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O que o castrismo significou para as LGBTs

Travesti Socialista

Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

Por: Travesti Socialista, colunista do Esquerda Online

Nas primeiras décadas do regime de Fidel Castro em Cuba, houve uma intensa repressão às LGBTs, que eram condenadas sem julgamento e enviadas a campos de trabalho escravo, onde o tratamento era desumano. Algumas pessoas dizem que, como a homossexualidade era crime na vasta maioria dos países capitalistas, então a repressão às LGBTs era esperada e denunciar o regime castrista como LGBTfóbico neste contexto seria supostamente anacrônico. Esse é um debate que nivela por baixo e desconsidera toda a evolução que o marxismo já havia tido até então.

A evolução do marxismo
Verdade seja dita: o marxismo sempre foi, desde suas origens, fortemente contaminado pelas ideologias LGBTfóbicas da sociedade. Os próprios fundadores do marxismo, Marx e Engels, trocaram cartas homofóbicas entre si, carregadas de sarcasmo e ridicularização aos homossexuais. Eles acreditavam que a homossexualidade era uma degeneração da sociedade burguesa.

Até 1917, ano da Revolução Russa, muita coisa mudou. A história e a medicina já haviam estudado que a homossexualidade não era um fenômeno novo, não era um desvio moral nem um crime. Os bolcheviques enxergavam que o código penal czarista era baseado no moralismo ortodoxo russo. Por isso, ele foi revogado após a Revolução de Outubro e um novo código foi promulgado em 1922, baseado no princípio de absoluta não-interferência estatal na vida privada, descriminalizando, portanto, a homossexualidade.

O movimento homossexual também já tinha avanços significativos. O abaixo-assinado do Instituto Científico-Humanitário contra a criminalização da “sodomia” na Alemanha obteve mais de 5000 assinaturas, como a de Albert Einstein, Thomas Mann, August Bebel, Eduard Bernstein e Karl Kautsky. O diretor do instituto, Magnus Hirschfeld, tornou-se uma figura pública muito conhecida e chegou a afirmar que o Partido Comunista Alemão tinha sido o único partido que consistentemente defendia a descriminalização da homossexualidade e a libertação sexual.

Retrocesso e traição
O retrocesso na União Soviética começou já na segunda metade da década de 1920, quando um setor do partido bolchevique iniciou uma disputa ideológica, difamando e caluniando os homossexuais como perversos e promíscuos. Escritores homossexuais foram perseguidos, perderam seu direito de escrever nos jornais soviéticos e passaram a fazer trabalho de tradução de livros.

No começo da década de 1930, o retrocesso se intensificou com a defesa aberta da recriminalização da “sodomia”. A partir da reivindicação do diretor da OGPU (antecessora da KGB) e do próprio Stalin, um novo artigo foi incluído no código penal soviético, criminalizando a sodomia. Para justificá-la, utilizaram a ideologia de que a homossexualidade seria uma degeneração burguesa. Os escritores homossexuais seriam, portanto, agentes da burguesia e deveriam ser presos.

Na década de 1960, houve uma intensificação da repressão às LGBTs no mundo todo. Seja nos EUA, no Reino Unido ou no Brasil, ser LGBT significava correr o risco de ser espancada e estuprada pela própria polícia para depois ser condenada à prisão ou à castração química. No Brasil, LGBTs eram presas por ofender “a moral e os bons costumes”. Na União Soviética e em Cuba, LGBTs recebiam escracho público, eram espancadas e estupradas pela polícia e levadas a campos de trabalho escravo, onde o tratamento era desumano.

Na União Soviética, de 1961 a 1969, em média 796 pessoas foram condenadas por “sodomia” por ano. Em 1970, esse número saltou para 1223 condenações e manteve a média de 1250 condenações até 1981. O salto em 1970 não é à toa: a Revolta de Stonewall, em junho de 1969, deu origem a Paradas LGBTs em todo o mundo, derrubando as leis repressivas e a patologização da homossexualidade.

O castrismo também defendia que a homossexualidade era uma degeneração burguesa e aplicou a política de intensificar a criminalização das LGBTs como forma de eliminar Cuba da “moral burguesa”, além da restrição das liberdades democráticas, controlando a imprensa, a literatura, a arte e proibindo manifestações populares.

Mesmo após a descriminalização da homossexualidade em 1979, na década de 1980, LGBTs continuavam a ser criminalizadas por outras leis – seja por indecência pública ou propaganda ideológica. Devido à proibição das manifestações populares, a primeira Parada LGBT em Cuba ocorreu apenas em 2011, por intervenção da sobrinha do Fidel Castro, Mariela Castro. Nos EUA e no Reino Unido, as Paradas já ocorriam desde 1970 como protesto contra a repressão estatal. No Brasil, o movimento homossexual surgiu com força no final da década de 1970, organizando-se sob a repressão ditatorial, e a Parada LGBT surgiu apenas em 1994. Em Cuba, assim como no Brasil, as LGBTs também eram proibidas de se organizarem e lutarem por seus direitos.

Um “homem do seu tempo”?
Uma “desculpa” comum dada a Fidel Castro é que ele teria sido apenas “um homem de seu tempo”. Com esse argumento, poderíamos “desculpar” também todos os outros governos do mundo por todas as centenas de milhares de LGBTs espancadas, estupradas, presas e mortas pelas polícias. Teríamos em nossas mãos um crime contra a humanidade sem culpados.

Mas por que não comparar o castrismo com os comunistas ou mesmo os social-democratas na Alemanha na década de 1920? Ou com os movimentos feministas, LGBTs e negros que surgiam ao redor do globo? Por que não comparar Fidel com Bernstein, o famoso oportunista traidor do marxismo? Por que o critério de comparação para Fidel Castro é o que havia de pior na política imperialista na mesma época?

Tudo isso apenas ofusca a realidade. Em primeiro lugar, o retrocesso na política LGBT defendida pelos stalinistas e castristas. Em segundo, o fato da revolução cubana não ter sido organizada por conselhos democráticos de trabalhadores, mas por um partido com organização e hierarquia militares, tendo como principal base social o campesinato – inclusive médios proprietários como o próprio Fidel Castro. Isso resultou num sistema político repressor das liberdades individuais e democráticas, concebendo toda manifestação política ou ideológica contrária ao regime como contrarrevolucionária. A traição do castrismo foi a continuidade da traição do stalinismo.