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CULTURA

O que Mandume tem a dizer?

Por: Morghana Benevenuto, de Porto Alegre, RS.

Mandume ya Ndemufayo foi o último rei da tribo Kuanyama. Ndemufayo viveu de 1884 até 1917 e quando assumiu o trono de Kuanyama, que localizava-se em Angola, expulsou os comerciantes portugueses, lutou contra as diversas formas de impor a catequização ao seu povo promovida pelas missões católicas e internamente condenou os estupros praticados contra as mulheres da sua tribo e permitiu que essas tivessem seu próprio rebanho, além de outras medidas e diversas batalhas que enfrentou contra aqueles que exploravam aquelas terras e aquele povo. Mandume é mais uma figura resgatada pelo movimente negro e por aqueles que se dedicam ao estudo do povo africano e afro-brasileiro, representando um símbolo de resistência e luta e agora nome da música do rapper Emicida, que conta com a participação de Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin.

A faixa está presente no álbum “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” e ganhou um videoclipe que foi lançado nesta segunda-feira (5). As rimas, os versos, o refrão e o audiovisual carregam muito simbolismo, denúncia contra o racismo, resistência e empoderamento. Não é um rap tão simples de ser analisado. O beat é pesado, com várias rimasdestaques e versos curtos, mas intensos. Por isso não é apenas analisar a qualidade do som e os views no youtube, e sim o que ele tem a dizer.

As mina, as mana e as mona no Rap Nacional:
O hip-hop brasileiro cada vez mais vem sendo protagonizado pelas minas, e principalmente as negras. Por mulheres que já estão nessa estrada musical há anos, mas que só agora estão ganhando espaço nas batalhas, nos estúdios e nos palcos. Se pensar em referências de rap nacional femininas mais antigas, podemos citar Negra Li e Lívia Cruz, que recentemente lançou seu hit “Ordem na Classe”, onde denuncia justamente o que a maioria das mulheres sofrem quando estão em espaços majoritariamente masculinos: Machismo. Agora, se pensar em referências mais atuais, podemos citar várias, várias mesmo: Karol Conka, Aretha Ramos, Tássia Reis, Flora Matos e Drik Barbosa, que abre a música do rapper Emicida com suas rimas e um verso pesado.

Sistema é fai/gasta/ arrasta Cláudia que não raia

Basta de Globeleza/ firmeza?/ Mó faia! – Drik Barbosa

Globeleza e Claúdia, uma estereotipada e sexualizada e a outra morta e arrastada em um carro de polícia. Só que a Claudia não era Raia, era negra e a Globeleza não representa. Essas são as verdades que estavam apenas em duas rimas da Drik. Claudia foi mais uma vítima de PM’s. Moradora do subúrbio do Rio de Janeiro, depois de ser baleada foi arrastada pelo asfalto dentro de um porta mala de um carro da polícia, o que causou a sua morte. Para Claudia o sistema é falho, o sistema é racista e mata várias mulheres negras todos os dias, e não somente pelas mãos da polícia. A sexualização da mulher negra e o machismo matam também. Segundo uma o pesquisa divulgada pelo site da BBC em 2015, 89% dos casos de estupros no Brasil são contra mulheres. No Rio de Janeiro, por exemplo as mulheres negras são a maioria entre as vítimas de homicídio doloso – aquele com intenção de matar (55,2%), tentativa de homicídio (51%), lesão corporal (52,1%), além de estupro e atentado violento ao pudor (54%). Drik, somente em duas rimas deixa explícito o que os dados comprovam.

Mas ao mesmo tempo é interessante pensar que nessa música, quem começa cantando logo após o refrão não é o Emicida, “dono” da música, é uma mulher negra, ou seja, as mais oprimidas à frente. A representatividade dos negros está presente na música, não só através da letra ou do videoclipe, mas das vozes que compõe esse rap.

O audiovisual carrega cenas interessantes que com certeza muitas mulheres irão se identificar, pois são cenas que estão presente no dia-a- dia de muitas que enfrentam o machismo e racismo. Uma das primeiras imagens com o embalo da voz de Drik, são de duas mulheres sendo assediadas por dois homens e logo em seguida dando o troco. Ao mesmo tempo em que rolam cenas paralelas de minas negras com seus Black’s e batons coloridos.

Feminismo das preta bate forte, mó treta – Drik Barbosa

Produção cultural e Apropriação cultural
É som de preto de favelado, mas quando toca ninguém fica parado! – Amilcka e Chocolate.

Esse é o refrão da música Som de Preto, som lançado em 2004. Com certeza todos que ouviram essa música na época se identificaram, até porque o objetivo era que mesmo não negro ou favelado, que todos dançassem a música de origem afro-americana. Só que hoje, cada vez mais o som de preto e de favelado toca em show elitizado, em espaços onde os negros, periféricos e pobres são excluídos socialmente. Lugares onde os brancos apropriam-se da cultura e história do povo afro-brasileiro.

As primeiras quatro rimas do verso de Amiri falam exatamente sobre isso: apropriação cultural. E mais, sobre a objetificação dos negros. Martiniano J. Silva aborda minimamente sobre esse tema em seu livro “Racismo à Brasileira”. Martiniano diz “Em síntese, é tratado (o povo negro) como tema objeto de estudo, onde não é gente, sentimento, língua, expressão de vida, cultura”. E isso é tão verdade, que um dos temas mais estudados nas universidades brasileiras, são temas ligados a questão racial, mas que não chegam ao povo em estudo.

A lei 10.639/03 – que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana – é uma medida que visa também diminuir essa visão colonial do negro como sinônimo de objeto, mas que hoje está ameaçada com o projeto de Reforma do Ensino Médio que tira a obrigatoriedade das matérias que justamente trabalham esse tema.

Os versos de Amiri demonstram a revolta de uma população que nunca de fato foi vista como ser humano, e que hoje, com essas novas gerações veem a necessidade de tornar-se negro e reivindicar a reparação que nunca foi dada. A geração AFROntamento é a geração que busca resgatar seus heróis mas que constantemente cumpre o trabalho de produzir uma nova cultura afro-brasileira, os novos MC’s que debatem sobre racismo em seus versos, as novas mídias alternativas negras entre outras, é exemplo de uma renovação e resgate cultural do povo preto, das quais os brancos não vão se apropriar.

As diferentes formas de genocídio
Os versos de Mandume são cantados quase que como estivessem seguindo uma lógica. Há uma mulher negra cantando os primeiros versos, com rimas direcionadas aos machistas que provocam os tantos feminicídios. Amiri retrata sobre as diversas tentativas de apagar a história africana dos livros e inclusive da memória dos negros e negras, ou seja, epistemicídio. Rico Dalasam, MC, negro e homossexual, escancara em frases o genocídio da juventude negra. Já Muzzike vem dizendo que a juventude negra não vai aceitar a violência promovida pelo estado, e Alaafin trás em seu verso orixás de religião de matriz africana e que infelizmente ainda sofrem com a discriminação e intolerância religiosa.

Os cinco MC’s trazem nos versos diferentes formas da expressão do racismo em nossa sociedade, acompanhados de cenas de muita representatividade. Mas que também trazem diferentes formas de matar a população negra.

A intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana é na verdade a intolerância contra a cultura africana, e de várias formas tentam por um fim, acabar, matar a cultura dos pretos. Através do epistemicídio histórico ou atos de violência. Um dos casos mais marcantes de intolerância religiosa contra as religiões afro-brasileiras é da menina Kayllane de 11 anos que levou uma pedrada na cabeça depois de voltar de um culto de candomblé. Dados compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR) mostram que mais de 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas.

Mas outro dado que também precisa ser levado em consideração. Segundo o Mapa da Violência de 2015, os negros têm 142% mais chances de ser assassinado por arma de fogo do que um branco. Os dados complementam que, em 2012, foram assassinados mais de 27 mil pessoas negras, sendo destes 17.160 jovens negros. São quase 30 mil negros mortos por ano no Brasil, deixando claro que o estado não combate as causas que aumentam a violência, como o desemprego e a crise econômica, pelo contrário, estimulam o terror, a violência nas periferias através da Polícia “Pacificadora”, grupo de extermínio e milícias. É preciso desmilitarizar a polícia e legalizar as drogas, oferendo tratamento público e de qualidade para dependentes, como uma forma de diminuir a violência contra o povo negro. Isso também é reparação.

O hip-hop é um diss aos racistas
Diss no hip-hop significa o direito de resposta ou um ataque verbal ou insulto a outra canção. Os negros e negras são silenciados constantemente pelo sistema, mas isso não significa que não tenham voz. O rap é mais uma das formas de mostrar que o Estado não vai calar os mais oprimidos. O hip-hop é uma arte, e artistas como Emicida, Criolo, Conka dividem da mesma opinião que Nina Simone: de que o artista deve refletir o seu tempo em sua arte.

Sobrevivendo no Inferno dos Racionais Mc’s e Straight outta Compton do antigo Grupo N.W.A, são um dos maiores álbuns de rap produzidos na década de 1990, e por mais que um retrate a realidade das periferias paulistas e outro das periferias californianas ambos guardam semelhanças: década de 1990, ofensiva neoliberal e uma política cada vez mais intensa de matar negros e negras. Esses artistas refletiram sua época dentro de suas condições e a situação do seu povo, combatendo o racismo e a política do sistema capitalista de extermínio.

Emicida e outros artistas continuam esse legado, reconhecendo em suas músicas o potencial revolucionário do povo negro e buscando minimamente voltar a organizar os pretos coletivamente. Kendrick Lamar, rapper americano, faz isso nos EUA com suas músicas, como Alright, onde repeti várias vezes “nigga we’ll be alright” (negro, nós vamos ficar bem) – uma clara ironia da situação dos negros hoje nos EUA, que fazem explodir o BLACK LIVES MATTER por todo país.

Em um momento em que voltamos a viver uma ofensiva da direita e seus projetos reacionários, músicas como de Emicida e de todos os Mc’s que cantam em Mandume é uma forma de se posicionar politicamente e despertar a consciência de classe e raça. O rap é o direito de resposta , é o diss dos negros e negras. Não vamos deixar a Revolução Tucana acontecer. Na nossa gestão não, chapa!