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BRASIL

Nós e a corrupção

Por Carolina Freitas, de São Paulo, SP

A crise política brasileira que vem se desenhando na disputa entre as frações institucionais, empresariais e partidárias alarga, dia após dia, fato midiático após fato midiático, seus horizontes, diluindo as previsões de prontidão dos “especialistas”. Parece não haver um plano facilmente desvendável que nos faça enxergar o que ocorrerá nos próximos meses, qual política está reservada para – esta sim com projeto bastante nítido – a economia.

Em menos de um ano, a presidente da República, o presidente da Câmara dos Deputados e o presidente do Senado foram alvo de medidas de afastamento dos seus respectivos cargos. Michel Temer e seu bando parecem estar mais e mais próximos da mira da Operação Lava Jato, re-potencializada pelo acordo de delações dos executivos da Odebrecht. De novo, não sabemos quem ocupará o lugar da estabilidade política de que precisa a burguesia e o imperialismo, alimentado pela capitalização financeira do tesouro nacional.

Na relação de contornos entre a política e a economia imperialista, o limite fronteiriço dos escândalos parece permanentemente se afirmar: a “tesoura” dos investimentos públicos, ou a austeridade dirigida aos setores mais explorados e proletarizados da sociedade, é a “borda” divisória entre o controle político da situação e a sua possível perda.

Redescobrimos que o consenso de classe dos capitalistas e seus representantes, em incrementar mais o nível de espoliação sobre os trabalhadores, se faz num jogo de alianças arenosas; não é um coquetel agradável o tempo todo, embora assim pareça nas fotografias viralizadas pelas redes sociais do dia em que a marcha contra a PEC em Brasília foi duramente reprimida, quando parlamentares e convidados celebravam a votação com drinques e canapés no salão do Congresso.

As lições da esquerda sobre a situação política, para que se consolidem e se convertam num combate assertivo aos ataques econômicos contra a classe trabalhadora, precisam ser historicamente precisas. Alguns campos da esquerda insistem em tratar a corrupção com a mesma tintura da burguesia e sua imprensa.

Urgem em reclamar seu lugar no jogo espetacularizado da ética enquanto Globo, PMDB, Sérgio Moro e Kim Kataguiri não os convidaram para participar. Nossas regras são outras. A corrupção precisa ser tratada por nós como uma “verdade” de classe, produzida à imagem e semelhança da burguesia para assegurar imobilismo, apassivamento, descrença e não pertencimento nos rumos do país pela massa. Um fenômeno que expressa a fase atual do capitalismo mundial, bem como expressou em momentos anteriores, politicamente fundantes de golpes políticos e giros econômicos.

Portanto há que, em primeiro lugar, separar a (anti)corrupção como discurso ideológico da corrupção como risco material à burguesia internacional, como custo não desejável para a política econômica garantidora de juros.

Como discurso de massa, a corrupção transfigura os verdadeiros problemas econômicos brasileiros e as contradições de classe que se agudizam neste período de encerramento do ciclo conciliatório conduzido pelo PT. A aparência alienante da política, na crise, precisa se transformar em outra coisa. A moralidade sensacionalista do combate à corrupção retira os trabalhadores e os setores oprimidos do seu jogo, enquanto despeja sobre a classe uma sensação de injustiça convertida em moralidade liberal.

Para o povo pobre, a corrupção se torna o único canal possível de escape da insatisfação com as condições de vida. “Nós estamos lascados nas filas do SUS enquanto os políticos prosseguem a roubalheira de sempre”. O roubo sistêmico garantido por privilégios sistêmicos de classe e “de casta” é um gerador de ódio e indignação autênticos. O povo brasileiro é o maior pagador de impostos no mundo. Mais de R$800 bilhões são destinados aos cofres públicos anualmente; em contrapartida, é o país que mais sofre com a falta de retorno da arrecadação para políticas públicas e garantia de direitos sociais. Portanto, a legítima indignação é deslocada, à conveniência dos donos do poder, da consciência sobre a exploração e a espoliação para a falsa consciência sobre a corrupção.

Diferentemente, para as camadas médias, a corrupção se aproxima mais da imoralidade como um problema em si, uma insatisfação abstrata de quem não foi incluído no banquete de partilha do dinheiro público. É curioso observar que a relação dessas camadas com o PT explica muito sobre como a corrupção, enquanto expressão, marca a história.

O Partido dos Trabalhadores nos anos 90, principalmente pela oposição a Collor e as privatizações “entre amigos” na gestão FHC, se esforçou para se consolidar como força moralizante da política, como partido da ética: nada mais do que um esforço programático mais nítido que acompanhou a adaptação ao jogo institucional burguês. O discurso estratégico tirou o classismo da cadeira para dar lugar de sentar à ética. A qualidade de sua sustentação para as famílias médias se provou exatamente essa; o ex-petismo “traído” pela corrupção hoje sai à Avenida Paulista vestido de verde e amarelo para ouvir Alexandre Frota num carro de som.

Por outro lado, o combate à corrupção como garantia especulativa do capital se fortalece. Leis anticorrupção e antiterrorismo são atualmente “combos” determinados aos países periféricos por orientações gerais do FMI, Banco Mundial e outras instituições internacionais, para que as burguesias nacionais apliquem de modo mais regrado e sem percalços seus planos espoliativos. O contorno da corrupção parece ser uma questão de eficiência econômica que evita gastos empresariais indenizatórios. É por essa razão o aumento no número de especialistas corporativos aptos a calcular e sanar os “custos-corrupção”, a vender consultorias jurídicas a empresas participantes de negócios com o Estado, para que a extrapolação das regras nacionais sejam evitadas ou burladas com maior sofisticação.

O papel da esquerda brasileira deve ser propor alternativa a esse jogo. Disputar os atos de direção direitista anticorrupção é assumir que nós achamos que a corrupção tem conserto no capitalismo. De que a relação entre o público e o privado pode ser moralizada e regrada, quando, em verdade, ela não existe, porque é a relação de uma classe com suas representações, por maiores que sejam as contradições que estas representações assumam conjunturalmente.

Nossa tarefa, portanto, é denunciar o caráter viciado do sistema de geração de lucros exatamente naquilo que ele tem a ver no conflito entre as classes. Golpe parlamentar em nome do combate à corrupção quando o substituto presidencial é citado centenas de vezes em delações premiadas; seletividade dos escolhidos para serem algozes no espetáculo, com omissão premeditada de grande parte dos envolvidos; venda do patrimônio público, como a Petrobrás, em nome da noção de que tudo o que é público é ruim e tudo o que é privado é eficiente pois menos corrompível; leis criminalizantes para negros e pobres em nome da limpeza ética; concentração antidemocrática dos “especialistas” do Judiciário sobre as decisões do futuro político, e por aí vai uma longa lista.

O combate à PEC 55, à Reforma da Previdência e o enfrentamento a um projeto econômico que promete mais contrarreformas, como das leis trabalhistas, precisa confluir com a denúncia sobre a saída que a burguesia tenta dar à crise política. A injustiça sobre os cortes de orçamento, que na verdade são cortes de direitos sociais cada vez mais empoeirados no papel, deve politicamente se converter na injustiça de não poder escolher sobre os rumos políticos do país. A insatisfação latente sobre a realidade é nosso indício: 63% da população quer a saída do governo Temer porque sabe que a manobra que o impôs no poder não muda as condições de vida. O espetáculo da “limpeza ética” não resolve o fato de que milhões e milhões de brasileiros não conseguirão se aposentar nunca. A disputa realmente concreta começa a aparecer.

Em vez de alimentar, precisamos virar o tabuleiro do jogo.

Foto: Campanha Outdoor Ministério Público Federal