaso a conhecida poesia de Bertold Brecht, “O analfabeto político”, tornou-se um dos textos mais citados pelos militantes e ativistas dos movimentos sociais nas últimas décadas. Da mesma forma, mais recentemente, o texto de Gramsci escrito em 1917 “Os indiferentes”, em que o sardo começa dizendo odiar os indiferentes, para concluir que estes lhe “provocam tédio” com “suas lamúrias de eternos inocentes”, vem sendo citado como alternativa ao conhecido e até certo ponto batido texto de Brecht.

Pois bem, chegou a hora da verdade! Se queríamos politização, agora a temos como em poucas vezes na história do nosso país. É verdade que se trata de uma politização forçada, com uma parte dos brasileiros sendo levada de roldão por discursos oportunistas e sem nenhuma contrapartida com a realidade. Mas ainda assim é politização, e se parte significativa dos setores médios está sendo perdida para a nova direita, isso se deve tanto à vulnerabilidade desse setor pouco politizado, quanto ao fato de que a esquerda perdeu a capacidade de atrai-los para o seu campo.

Devemos ter em mente que os riscos de retrocesso estavam dados desde o início e bastava um passeio pela história para entender a questão. A propósito do assunto, observando a forma como a contrarrevolução irrompeu na cena italiana em inícios dos anos 1920, o historiador Geoff Eley anotou que isso se devia aos “erros maximalistas”, que havia alimentado “expectativas sem lhes dar solução”. Eley cita que mesmo incentivando “uma disposição de excitação revolucionária”, os dirigentes “se recusaram a lhe dar a forma de um desafio revolucionário” e “quando as massas cobraram uma atitude e agiram, aconselharam disciplina e paciência”. O historiador britânico conclui ser “compreensível que isso gerasse ressentimento”, então traduzindo para o presente, não se deve apenas acusar os “coxinhas” pela sua ignorância, porque é preciso entender, antes de tudo, o que foi que fez com que perdêssemos este setor para as novas direitas, se tínhamos tudo para fazer o omelete?

Nessa altura, as condições não são mais tão favoráveis, mas ainda não fomos derrotados. É preciso preservar, ao menos, o otimismo da vontade, contra todo pessimismo da inteligência. E para que sejamos capazes de manter a sobriedade ante tanta dificuldade, devemos fazer coro com Gramsci que acusava o indiferente, e dizia: “Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir”. Se pretendemos arrancar alegria ao futuro e ao mesmo tempo construir a cidade futura, não devemos esmorecer, porque o desafio permanece e não há outra alternativa que não seja lutar.